Haters gonna hate RuPaul, mas não, por favor

Thiago Hilger
5 min readJun 11, 2017

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Sabem o reality RuPaul’s Drag Race? Vamos apreciar sem falar tanta merda a respeito? Obrigada.

Vou começar já na polêmica: a nona temporada de RuPaul’s Drag Race é a melhor até o momento. Quem quiser me odiar por isso, sue me. É só opinião, claro, mas me leiam até o final.

Primeiro, por que odiar alguém por causa de um programa de televisão? Seja eu pela minha opinião, seja alguma participante, seja RuPaul… Sério que vocês querem brigar com seus amiguinhos porque Mimi torce por Sasha Velour e Pipi torce por Valentina? Que tal a gente celebrar todas elas? Não precisa ser drag para saber a quantidade de trabalho que é exigida de cada uma delas, isso é retratado em todo episódio.

Segundo, falando em Valentina, é sério mesmo que vocês querem xingar RuPaul de cobra?

-Mas eliminou minha favorita.

Gente. Get… the… f… over… it.

Vocês sabem quantas portas RuPaul abriu na vida, metendo o pezão mesmo? Ela chegou chegando com Supermodel, quando não se via clipes de drags de três metros de altura na televisão. Teve programa de TV antes de Drag Race também. Desbravou muitos caminhos para que ela mesma pudesse andar por eles (e para que todas as outras drags pudessem também). Walked through the fire and owned it (preguiça de traduzir). Hoje, tem gente que acompanha um reality show sobre drag queens, gente essa que até poucos anos atrás não fazia ideia do que poderia ser isso. Inclusive gente hétero. Homem hétero. RuPaul não apenas abriu essa porta, RuPaul criou essa porta.

E o programa mudou várias vezes nos últimos tempos. Isso é bom, é preciso se reinventar sempre. Isso vale para você também, não só para o programa. Nem tudo dá certo e faz sucesso, mas é preciso enxergar a intenção por trás. E eu vejo uma intenção linda por trás da mudança da nona temporada. Se eu for o único a vê-la, me chamem de otimista. Sou mesmo.

A mudança começa com a emissora. Agora é a VH1, que tem um alcance muito maior. Então, não apenas o programa tem que se adequar ao que a nova emissora espera, como também pode se aproveitar do público maior para conseguir alcançar pessoas que não alcançava antes — e passar uma mensagem para essas pessoas (pois tudo tem uma mensagem, às vezes ela só passa despercebida).

Uma das mudanças que anda sendo criticada é que está sempre muito fácil de adivinhar quem vai ganhar o desafio, quem vai para a dublagem, quem vai embora do programa. Que não existe mais muita surpresa. Aí eu pergunto: e quando teve tanta surpresa assim? Ok, teve, mas nem sempre era coisa boa. As pessoas só querem surpresas para depois criarem suas hashtags #JusticeForLalala e dizerem que RuPaul é uma vaca.

Get… the… f… over… it.

-Nesta edição, todas elas são amigas, não tem drama!

Tem sim, amigue, tem outro tipo de drama. Tem drama pessoal, cada uma delas tem uma história de superação que é o drama, o sofrimento que você não acha graça.

Tem uma participante com depressão. Ou duas.

Tem uma participante com distúrbio alimentar e outras que sobreviveram a ele.

Tem participantes que superaram ou que ainda estão tentando superar o body shaming que existe dentro da nossa própria comunidade (porque existe, e MUITO!).

Uma participante viu os próprios amigos morrendo por causa de AIDS nos anos 90.

Tem uma trans. Que, aliás, quase foi presa na Rússia porque lá é proibido ser transgênero. Outra morou na Rússia e precisou se policiar o tempo inteiro para que ninguém soubesse da homossexualidade.

Uma sobreviveu a um câncer. Várias viram o câncer levar pessoas próximas, familiares, pais, amigos, e isso foi uma catarse, além de uma tragédia.

Todas elas sofreram discriminação na vida, na escola, como garanto que cada um de nós LGBTQ+ já viveu de alguma forma. Uma delas até apanhou.

Tem uma participante que perdeu amigos no atentado à Pulse, em Orlando, nos EUA, na madrugada de 11 para 12 de junho de 2016 (sim, exatamente um ano atrás). Aliás, não tem uma única vez em que minha voz não falhe e meu coração não dispare quando falo ou penso nesse atentado. Sempre tenho vontade de chorar. Porque foi gratuito, foi triste, foi comigo. Não diretamente comigo, mas com meus e minhas e minhes iguais LGBTQ+. Então dói. Dói na alma saber que gente como eu simplesmente perdeu a vida só por existir e ser como eu. Não foi comigo, mas poderia ter sido. O Brasil mata muitos LGBTQ+, mais do que qualquer outro lugar, então pode ser apenas questão de tempo para muitos de nós.

Mas a gente está aqui pra resistir. Não podemos ter medo. Não podemos ficar presos em casa por isso. Precisamos ser vistos. Precisamos dessa visibilidade, precisamos que o mundo saiba dos nossos dramas pessoais, das nossas histórias de superação e inclusive das histórias tristes em que nossos próprios iguais LGBTQ+ morrem por serem como nós. Então eu prefiro que a gente fique sem mini desafios em RuPaul’s Drag Race, sem mensagens sem pé nem cabeça anunciando os desafios, mas com a chance de ver essas histórias sendo retratadas.

Se um atentado como aquele aconteceu meramente há um ano, significa que ainda temos muita luta, muito caminho pela frente, até que a gente possa se sentir incluído e aceito numa sociedade como a nossa. E nós precisamos também não esquecer do nosso passado como comunidade, não esquecer que o HIV ainda existe, mesmo que a gente não seja mais o único grupo de risco.

Nós precisamos nos empoderar. Nós precisamos lutar. Precisamos prestar atenção a essa mensagem que RuPaul está passando na VH1 e prestigiar, agradecer, porque finalmente alguém conseguiu abrir esse espaço para que a massa pare de nos ver como aberrações sem direito a existir.

Até algumas músicas escolhidas para as dublagens empoderam.

“Woman Up”, da Meghan Trainor, que, traduzindo, canta “levantem a mão se vocês não precisam de um homem”. E nós não precisamos mesmo. Nós temos que ser independentes e não machistas (e por nós incluo mulheres que sofrem com o machismo também). Claro que pode continuar com seu boy, só não em um relacionamento abusivo.

“Greedy”, da Ariana Grande, que, traduzindo, canta “amor, você tem sorte porque está curtindo com a melhor”. Sim, precisamos nos ver como os melhores. Se você não se vê como a melhor, quem verá? Se não conseguir se amar, até mesmo os próprios defeitos e imperfeições, como vai conseguir amar alguém? E como alguém vai conseguir amar você?

Então pensem antes de chamar RuPaul de cobra. Pensem que, graças a ela, vocês, nós, LGBTQ+ vamos ter mais e mais visibilidade, e, num futuro não tão distante, vamos levar menos lâmpadas na cabeça. Vamos ver menos Bolsonaros propagando discurso de ódio contra nós. Coloquem em perspectiva a eliminação da sua favorita e entendam que somos todos vulneráveis, imperfeitos, humanos, irmãos e irmãs.

Um beijo no coração de quem entender esta mensagem. Everybody say love.

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Thiago Hilger

Freelance translator, mainly on game localization. Teacher of gameloc and subtitling. And a very nice person. :)