ADULTO CONTEMPORÂNEO — Memorial
1. INTRODUÇÃO
Entre se tornar adulto e ser adulto existe um caminho, e parafraseando o seriado dos anos 90, Barrados no Baile, no décimo oitavo episódio da quinta temporada, “Que as pontes que eu queime iluminem o caminho.” O processo mental de se perceber adulto não necessariamente está alinhado com o processo físico de adultecer. É justamente nesse ponto que me encontro ao entrar no quinto semestre e ser apresentado ao tema do projeto de artefatos: gerações.
A princípio, reuni todos os pontos que me interessavam sobre a minha geração. Depois de uma análise minuciosa, percebi que todas essas reflexões estavam profundamente ligadas ao que venho vivenciando na psicanálise. Imagens, teóricos, temas e filmes pareciam girar em torno de uma questão central: que tipo de adulto quero ser? Foi então que tive uma epifania… Adulto Contemporâneo. Assim, justifico meu interesse em tratar sobre a geração Z a partir da perspectiva de alguém que está adentrando o mercado de trabalho, assumindo responsabilidades e aprendendo a cuidar da própria vida e a gerir as próprias vontades e não de maneira genérica atribuindo gostos e aversões de pessoas que não sou eu.
Se eu pudesse descrever exatamente essa sensação, seria algo próximo à música Your Legs Grow, da banda Nada Surf, do álbum de 2005 The Weight is a Gift. Nela, o eu-lírico canta: “Cold but not that deep, ’cause your legs grow”. Frio, mas não tão fundo, porque suas pernas crescem. Todo o meu processo de renascimento pessoal foi permeado por momentos desconfortáveis, em que parecia que eu me afogaria nas crises e emoções, mas sempre que a situação se tornava insuportável, minhas pernas cresciam, e eu conseguia dar passos maiores.
Carl Jung, psicanalista base da terapia que faço há três anos, aborda esse tema no livro Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Com o conceito de renascimento, ele se refere a um processo de renovação psíquica que ocorre em momentos de crise ou transição: “A transformação não ocorre diretamente pelo fato de o homem passar por morte e renascimento, mas indiretamente pela participação em um processo de transformação como se este se desse fora do indivíduo.” (Jung, 1976, p. 121)
Aplicando essa ideia ao processo de adultecer, percebemos a transformação do futuro potencial da criança para o presente completo do indivíduo após a individuação — conceito junguiano que descreve a unificação do inconsciente e consciente. Jung afirma que: “No processo de individuação, [a criança] antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo da unificação de opostos.” (Jung, 1976, p. 165)
Além disso, ele também pontua que a criança representa algo que se desenvolve rumo à autonomia, mas esse desenvolvimento exige um rompimento com a origem: “O abandono, pois, é uma condição necessária, não apenas um fenômeno secundário.” (Jung, 1976, p. 169)
Essas palavras refletem os sentimentos que experimentei nos momentos previamente mencionados, em que me senti abandonado, solitário, sem apoio ou amigos — situações que praticamente obrigaram minhas pernas e minha psique a crescerem.
Após reunir essas reflexões, compreendi o que meu inconsciente vinha tentando me mostrar com tantas representações medievais. O espelho estético desses conceitos é o Renascimento medieval. Esse movimento histórico representou uma nova forma de pensar e de ser, assim como o processo de se tornar adulto. A imaginação medieval de príncipes, reis, mártires, poetas e intelectuais faz um paralelo direto com a esperada vitória do consciente sobre o inconsciente. Como Jung descreve:
“O ato principal do herói é vencer o monstro da escuridão” e “A tomada de consciência é provavelmente a experiência mais forte dos tempos primordiais, pois é através dela que se fez o mundo, de cuja existência ninguém suspeitava antes.” (Jung, 1976, p. 168)
Dessa forma, consigo delimitar meu processo criativo reunindo os aspectos contextuais e culturais, transformando isso em um material visualizável e compreensível das minhas percepções acerca do tema gerações.
Porém, enquanto Carl Jung me oferece uma estrutura psíquica para entender o processo de transformação individual, senti a necessidade de explorar como minhas influências enfrentaram e escreveram sobre os desafios geracionais. É aqui que entra Joan Didion e o seu “Álbum Branco.”
2. INSPIRAÇÃO LITERÁRIA
A mesma incerteza que paira sobre o momento atual que vivemos socialmente e economicamente, pairava sobre o final dos anos sessenta.
No livro o Álbum Branco, Joan Didion disseca o colapso das certezas culturais de sua época e traz sua narrativa pessoal, fragmentada e crua que parece ter sumido nos dias atuais.
O fato do livro ser uma coletânea dos ensaios que ela escrevia na época me dá várias pistas para defender a minha intenção de que esse memorial flua como ensaio e não somente um texto objetivo e acadêmico, minhas sensações e reflexões são essenciais para quem ler esse texto, reflita sobre os pensamentos de um adulto Gen Z.
Didion diz especificamente em seu ensaio “O Álbum Branco” de 1979:
“Contamos a nós mesmos histórias para viver. A princesa está presa no consulado. O homem com os doces levará as crianças para o mar. A mulher nua na beirada da janela no décimo sexto andar é uma vítima de acídia, ou a mulher nua é uma exibicionista, e seria ‘interessante’ saber qual das duas. Dizemos a nós mesmos que faz alguma diferença se a mulher nua está prestes a cometer um pecado mortal ou prestes a registrar um protesto político, ou está prestes a ser, na visão aristofânica, resgatada de volta à condição humana pelo bombeiro vestido de sacerdote que é visível na janela atrás dela, o que está sorrindo para a lente teleobjetiva. Procuramos o sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de cinco pessoas. Interpretamos o que vemos, selecionamos a opção mais viável entre as várias escolhas. Vivemos inteiramente, especialmente se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens dispersas, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria mutável que é nossa experiência real.”
Através dessa leitura, legitimo não apenas a importância de um texto pessoal e fluído, mas também compreendo a função catalisadora das crises culturais e psíquicas dos processos em que concepções nascem, morrem e se transformam incessantemente para continuar sendo a sua essência. Ela escreve nos anos 70, e eu escrevo hoje, enquanto Jung defende em “O decorrer natural de uma vida, o indivíduo se torna quem sempre foi.” (Jung, 1976, p. 169)
Ainda, reforçando o contexto de transformação constante, é pertinente considerar o que o filósofo Jean Baudrillard apresenta em ‘Simulacros e Simulação’, de 1981. Seu conceito de simulacro reflete um mundo contemporâneo em que a distinção entre o real e o representado se torna cada vez mais tênue.
3. O Período Atual e o design da coleção
Em “Nesta passagem a um espaço cuja curvatura já não é a do real, nem a da verdade, a era da simulação inicia-se, pois com uma liquidação de todos os referenciais — pior: com a ressureição artificial em seu sistema de signos.” (Baudrillard, 1981, p. 9), é possível determinar o espaço em que eu e os outros tantos nascidos sob Plutão em Sagitário compartilhamos, onde bombardeados de representações sem um ponto de origem referencial, refletimos uma tal cultura de produções “sem alma” e geramos indivíduos com gostos pré-determinados, que esperam que o algoritmo das plataformas digitais entregue conteúdos que podem ser interessantes, ao invés do processo inverso, de ir atrás de coisas novas e refletir sobre o que atrai ou não. Não cabe a mim aqui, fazer acepção de valores em relação aos gostos e aversões daqueles que nasceram sob a influência de Plutão em Sagitário, como eu, mas sim refletir em um momento onde a reflexão parece ter deixado de ser algo importante. Ao mesmo tempo que essa camada massificada de uma informação que não informa e de um conteúdo que não contribui, afasta ainda mais a compreensão de quem somos.
É exatamente por isso que acredito que esse seja um tema tão pertinente a ser discutido nesse período, quanta mais se fragmenta a identidade, menos podemos agir como um ser humano individualizado, assertivo e no controle da própria história. Também por isso, que insisto na produção de histórias, dos registros dos sentimentos no momento em que se vive.
É vital para que nosso tipo, ou o tipo de adulto que eu sempre sonhei em ser, continue existindo e inspirando os próximos que virão a redescobrir paixões e interesses genuínos.
Precisamos desafiar o comodismo do algoritmo das big techs e a homogeneização de gostos. Em “Estado de massa integrada, fluxo transistorizado, de molécula magnetizada” (Baudrillard, 1981, p. 90), o filósofo ilustra a sociedade como uma rede inter conectada, onde as interações são mediadas por corporações. Essa dinâmica atrai indivíduos para um fluxo constante de conteúdo, mas gera uma desconexão da realidade. O “fluxo transistorizado” sugere uma velocidade e fragmentação que consomem experiências rapidamente, sem espaço para reflexão. Como consequência, mantém-se identidades superficiais, guiadas por tendência, em vez de uma genuína busca por significado e autenticidade.
Aproveito aqui para conectar isso ao design dos artefatos que compõem esta coleção. Minha intenção é desenvolver peças que aparentem ser uma coisa, mas que, na verdade, são outra — e que podem ser ambas simultaneamente. Essa ideia se relaciona aos objetos medievais que escondiam segredos e reflete minha própria maneira de existir.
Ao escolher explorar a materialidade dos sex toys, especificamente o silicone, provoco uma crítica e subversão dos conceitos sobre os ambientes onde o prazer de estar vivo tem a permissão de se manifestar.
Aliás, conforme Mikhail Bakhtin discute em “A Cultura Popular na Idade Média e Renascimento”, a estética do grotesco caracteriza um fenômeno em transformação, que é, como o reflexo do próprio período histórico, uma mudança ainda incompleta. Bakhtin enfatiza “as partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, onde o mundo se penetra nele ou dele sai” (Bakhtin, 1965, p. 23). Dois polos de mudança — o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim — expressos em uma forma ou outra (Bakhtin, 1965, p. 22).
Ao abordar a interseção entre a arte, a sexualidade e a identidade, em peças que não são uma mera representação, proponho uma reflexão sobre a complexidade da experiência de “adultescer”, reavaliando as possibilidades na era dos simulacros.
4. Conclusão
“Adultecer” não significa apenas uma passagem temporal em que um corpo pequeno se torna grande, é um processo interno, que envolve lidar com crises, mudanças e descobertas. Ao longo deste ensaio, mergulhei nas ideias de Jung, em que o renascimento psíquico e a individuação são processos fundamentais para compreender essa transição de criança para adulto. Através dessas lentes, foi possível organizar o que vinha sentindo e entender o que todas minhas referências apontavam sobre mim.
Joan Didion, com sua escrita fragmentada e crua, também me mostrou como o caos de uma geração não é exclusivo. Da mesma forma que ela viveu o colapso cultural dos anos 60 e 70, passamos por sensações semelhantes de inadequação e dissociação — consequência de um bombardeio incessante de informações e representações que diluem nossas experiências, como bem pontua Baudrillard. No meio desse turbilhão de imagens sem alma e identidades pré-moldadas pelo algoritmo, a missão de encontrar a própria verdade se torna ainda mais necessário.
É nesse contexto que o projeto V surge. Inspirado pelos objetos medievais que escondiam segredos e pelo grotesco da sociedade renascentista analisado por Bhaktin, essas peças não são apenas o que aparentam ser. Elas carregam essa dualidade do processo de adultecer — algo que parece uma coisa, mas pode ser outra, ou talvez seja ambas ao mesmo tempo. A escolha de materiais que subverte a ideia de onde o prazer e a estética podem existir e torna-se o médium que carrega todos esses recortes que juntei nessa pesquisa.
Por fim, acredito que todo o processo alquímico da joalheira me atravessou. Sabe-se acessórios refletem, de maneira geral, essa constante construção de quem somos e queremos ser, atribuindo um aspecto ao usuário, nesse caso o jeito honesto de ser e estar no mundo.
Afinal, ser adulto na geração Z não é tão diferente de outras épocas; o importante é registrar nossas histórias a partir da nossa própria perspectiva e ter a coragem de continuar renascendo.
Público Alvo
Composto por pessoas de 18 a 38 anos, predominantemente queer, com uma maior concentração de homens gays. São indivíduos com ensino superior que atuam em áreas criativas, como moda, relações públicas, styling e gerenciamento de marcas. Frequentam clubes, eventos de moda, show business e festas sexuais. Valorizam a autoexpressão, a liberação queer, o hedonismo e a psicanálise.
Esse público busca joias e roupas que reforcem sua identidade autêntica, sem estereótipos, e tem uma renda média de até R$6000. Preferem marcas inovadoras como Misci, Jalaconda, Diesel, Jean Paul Gaultier e Heaven by Marc Jacobs, consumindo principalmente via e-commerce e shoppings.
Estão presentes no Instagram, TikTok e Pinterest, e seguem influenciadores como Tyler Mazaheri e Troye Sivan. Utilizam frequentemente apps de pegação como Grindr e Feeld.
Materialidades e Paleta de Cores
A materialidade do projeto e o tipo de produto oferecido refletem a dualidade do processo e do momento que vivemos: algo que parece ser uma coisa, mas não é, e que pode ser as duas ao mesmo tempo. A maioria dos artefatos propostos para esta coleção são brinquedos sexuais, enquanto aqueles que não são, funcionam como acessórios que podem alimentar essa fantasia. Para mim, a libertação da sexualidade está profundamente conectada ao meu processo de adultescer, assim como o grotesco era uma imagem predominante na literatura do Renascimento. Inicialmente, minha intenção era criar algumas peças em silicone, mas durante os testes, não consegui atingir a textura desejada. Para cumprir os prazos, optei por confeccioná-las em resina; portanto, o que você vê aqui são protótipos.
Também, descobri durante o processo, que existe um tipo específico de resina que não é tóxica para o corpo humano, mas isso somente quando eu já estava com as peças feitas em resina de poliéster prontas, portanto, os protótipos não podem ser utilizados como brinquedos. Isso não impede, caso essa coleção seja produzida, de realizar com materiais biosseguros.
Além disso, optei pelo alumínio para confeccionar a coroa e pelo aço para a lâmina da espada. A escolha desses materiais se deu pela praticidade: a chapa de alumínio foi fornecida pelo meu pai, que a encontrou em um ferro-velho, enquanto a peça de aço veio do professor André, sendo um material de sucata do laboratório de jóias.
ILUSTRAÇÕES
8. EDITORIAL
FICHAS TÉCNICAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
· BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular no Renascimento e Idade Média: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2008.
· BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
· DIDION, Joan. O álbum branco. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2021.
· JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS:
- Beverly Hills 90210. Temporada 5, Episódio 18. Fox Broadcasting Company, 1995. Estados Unidos.
- NADA SURF. Weight is a Gift [Álbum]. City Slang Records, 2005.