O Real Gabinete Português de Leitura

Marcelo Domingues
6 min readJun 18, 2020

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Foto: Fachada do Real Gabinete Português de Leitura (Real Gabinete).

Na década de 1830, vivia em terras cariocas um grupo não muito grande de emigrantes portugueses, que, possuía interesses em comum. Assim sendo, poucos anos após a independência brasileira, essa comunidade veio a estabelecer um centro associativo, cujo propósito era constituir espaço no qual pudessem, por meio da leitura, rememorarem a pátria da qual emigraram (ANACLETO, 200).

Ao criar tal instituição, o objetivo ia além da promoção do “enriquecimento literário dos associados”, era também uma forma de exaltar a cultura literária portuguesa, bem como a própria língua. Havia ainda uma intenção de melhorar a visão que os brasileiros tinham da antiga metrópole — a esta altura, vista como atrasada (COSTA, 2012; AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Em 14 de maio de 1837, na casa do advogado português António José Coelho Lousada, reuniram-se diversos imigrantes portugueses. Da reunião presidida pelo então cônsul-geral de Portugal João Baptista Moreira, saiu a fundação do Gabinete Português de Leitura. Nesta sessão inicial os acionistas elegeram para a mesa diretiva da instituição “José Marcelino Rocha Cabral, como presidente; Francisco Eduardo Alves Viana, como primeiro-secretário e José Maria do Amaral Vergueiro, segundo-secretário” (AZEVEDO; TROTTA, 2013, p. 46). Sua abertura aos associados deu-se em quatro meses mais tarde, em 10 de setembro.

Foto: Teto e Estantes do RGPL (GGN)

No decorrer de sua história, o GPL teve algumas sedes em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro: a primeira foi a Rua Direita, nº 20; passando pela Rua São Pedro, nº 83; Rua da Quitanda, nº 55; Rua dos Beneditinos, nº 12.

A partir da década de 1860 os diretores e acionistas do GPL manifestam cada vez mais o desejo por uma sede própria, por várias questões (incluindo a falta de espaço). Em 1871 a direção e os acionistas criam um fundo para a construção da sede e, além disso, organizam espetáculos em benefício do GPL visando arrecadar fundos (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Iniciada em janeiro do ano de 1881, a construção da sede em terreno e prédio próprios na Rua Luiz de Camões, nº 30, foi finalizada em 1887. O edifício em estilo arquitetônico neomanuelino, projetada pelo arquiteto português Rafael da Silva e Castro, teve duas inaugurações: a primeira contou com a presença da Princesa Isabel e do Conde D’Eu, marcando o cinquentenário da instituição; a segunda ocorreu em dezembro do ano seguinte e contou com a presença de Dom Pedro II (COSTA, 2012; AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Foto: Fachada do Real Gabinete Português de Leitura por Marc Ferrez, 1887 (Brasiliana Fotográfica)

Seu público é composto inicialmente por acionistas, e posteriormente incluem-se subscritores — os primeiros eram aqueles que mantinham uma assinatura mensal, os segundos, aqueles que alugavam livros. Cabe um dado importante: a primeira mulher a ser aceita como subscritora foi dona Carolina de Noronha Torrezão (AZEVEDO, 2008). A partir de 1881 seu uso passa a ser franqueado a escritores, funcionários públicos, jornalistas e professores, desde que estes apresentassem seus cartões de visita ao entrarem (AZEVEDO; TROTTA, 2013). Deduz-se que a maioria do público leitor do GPL era letrado. Isso fica um pouco mais evidente por meio dos idiomas presentes nas publicações: além do português, há também o francês e o inglês (AZEVEDO, 2008).

Sobre o acervo do GPL durante sua primeira década de existência, é possível dizer que ele era comprado tanto na própria capital do Império (na época, o Rio de Janeiro) quanto na Europa (como, por exemplo, França, Bélgica e, claro, Portugal). Outras forma de aquisição do acervo era por meio das doações — feitas em sua maioria pelos próprios acionistas do GPL. Nesse sentido, é possível refletir sobre a relação que a instituição mantinha com a sociedade carioca: ao receber uma doação a biblioteca era reconhecida como parte importante da rede de cultura e sociabilidade da cidade e, por outro lado, quando uma doação era realizada, o doador era reconhecido como tal e granhava prestígio social — o reconhecimento vinha nas atas das reuniões institucionais, e até mesmo nos anúncios em periódicos da época (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Outro dado interessante sobre a aquisição diz respeito à verba para compra de acervo: 70% dela era destinada à copra de livros — deste percentual, cerca de 25% visava à compra de livros estrangeiros, tanto aqueles em outro idiomas como aqueles editados em outros países (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

No que concerne a seleção e compra de novas obras, pode-se dizer que havia uma comissão institucional que tratava destas questões. Tal comisão era composta por integrantes importantes do GPL, figuras essas que possuíam conhecimentos bibliográficos e do mercado livreiro (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

A datar de sua fundação, a instituição sempre preocupou-se com a atualização de seu acervo, buscando adquirir publicações mais modernas. As obras em língua portuguesa eram predominantes — possivelmente como forma de valorização da cultura portuguesa. Pelo catálogo elaborado em 1844, pode-se dizer que predominam as novelas, literatura em geral e poesia; ademais, os assuntos nesta língua com mais itens no referido catálogo são: história, política, teologia e culto, medicina, viagens e biografias (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Em relação aos periódicos é possível dizer que além dos portugueses e brasileiros, havia também alguns de Buenos Aires, da França e da Inglaterra — os leitores do GPL tinham interese especial nas temáticas referentes ao comércio e indústria (AZEVEDO; TROTTA, 2013).

Sobre as obras raras, foi priorizada a aquisição daquelas produzidas entre os séculos XV e XVIII (AZEVEDO; TROTTA, 2013) — atualmente a instituição mantém uma coleção de obras raras que conta com, por exemplo, uma edição princeps (que pertenceu à Companhia de Jesus) de “Os Lusíadas” (1572), de Luís de Camões, e “Sermões do Padre Antônio Vieira” (1689).

Foto: Edição princeps de “Os Lusíadas” (Real Gabinete)
Foto: “Os sermões de Padre Antônio Vieira” (Real Gabinete)

Posto que as bibliotecas associativas (como é o caso do Gabinete) surgem por uma demanda de seus sócios, compreende-se que o acervo dessa tipologia de biblioteca deve atender diretamente às demandas e vontades de seus usuários. Logo, é interessante perceber a dinâmica existente entre acervo e público (usuários).

Além de um importante espaço de leitura no Rio de Janeiro do século XIX — consolidando-se como tal, sobretudo, a partir da década de 1870 — o GPL era também um ambiente de sociabilidade. Ele era tanto o local de encontro de intelectuais brasileiros e portugueses, como o lugar onde seus membros envolviam-se em atividades outras que não apenas a leitura.

Em 1900 o GPL torna-se biblioteca pública — seu acesso torna-se livre e não mais franqueado somente a acionistas, subscritores e às classes especificadas anteriormente. Em 1906, Dom Carlos, rei de Portugal, concede o título de “Real” e, a partir de então, a instituição passa a ser denominada como Real Gabinete Português de Leitura. A partir de 1936 o governo Português considera o Real Gabinete como instituição de depósito legal — o que contribui para o aumento do acervo da biblioteca (COSTA, 2020).

Hoje, pode-se pensar no Real Gabinete “como lugar de memória, come vetor de transmissão de saberes e herança cultural” (AZEVEDO; TROTTA, 2013, p.74). Percebê-lo como tal é considerar sua importância histórica e cultural para vida urbana carioca, principalmente no século XIX, e tê-lo como patrimônio da cidade.

Referências

ANACLETO, Regina. Arquitectura Neomanuelina no Brasil: a saudade da Pátria. Camões Revista de Letras e Culturas Lusófonas, [Rio de Janeiro], n.11, Outubro/Dezembro 2000, p. 38–51. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/revistas-e-periodicos/revista-camoes/revista-no11-pontes-lusofonas-iii.html. Aceso em 10 jun. 2020.

AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Contributo para traçar o perfil do público leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837–1847. Rev. Ci. Inf., Brasília, vol. 37, n. 2, pp. 20–31, maio/ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ci/v37n2/a02v37n2.pdf. Acesso em: 20 maio 2019.

AZEVEDO, Fabiano Cataldo de; TROTTA, Luís Felipe Dias. A formação do acervo do Gabinete Português de Leitura no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 459, p. 43–76, 2013. Disponível em: https://ihgb.org.br/revista-eletronica/artigos-459/item/108213-a-formacao-do-acervo-do-gabinete-portugues-de-leitura-no-seculo-xi.html. Acesso em 01 maio 2019.

COSTA, António Gomes da. Real Gabinete Português de Leitura, 2020. O real Gabinete. História. Catedral da Cultura Portuguesa. Disponível em: https://www.realgabinete.com.br/O-Real-Gabinete/Historia. Acesso: 15 jun. 2020.

COSTA, António Gomes da. Real Gabinete Português de Leitura. Acervo, v. 8, n. 1–2, p. 195–198, 2 jan. 2012. Disponível em: http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/248. Acesso em 05 jun. 2020.

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Marcelo Domingues

Produtor Cultural (UFF) e Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA/UFF), atualmente sou aprendiz de Bibliotecário (UNIRIO).