Foto do Stephen Shames

A história do “Cadê os Pretos no Design?”

Parte 2

Hon Porfirio

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Essa é a parte dois do artigo que conta a história do projeto-pesquisa originado em 2016 chamado Cadê os pretos no design?. Se você não viu a parte 1 ou não sabe do que estou falando, corre pra ler clicando aqui.

Projetos paralelos e outros desdobramentos

O contexto sempre afetou diretamente o andamento desse projeto-pesquisa desde o sua idealização. Se por um lado esse projeto começou em frente aos conflitos dentro da mobilização para estabelecer as cotas raciais na USP, no final de 2016 assistíamos ao início de uma mudança de paradigma frente à pauta com a aprovação do ingresso pelo Sisu. A comemoração seria definitiva em 2017, com a aprovação de reserva de vagas pela Fuvest. Nesse período, ajudei a desenvolver alguns projetos paralelos, todos ligados à questão racial, mas não necessariamente ligadas ao projeto-pesquisa em discussão.

Obra 35:1 . Na obra havia 36 folhas representando os estudantes, sendo 35 brancas e 1 preta, onde ela dispunha: Alunos na FAU: 1314. Alunos negros na FAU: 38.
O 35:1 foi um projeto-instalação desenvolvido às vésperas da aprovação de cotas raciais pela Fuvest em 2017. O título da obra era a proporção de estudantes brancos para negros na época, assim como foi explicitado que, entre os 123 professores da escola, nenhum era negro. 

O 35:1 foi meu primeiro projeto utilizando dados como base para uma instalação artística. Embora tenha sido uma obra significativa para a dinâmica interna da faculdade, observamos posteriormente que erramos ao levantar os dados: desconsideramos a presença das etnias amarelas na contagem, o que mudaria completamente a proporção apresentada por nós. Esse erro foi corrigido num projeto posterior, que discorrerei adiante neste texto.

Depois desta obra, a intenção de transformar o Cadê os pretos no design em um projeto de Iniciação Científica se intensificou. Mas fui informada que não seria possível continuar a mesma dinâmica que eu vinha estabelecendo para o projeto até então, sendo sugerido, por fim, um projeto de levantamento de dados da presença de estudantes negros nas principais faculdades de design do estado de São Paulo.

As comunidades de origem africana nas Américas, sobretudo na América chamada “Latina”, sofrem até hoje a falta de referência histórica que lhes permitiria construir uma auto-imagem digna de respeito e auto-estima.
— A Matriz africana do mundo. E.L. do Nascimento

Abdias do Nascimento foi o primeiro autor que me referenciei para justificar o porque priorizei os africanos (do continente e diáspora) na pesquisa, ao invés de partir para a questão de classe.

Acredito que até aquele momento eu não sabia me fazer entender sobre a crucial necessidade de sobrepor a discussão de raça sobre a de classe, e compreendo essa “falha de comunicação” como resultado da inexistência de professores negros e discussões que tangem o assunto na minha unidade de ensino — além da minha falta de conhecimento para justificar tal argumento. Embora raça e classe estejam intrinsecamente conectadas, e que a abordagem tangente à última se faça necessária, sugerir que no momento em que estávamos discutindo a questão, apenas 7% dos estudantes serem negros na universidade inteira era uma questão de ordem classista estava completamente fora do contexto. Além disso, embora eu acredite que seja importante tal levantamento (presença negra nas faculdades de design), ele fugia da intenção majoritária deste projeto: dar visibilidade para referências negras no design. Eu não queria argumentar exclusivamente sobre os males do racismo, ou em como ele nos afasta da universidade e do ensino básico, nos “submetendo” ao tecnicismo: isto para mim era, perdoem-me a arrogância, óbvio e batido demais. O que eu queria era, sobretudo, apresentar alternativas. Ultrapassar a barreira imposta por esta estrutura, e concluir através dos exemplos que a teoria e prática do design eram espaços aos quais também pertencíamos.

Diante de alguns questões ideológicas desta ordem, acabei abandonando o projeto de iniciação científica e o projeto entrou em hiato até 2018.

Antes do hiato, tive a oportunidade de conhecer a entrevistar a Sra. Anna Bittencourt, que foi esposa do falecido José da Costa Chaves. Com origem no Rio Grande do Sul, veio para São Paulo na década de 50, e sem formação acadêmica formal, foi um dos professores responsáveis pela fundação do primeiro curso de Desenho Industrial de São Paulo (e o primeiro do Brasil em uma instituição particular), na FAAP no ano de 1967. A parte curiosa é que ele se formou pela primeira vez no curso que ele mesmo ajudou a fundar. 

No período que o projeto encontrou em hiato, aprofundei algumas leituras relacionadas ao desenvolvimento cultural, histórico, tecnológico e social do povo preto ao longo da história da humanidade, e acho importante destacar uma reflexão que surgiu ao redor disso:

Embora a discussão sobre o racismo estrutural seja a base do surgimento deste projeto, julgo ser essencial a compreensão de que as pessoas africanas e seus decendentes não são resultado exclusivo da opressão que sofrem. Milênios atrás, os africanos deram origem à filosofia, à escrita, e ao urbanismo e por exemplo; corroboraram com desenvolvimento da técnica e da tecnologia ao redor do globo; originaram e influenciaram sociedades inteiras ao longo do percurso histórico; e só nesses últimos 500 anos essa contribuição foi resumida à um povo que foi escravizado, sofrendo as consequências de uma das ações mais brutais e devastadoras contra seres humanos na história até hoje. Portanto, assimilar este projeto como uma reação ao racismo apenas, é anular a compreensão que a história deste povo também é de contribuição intelectual pra humanidade, e esse período foi muito maior que os séculos de escravidão que nos precede.

No meio de 2018, a USP se via diante de mais uma greve. Durante esse período, Ciro Fico estava desenvolvendo seu TCC em torno de um projeto de visualização de dados (especificamente os dados do Atlas da Violência), e eu estava entrando em contato com o LAB Raça, laboratório de pesquisa em torno das pautas raciais recém formado na Faud. Decidimos propor uma atividade de greve que conseguisse juntar as duas propostas, somadas ao contexto: o curso de design acabara de inaugurar o seu novo Projeto Político Pedagógico. Foi quando nasceu o Ensino no design: por quem, para quem?

Instalação resultante do levantamento de dados bibliográficos do curso de design da Faud.
“Ensino no design: por quem, para quem?” é a intervenção visual resultante de uma atividade colaborativa desenvolvida durante a greve de 2018, cujo objetivo foi de refletir a respeito do racismo, machismo e colonização no ensino do curso de design, tendo como plano de fundo a categorização das obras contidas nas bibliografias deste, e fomentando momentos de aprofundamento da discussão entre os colaboradores.Ao longo de 5 encontros ocorridos entre os dias 11 e 28 de julho, sendo um desses encontros a apresentação do projeto Cadê os pretos no design?, categorizamos em coletivo uma amostra das bibliografias básicas de 13 matérias obrigatórias dos semestres ímpares, oferecidas pela Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da USP.O projeto foi exposto no Centro Universitário Maria Antônia e posteriormente foi premiado pelo Projeto Nascente USP 2018.

Os resultados do levantamento dos dados da bibliografia categorizadas em Raça, Gênero e Território foram bastante surpreendentes:

Num país com 54,9% da população negra e 51,6% de mulheres, termos uma bibliografia analisada com 95,3% dos autores brancos (e 4,7% amarelos), apenas 18,1% de mulheres, e em que todos as obras estrangeiras foram publicadas no Norte Global, torna visível o abismo na representatividade nos autores de nossas bibliografias, refletindo a colonização do nosso pensamento e as barreiras de acesso de determinados corpos na academia.
— Ciro Fico e Horrana Porfirio

Na intervenção, linhas vermelhas se conectam aos países de publicação e formas coloridas com os nomes dos autores. A legenda informa que as formas representam o gênero do autor e a cor, sua raça — incomoda o fato das raças preta e parda, contidas na legenda, não estarem representadas na intervenção.

O Ensino no Design junto com o “Cadê os pretos no design?” foram apresentados juntos durante o R Existência, encontro regional de estudantes de design no Rio de Janeiro no final de 2018. Durante esse evento, fui convidada para trazer à tona uma proposta de um novo projeto, que no fim nunca foi levado a cabo: o AFRI D.

O AFRI Design/Diáspora era uma proposta de evento para designers negros que surgiu depois da primeira apresentação do Cadê os Pretos no Design? em encontros estudantis, o N CWB 2017. A intenção era promover discussões entre designers pretos de diversas áreas no que tangencia mercado de trabalho e espaço acadêmico. A proposta ficou em aberto até o R Existência 2018, mas por falta de pessoas disponíveis, esse evento, previsto para acontecer este ano, não foi organizado.
Primeira apresentação do “Cadê os pretos no Design?” no 27º Encontro Nacional de Estudantes de Design — N CWB 2017

Como estava chegando perto do final da minha graduação, dei uma segunda investida para transformar o projeto em uma Iniciação Científica. A pesquisa giraria em torno de no máximo 4 designers negros no Brasil, contanto a sua história, analisando suas obras e se o fator raça influenciava diretamente no processo ou no resultado dos projetos realizados por eles.

Nessa altura do campeonato eu já tinha lido sobre a contribuição negra para o design no período escravagista, e não tinha achado nenhuma pesquisa relacionada aos designers negros contemporâneos. Na proposta elaborada para justificar o projeto, me propus a ajudar a preencher esse “vácuo” que existe no registro histórico daquela época para cá.

Antes de mais nada, preciso alertá-los: essa é foi uma visão razoavelmente equivocada. Embora realmente não existam pesquisas acadêmicas voltadas para o assunto, não significa que contemporaneamente design-raça não esteja sendo pesquisado ou discutido (até porque na parte 1 deste artigo apresentei alguns dos projetos e pesquisas desenvolvidos por outros designers pretos contemporâneos).

No processo de escrever o projeto para a pesquisa me deparei com um obstáculo que me impede de parar de falar sobre o racismo. Para explicar esse obstáculo melhor, peço licença para utilizar as palavras de Carlos Moore:

A comunidade à qual pertencemos tem medo, sim, do que é novo, porque teme o fracasso; esse fracasso que iria legitimar o que sempre foi dito de nós: a saber, que somos um povo constituído de incapazes, de vencidos, de mansos e dóceis escravos que não prestam para nada mais do que servir os interesses que, imbuídos pela natureza de uma legítima superioridade racial, comandam a sociedade e o mundo.

— Uma universidade do amplo saber e da multiplicidade de saberes para o mundo emergente no século 21, discurso do Carlos Moore no 15º aniversário do Instituto Steve Biko. Grifo meu.

Eu tinha um medo imenso de escrever. Sempre escrevi, mas sobre o projeto que eu vinha elaborando fazia anos eu não me sentia capaz ou digna. O processo de escrita durou meses, e quando eu acabei, a docente responsável estava absurdamente ocupada para dar atenção imediata ao que eu tinha produzido, impossibilitando definitivamente que o projeto se tornasse uma iniciação científica, porque enfim, eu vou me formar.

Eu percebi que, embora eu acredite e defenda o meu discurso sobre não nos resumir em opressão, as barreiras mentais que o racismo impõe são muito mais complexas e profundas do que não ter referências pretas no campo do design. A essa altura, o projeto-pesquisa já tinha rodado vários eventos, ele ajudou a fundamentar um projeto cujo foi premiado, e nada disso me fez ter coragem de documentar o processo dessa pesquisa até esta série de textos que você está lendo agora.

Essa é a primeira vez que publico qualquer coisa relacionada a este projeto.

Poderia não estar comentando sobre isso, e só expor a função social que o projeto possui dentro do design como um todo, mas julgo necessário pois este relato fez parte fundamental do processo. O racismo quase impediu que esse projeto acontecesse, não apenas por me deparar com uma academia absolutamente branca e sem nenhum acúmulo das realidades atravessadas pelo resultado secular da mais absoluta opressão, mas porque que afetou profundamente a autoestima de nós, povos africano-diaspóricos e a nossa capacidade de acreditar na validez de nossa contribuição intelectual e política. O Cadê os pretos no design?, embora tenha passado por problemas de comunicação na academia pelos motivos apresentados anteriormente, nunca deixou de ser reconhecido ou considerado importante pelos setores do design em que ele tangenciou, e eu também nunca duvidei da importância deste projeto. O que eu duvidei foi da minha capacidade em ter autoria sobre ele e desenvolvê-lo. Esse é foi um dos feitos mais cruéis que o racismo já promoveu na minha existência.

O projeto nasceu do primeiro grande choque de realidade que obtive dentro da faculdade: não existia outra mulher preta no meu curso. A gravidade desta afirmação foi assustadora, mas desafiadora, e diante de todas as dificuldades apresentadas, hoje documento esta história com o objetivo de fazer um convite às reflexões sobre ensino e prática do design dentro de uma realidade que inclua novas narrativas, pertencentes ao desenvolvimento deste ofício. Tem como objetivo também promover aceitação de nós por nós mesmos dentro do campo, para que este não seja o mesmo percurso assustador e desolador que senti estar percorrendo ao ter esse choque.

Acredito profundamente que quando geramos narrativas autênticas com nossas próprias referências, damos um passo para a nossa liberdade. E esta escrita anda lado a lado desta crença. Mais do que nunca.

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Hon Porfirio

Compartilho com o mundo reflexões sobre africanidade e cultura na história do design.