O erro da pirâmide de opressões

Higor Linhares
6 min readApr 23, 2018

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Os números produzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — IPEA no Retrato das desigualdades de gênero e raça (2011) provocaram uma série de leituras sobre as condições sociais de homens, mulheres, negros e brancos no Brasil. Um gráfico em especial, o que mostra a renda média da população, foi e tem sido muito usado para defender a existência de vantagens sociais do homem negro em relação à mulher negra e deu origem a uma espécie de pirâmide de opressões. É aí que mora o problema. O gráfico demonstra que homens negros têm renda maior que mulheres negras, mas isso não significa que eles tenham vantagens sociais sobre elas. Renda média é apenas um dentre os aspectos que devem ser considerados para medir a condição social da população. Partir daí para uma leitura de pirâmide de opressões é, no mínimo, leviano.

Antes de prosseguir, é bom que se diga que questionar as verdades produzidas a partir da pirâmide social não significa negar ou amenizar as opressões sofridas pelas mulheres negras, mas contrapor uma narrativa que tem posicionado o homem negro como inimigo da mulher negra. E, bem sabemos, o inimigo é outro.

Admitindo uma leitura que considere o gráfico de renda média uma pirâmide de opressões, o que fica mais evidente (observe o gráfico que segue abaixo)? Em um país cujo racismo estrutura as relações sociais, não precisa de muita análise para perceber que o ponto de partida de opressões é racial: homens brancos e mulheres brancas têm vantagens sobre homens negros e mulheres negras que, não por acaso, frequentam assiduamente os números desfavoráveis das estatísticas. Portanto, a pirâmide social é, antes de tudo, RACIAL.

Mulheres e homens brancos juntos na parte de cima e mulheres e homens negros juntos na parte de baixo.

Ao observar os números e gráficos do Retrato das desigualdades de gênero e raça (IPEA, 2011) e do Dossiê Mulheres negras (IPEA, 2013) é possível perceber que, em TODOS eles, há vantagens dos brancos sobre os negros. Quanto ao gênero, não é sempre que as mulheres negras estão em posição mais desfavorável em relação aos homens negros. Nos aspectos educacionais, por exemplo, elas saem na frente, o que significa que eles têm menos acesso e permanência no sistema escolar. Eles abandonam a escola mais cedo(não se supõe que seja por opção), são empurrados para fora da escola e, desde muito jovens, socializados para realizar trabalhos informais, insalubres e perigosos.

Supor que homens negros têm vantagens sociais é IGNORAR que eles são mais de 70% das vítimas letais em ações policiais e mais de 60% da população carcerária e da população de rua. Eles são, de modo geral, também os que mais morrem. Isso quer dizer que são o principal alvo do GENOCÍDIO e da PRIVAÇÃO DA LIBERDADE da população negra, ou seja, deixam de existir e de circular em sociedade. Não dá para afirmar, simplesmente, que eles têm vantagens sociais e que são os responsáveis pela opressão das mulheres. Até porque colocar homens negros no mesmo lugar de opressores que os homens brancos é o mesmo que supor que mulheres brancas sofrem as mesmas opressões que as mulheres negras. Se uma coisa não é verdade, a outra também não pode ser. Os próprios estudos do IPEA, citados neste texto, em geral, não fazem abordagem hierárquica ou comparação entre homens negros e mulheres negras. O que se vê frequentemente são comparações entre: 1. brancos e negros em geral; 2. a mulher negra e a mulher branca; 3. a mulher negra e o homem branco; e 4. as vantagens do homem branco em relação aos demais. Vejam alguns exemplos:

“Comparando-se o total das rendas das pessoas, as desigualdades se pronunciam. Ainda que as disparidades tenham sofrido redução nos últimos anos, a renda das mulheres negras não chega nem à metade daquela auferida pelos homens brancos e corresponde a cerca de 56% dos rendimentos das mulheres brancas.”. (IPEA, 2013)

“ O gráfico 4, da distribuição percentual de estudantes no ensino superior segundo cor e sexo, demonstra que, a despeito do crescimento das taxas de escolarização, a presença de mulheres e homens brancos ainda é muito superior à de mulheres e homens negros.”. (IDEM)

A pirâmide de opressões é RACIAL. Nesse sentido, gênero e renda é que devem aparecer como um recorte dentro de uma leitura de raça. Porque não interessa (ou não deveria interessar) ao povo negro leituras sociais que sobreponham quaisquer aspectos à questão racial. Priorizar leituras de renda e de gênero camuflam a principal desigualdade social: a racial.

Precisamos enxergar e admitir, por exemplo, que a favela, a cadeia e os trabalhos precarizados são reservados aos negros e não aos pobres. Pobreza e miséria são, sobretudo, condições destinadas às pessoas negras e não é de hoje: A Lei de Terras, de 1850, que definiu a posse de terras exclusivamente pela compra, já garantiu que a rua fosse o lugar dos negros; no mesmo período, negros libertos e escravizados eram proibidos de frequentar escola. E o que mudou com a Lei Áurea? Nada. Além de não haver políticas de reparação, foi levado a cabo um projeto de aprofundamento da precarização e do extermínio da população negra. O incentivo à imigração, para que brancos europeus ocupassem os postos de trabalho livre, deixou os negros sem condições de terem perspectiva de uma vida digna.

O gráfico abaixo mostra a situação de pobreza segundo o Programa Brasil sem Miséria. Nele, a leitura é da falta e não do ganho. Esta mudança de ponto de vista é importante porque falar de pirâmide de opressões é considerar a quem as condições de uma vida digna estão sendo negadas. No gráfico, fica evidente que quanto mais se aprofunda a pobreza, maior é desigualdade entre brancos e negros. Quanto à questão de gênero, os números são irrisórios tanto entre mulheres e homens negros quanto entre mulheres e homens brancos, isto é, a situação de pobreza é determinada pela RAÇA e não pelo gênero.

Por tudo que foi exposto até aqui, considerar uma leitura da pirâmide social que une mulheres negras e mulheres brancas contra uma suposta opressão de homens pretos não faz o menor sentido. A disposição de mulheres e homens negros na própria pirâmide e nos gráficos apresentados mostra que a aliança lógica é entre mulheres negras e homens negros. Isso não quer dizer que os movimentos negros não tenham que discutir questões de gênero e de posição social, pelo contrário, essas discussões são necessárias. O que não dá para admitir é a intromissão de brancos e de teorias racistas nessa história, afinal, é contra suas opressões e privilégios que estamos lutando.

Então, se liga, a pirâmide de opressões é esta aqui:

Referências bibliográficas:

A visibilidade da violência e a violência da invisibilidade sobre negro no Brasil. Lúcia Regina Brito Pereira. In: A violência na sociedade contemporânea [recurso eletrônico] / organizadora Maria da Graça Blaya Almeida. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010.

Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes … [et al.]- Brasília: Ipea, 2013.

O erro da pirâmide. Anin Urasse, 2015. Disponível em: https://pensamentosmulheristas.wordpress.com/2015/12/10/o-erro-da-piramide/

Retrato das desigualdades de gênero e raça. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada … [et al.] 4ª ed. — Brasília: Ipea, 2011.

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