Não-binária e Grávida Parte 1: Desconstruindo “ser mulher”

Ariel Nora
5 min readFeb 14, 2019

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Toda a minha vida eu achei estranho “ser mulher”.

Eu não entendia porquê tinham algumas coisas que eu devia ou não devia fazer. Lembro bem de uma cena na escola, no auge dos meus 8 anos de idade, olhando para os meninos jogando bola e pensando “Talvez eu devesse ter nascido menino. Eu gosto de brincar de carrinhos e brincar de correr, não gosto de fazer coisas de menina”. Nesta época “ser mulher” era uma frustração. Uma coisa desconhecida até, difícil de entender enquanto meu corpo ainda não passava pelas mudanças que eventualmente iriam me solidificar no status de “feminino”.

Enquanto eu crescia, passei por uma montanha-russa no meu entendimento do que era ser uma mulher. Como uma adolescente que tinha interesses por coisas que eram “apenas para meninos”, eu aprendi a ver outras mulheres como fúteis e frívolas. Elas gostavam de maquiagens e falar de namoradinhos, enquanto eu ouvia metal e andava com os meninos. Eu “não era que nem as outras meninas”, o que me fazia ao mesmo tempo excluída dos círculos sociais ao meu redor e superior à eles.

Só depois de adulta que eu fui entender que na verdade eu tinha uma forte misoginia internalizada, uma barreira que eu fiz entre eu e outras mulheres em uma época onde minha autoestima estava em frangalhos e eu precisava fortemente sentir que eu pertencia a algum lugar.

Quando eu entendi que as coisas eram mais difíceis para mulheres do que para homens na sociedade, por motivo nenhum além de sermos consideradas “frágeis”, me revoltei. E também passei a abraçar um lado feminino meu que há muito eu havia trancado em uma caixa de “coisas que me fazem fraca”. O glitter e os lacinhos que eu secretamente amava na minha época mais dark, eu passei a colocar na pele com orgulho. Não tinha nada de errado em ser mulher.

Entender da opressão estrutural que me rodeava me fez mais forte, e mais gentil em minha força.

Lute como uma garota.

Uma série de coisas aconteceram depois de eu abraçar o feminismo: eu aprendi a me gostar e me aceitar mais. Eu aprendi a gostar e aceitar mais as outras pessoas. Eu entendi que todo o preconceito internalizado que eu vinha nutrindo minha vida inteira tinha me cegado para uma infinidade de possibilidades, entre elas a sexual.

Me entendi, depois disso, mulher bissexual. Não foi exatamente simples ou fácil, mas esse é um conto pra outra hora. O que aconteceu foi eu perceber, com o sentimento que eu poderia gostar tanto de homens quanto de mulheres, que gênero era uma construção social idiota que se tinha criado para separar a sociedade em caixinhas. E eu me percebia cada dia mais fora dela.

Aceitar que eu poderia não ser uma mulher foi muito mais difícil do que aceitar que eu poderia ser bissexual. Porque eu também não me via como homem. E se eu não me sentia validada pelo termo “mulher” e nem pelo termo “homem”, então o que eu era?

Besteira”, eu pensava, dirigindo para casa sozinha, após o trabalho, no meio de uma crise de choro. “Eu sou só uma mulher masculina. Não tem nada de errado com isso. Uma mulher masculina que não segue as regras. Tá tudo bem”.

Mas não tava tudo bem. E no fundo, no fundo, eu sabia disso.

“Eu sou um menino? Eu sou uma menina? Quem sabe?! Mas todo mundo me acha gato e isso faz de todo mundo gay”

Guardei o print acima por anos no meu computador. Achava a piada hilária, sem bem saber porquê. Nessa minha época de crises existenciais, comecei a perceber certas coisas sobre mim: como eu achava incrível quando me confundiam com um homem na rua, como eu sempre me identificava mais com personagens que não se encaixavam no padrão “mulher feminina” e “homem masculino”. Ao escrever uma história se passando em um universo fictício, fiz uma raça inteira alienígena que “possuía o corpo de uma mulher, e se identificava como tal na língua falada por convenção, mas não possuía gênero de fato”. Depois fui entender que na verdade eu estava tentando colocar em palavras o que eu sentia sobre mim, inconscientemente.

Claramente eu não estava contente com meu rótulo de “mulher”. Mas eu também não sentia vontade de transicionar e me tornar “homem”. Eu era algo no meio, uma pessoa em forma de estrela que não encaixava nem na caixa quadrada e nem na caixa redonda.

Então eu comecei a pesquisar mais a fundo sobre não-binarismo.

Não-binárie (não-binário/não-binária) é um termo guarda-chuva para descrever aquelas pessoas que não se encaixam nem no conceito de “homem” nem de “mulher”. Ou pelo menos, não totalmente com um ou com o outro. É a fora da curva, os andróginos e pessoas que não “convém” e não adere às regras estritas de gênero que nós temos atualmente como sociedade, é a pessoa que se olha um dia no espelho e percebe que o gênero que foi lhe dado ao nascer não serve mais pra descrever como ela é de verdade.

Não-bináries são considerados parte do espectro transgênero, pois não se identificam mais com o termo que as pessoas impõem neles. Alguns continuam usando os pronomes do gênero que lhes foi dado ao nascer, alguns não. Alguns decidem passar por algum tipo de cirurgia, alguns não. Não há regras para ser não-binário. Nós já somos a quebra da regra.

Para quem quiser se aprofundar mais no assunto, sugiro uma lida no material do RExistência Não Binária, onde tem várias matérias, glossários e explicações legais sobre o assunto. Também tem a Página de Facebook deles.

O processo de aceitação foi lento e dolorido. Eu passei anos me fortalecendo como mulher, para tirar isso de mim mesma. Eu sentia como se estivesse desvalidando tudo o que eu havia aprendido até então, colocando minha luta de auto-aceitação no lixo.

Mas não era verdade. Eu ainda havia vivido todas as coisas que eu vivi. Eu aprendi a ver as pessoas com mais empatia. Para muitos, eu ainda seria considerada mulher, apesar de eu não concordar mais com o uso do termo.

Eu me senti sozinha. Ser bissexual? Ok, as pessoas até entendem. Ser não-binárie? Tem gente que não consegue nem compreender o termo.

Mas ao mesmo tempo, me senti mais leve. Eu não precisava ser mulher ou homem, eu podia ser eu mesma: essa criatura que é um pouco dos dois, tudo e nada ao mesmo tempo. Complexo, sim, mas que ser humano não o é?

Eu me senti completa. E com isso, passei a encontrar pessoas que me aceitavam como eu era, e me amavam por isso. A luta é difícil, ser constantemente enfiada de volta na caixa de “mulher” dói e destrói por dentro, mas eu agora tinha pessoas que passavam por coisas similares e me aceitavam e me apoiavam em minha jornada de me tornar a mistura inebriante de feminilidade e masculinidade que eu sou e sempre fui.

Então eu engravidei. A coisa mais “de mulher” que poderia ter acontecido comigo na vida. E senti como se o chão tivesse desabado sob meus pés.

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