E as traduções de fã?

Thiago Hilger
O Jogo da Tradução
5 min readMay 15, 2017

Sabem as famigeradas traduções de legendas e jogos feitas por fãs? Vamos destrinchar essa história.

Fotos: à esquerda por Stanley Dai, à direita por Glenn Carstens-Peters

Hoje é dia de polêmica. Eu quero falar sobre traduções de fã. Existe um preconceito gigante sobre elas no mundo tradutório, dizem que elas são ruins, que elas roubam o nosso trabalho, que denigrem a imagem do tradutor, etc. Mas vamos ser sinceros? Todo mundo aqui consome ou já consumiu alguma tradução feita por fãs. Gostando ou não, metendo defeito ou não, todo mundo aqui assiste ou assistiu pelo menos alguma série que precisa ser obtida por meios… digamos… diferentes… E as legendas acabam vindo junto. Ou então já jogou ou joga alguma coisa sem localização profissional oficial e a tradução de fã foi a saída. Mesmo que você seja um tradutor ou uma tradutora.

Vou dar exemplos próprios para ninguém achar que estou apontando o dedo para outros sem apontar para o espelho. Quando eu era (muito) mais novo, joguei Pokémon Trading Card Game num emulador no computador; era uma versão traduzida por fãs para o português. E a única série que eu acompanho atualmente que precisa ser obtida por meios… diferentes… é RuPaul’s Drag Race, de onde vou tirar alguns exemplos de traduções de fã mais a frente neste artigo. Pessoalmente, eu não preciso delas, mas baixo também, para quando alguém que não tem fluência em inglês quiser ver algum episódio na minha casa. Não faço isso por mim, faço pelas possíveis futuras visitas.

É claro que eu, como tradutor, não preciso das traduções de fã para esse tipo de mídia. O conteúdo já chega às minhas mãos numa língua que eu domino. Por isso mesmo, não sou público-alvo dessas traduções, sei disso. E o público-alvo delas muitas vezes não tem outra solução. A tradução de fã abre as portas e permite o acesso a vários conteúdos para pessoas que, sem elas, não poderiam consumi-los.

Há quem queira dizer que a tradução de fã estimula a pirataria. Em algum nível é verdade. Mas eu vejo essa pirataria, que vem inclusa nessas traduções, como resultado de modelos de negócio ultrapassados e desinteresse das grandes distribuidoras (não necessariamente das criadoras) de conteúdo em alcançar determinados mercados. Se não houvesse a tradução de fã, e a consequente pirataria, as pessoas que querem acessar esses conteúdos ficariam sem. E, sinceramente, é tudo por dinheiro: se a distribuidora não puder faturar milhões, danem-se os interessados no conteúdo. Então, sinto muito, mas qualquer pirataria atrelada à tradução de fã está bem justificada e não vai deixar nenhuma distribuidora menos rica (parêntese: este é apenas o meu ponto de vista).

(Mais um parêntese: preciso eximir, em parte, as criadoras de conteúdo. Como desenvolvedor de jogos nas minhas zero horas vagas, minha intenção é sempre alcançar o maior número de jogadores, não importando o dinheiro faturado. Infelizmente, não é algo que valha para todos os criadores e desenvolvedores.)

Ao mesmo tempo em que esse tipo de tradução abre portas para o público, ela fecha portas para tradutores profissionais. Esse problema vem sendo muito recorrente na área de localização de jogos. Alguns desenvolvedores e publishers se aproveitam da fama instantânea de certos jogos (pagos, diga-se de passagem) e dos inúmeros pedidos de localização ligados a eles, e criam apenas a possibilidade de integrar mods de tradução ao jogo original, em vez de contratar uma tradução profissional. Para o público, problema resolvido. Para desenvolvedores e publishers, localização a custo praticamente zero, portanto mais alcance mundial, portanto mais vendas, portanto mais dinheiro sem precisar investir. E, nós tradutores, ficamos chupando o dedo. Ou pior, levamos a culpa por traduções duvidosas, já que boa parte das traduções de fã não chega nem perto da qualidade de uma tradução profissional.

A qualidade mais baixa da tradução de fã é explicada pelo processo utilizado, que é bem diferente. A tradução automática é usada livremente, para quase tudo. E por mais que eu não seja contra o uso de tradução automática, como eu mesmo escrevi em um artigo para a Traduzine, a pós-edição dessa tradução é uma tarefa fundamental, mas muitas vezes é ignorada pelos fãs-tradutores. Sem falar em coisas básicas, como erros ortográficos e gramaticais, que correm soltos. Tão ruins quanto eles eu diria que são os anglicismos e usos de palavras bizarras que não fazem sentido no contexto, dando aquele cheirinho de inglês à tradução. Ontem mesmo eu vi “I experienced” traduzido como “experienciei”, e “she’s in her head” como “ela está em sua mente”. Complicado.

Ao mesmo tempo, já que o processo da tradução de fã é bem diferente, várias vezes há soluções incríveis que nunca veríamos em um trabalho profissional. As minhas soluções favoritas são “Howdy y’all” traduzido como “Olar, pessoar”, “Bitch better have my money” como “Bicha, pague meu dinheiro” e “You better work, bitch” como “Vai trabalhar, viado” (as três vieram de RuPaul’s Drag Race, óbvio, vamos aproveitar e dar uma risada). Numa tradução profissional oficial, seria um parto conseguir aprovar algo assim com algum cliente, ou essas soluções nem surgiriam, provavelmente, pois são os fãs que conhecem a cultura daquele conteúdo e conseguem ter essas ideias. A maioria dos trabalhos que nós, profissionais, fazemos não é de conteúdos dos quais somos fãs, na verdade.

Para mim, a baixa qualidade ou as grandes soluções das traduções de fã não fazem muita diferença no nosso mercado profissional. Ouso dizer que a baixa qualidade até nos beneficia, pois um cliente sério leva isso em consideração e contrata um profissional para fazer isso. O problema maior, na minha opinião, é o caso de distribuidores se aproveitarem das traduções de fã e ganharem dinheiro com isso. Mas não basta apontar o dedo para eles e dizer que estão errados. Eles não vão subitamente ficar bonzinhos e decidir que querem pagar um profissional porque é o certo. Então nós é que temos que correr atrás do prejuízo e educar nossos clientes atuais e futuros, mostrar a eles que nosso trabalho vale o investimento e que nossa qualidade é incomparavelmente superior. Precisamos criar visibilidade, precisamos criar nosso espaço como profissionais, precisamos ir a eventos dos clientes e mostrar a nossa cara como tradutores profissionais que somos.

Vamos?

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Thiago Hilger
O Jogo da Tradução

Freelance translator, mainly on game localization. Teacher of gameloc and subtitling. And a very nice person. :)