O racismo dos bem intencionados
Desde que comecei a ter consciência racial e expressar minhas impressões sobre o racismo, tenho percebido amigos brancos ou pessoas brancas que convivem comigo ficarem na defensiva. É curioso como, em geral, todos eles se consideram boas pessoas e não-racistas. É difícil acreditar que sejam boas pessoas sendo eles racistas (porque, sim, são racistas!). Acho que, pela força que fazem para provar o quanto acham o racismo um absurdo, nem eles mesmos acreditam. Aliás, é impressionante como eles usam expressões superlativas, que acabam evasivas, para caracterizar atos racistas: “Nojento!”, “Inadmissível!”. E, depois disso, fazem comentários como: “Nossa, em pleno século XXI!” ou “Não consigo entender como tem gente que ainda faz uma coisa dessas!”. E acabam parando por aí porque acham que não têm nada a ver com isso. Afinal, eles são pessoas boas, não-racistas.
A questão é que eles não são menos racistas que os brancos raivosos que nos chamam de macaco ou de bandido. Posso apostar que são até mais racistas que esses. Brancos bem intencionados são os que mais alimentam o racismo. Isso mesmo, o racismo estrutural, como gostam de chamar, ganha um tijolinho a mais todos os dias porque eles, dissimuladamente, ajudam na construção e manutenção dessa estrutura. Tê-los por perto é a certeza de que as dificuldades em defender nossa cultura e combater o racismo serão ainda maiores porque são mestres em se apropriar de tudo que é nosso. E quando não sobra mais nada, apropriam-se de nossos discursos e de nossa luta. E tudo com a melhor das intenções. Até quando nos consultam para saber como devem agir para não serem racistas, não estão interessados em nosso bem estar, querem é ficar bem na fita, pagar de desconstruídos e nos usar para passar recibo de não-racista.
Pensando nesses comportamentos, fiz um teste com 35 amigos brancos do Facebook com a pergunta: “Como você “branco bom”, não-racista, desconstruído, de esquerda, amigo e defensor dos oprimidos tem contribuído para o combate ao racismo?”. Menos da metade deles se manifestou, demonstrando covardia em se expor em ambiente aberto a julgamentos. Se têm medo de se expor, imagina se terão coragem de nos defender de uma atitude racista. Já temos percebido também que a grande preocupação dos brancos bem intencionados, quando pressionados a confrontar seus pares racistas, é de perder seus vínculos afetivos com essas pessoas. O mais importante para eles tem sido manter seus amigos e amores racistas. Nenhuma novidade. Eles têm mesmo mais em comum.
Dos que responderam, alguns arquétipos do comportamento branco se repetiram: acusaram-nos (a mim e aos pretos que comentaram o teste) de raivosos e intransigentes, disseram que eu queria aparecer, levaram a questão para o campo pessoal (impressionante como branco não consegue deixar de ser o centro das atenções, 35 pessoas marcadas no teste e a criatura achou que se tratava dela) e houve até quem desprezasse o evento que realizamos para discutir a relação do branco com o racismo. Resultado: os brancos querem que seja do jeito deles. Se não for como querem, preferem não fazer nada. Querem ajudar, mas a gente nunca está satisfeito. Eles acham que temos que nos contentar com qualquer coisa que façam, esperam nossa eterna gratidão. Acham que, sendo brancos, suas ações têm valor em si mesmas. Na verdade, até antes disso, acham que suas intenções já valem muita coisa.
Brancos têm que saber que não nos interessa sua intenção. Boa ou ruim, não nos interessa. Interessa-nos sua ação. Como brancos, o que realmente estão fazendo para limpar a cagada que fazem? Não me refiro aos crimes históricos cometidos contra o povo preto dos quais eles são beneficiários diretos, estou falando das merdas que estão fazendo agora, neste momento. Não adianta que, bem intencionados, lamentem a escravização do povo preto e reproduzam a lógica escravagista.
As ações dos brancos demonstram que eles gozam, despudoradamente, de privilégios e que suas boas intenções não passam de um esforço medíocre para se isentar de culpa, ao mesmo tempo que somos oprimidos, presos e mortos.
Então, como eles podem ajudar? É perda de tempo, considerando o histórico já apresentado neste texto, esperar que façam alguma coisa que realmente ajude. No entanto, há como ao menos não atrapalhar:
- Não se apropriar da nossa cultura, da nossa luta e do nosso discurso;
- Não assumir o protagonismo das nossas questões e dos nossos espaços;
- Não usar falas de amigos ou personalidades pretas para se defender e passar recibo de não-racista;
- Não tentar nos ensinar sobre o que é racismo;
- Não dizer, em hipótese alguma, que gostaria de ter nascido preto. Essa fala relativiza o racismo, minimizando as violências praticadas contra nós;
- Não tentar elogiar, presumindo que temos qualidades ou habilidades especiais normalmente atribuídas a pessoas negras;
- Não tratar o racismo como um tema exclusivo de pessoas pretas. Se os brancos não fossem racistas, não precisaríamos nos ocupar do assunto;
- Não sentir medo ou pena de nós, presumindo que somos bandidos ou pobres coitados. Brancos reproduzem esses estereótipos em nome da manutenção dos seus privilégios;
- Não esperar que sejamos pacientes, pedagógicos e educados ao falar sobre racismo. Aliás, não esperar que sejamos professores ou especialistas no tema. Pessoas brancas devem assumir a responsabilidade de educar-se sobre o assunto.
Resumindo, se não atrapalhar, já ajuda muito.