Se é greve ou se é locaute? O segredo, meus amigos, são os nervos

Hugo Souza
6 min readMay 26, 2018

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Paralisação dos caminhoneiros na Rodovia Presidente Dutra, no Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil).

Poucos dias antes de o governo Michel Temer acionar as Forças Armadas para desobstruir a andamosa democracia brasileira, a Autopista Fluminense (Artéris) moveu, na 4ª Vara Federal de Niterói, uma ação de “reintegração de posse”, contra piquetes de caminhoneiros, do trecho da BR-101 entre as cidades de Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, e Niterói, na região metropolitana do Rio. A Artéris (uma das seis empresas ou consórcios conhecidos como “Reis das Estradas”, porque controlam quase 70% das rodovias nacionais privatizadas) é dona do trecho desde 2008 e até 2033, por “concessão federal”. Não é só o petróleo que já não é nosso, portanto. Aliás, não são só as cidades de Curitiba e do Rio de Janeiro que têm briosos juízes titulares de suas varas federais.

Em favor da Artéris e contra bloqueios rodoviários decidiu o juiz titular da vara federal de Niterói, William Douglas Resinente dos Santos. Na decisão liminar, o sermão é militar: “a contumaz tibieza dos governos em lidar com a arruaça e a baderna que se disfarçam de democracia vem tornando cada vez pior o cotidiano dos brasileiros”. O juiz federal William Douglas convocou mesmo o apoio do Comando do Exército contra o comando de greve, e quando já havia negociação entre o governo e lideranças do movimento. A Artéris se pronunciou a respeito, dizendo que solicitara à justiça apoio policial, “mas a entrada do Exército foi decisão da 4ª Vara de Niterói”. O juiz também comentou a própria sentença, no Facebook: “Não existe direito de aborrecer”.

Assíduo no “Face” e na Igreja de Cristo, William Douglas postou no início de abril, pelos dias em que Deltan Dallagnol anunciava jejum e oração pela prisão de Lula: “Sou professor, escritor, juiz federal e cidadão. Exercendo a laicidade do Estado e meus direitos fundamentais, eu também jejuo e oro pelo meu país”. Às vésperas de participar como “preletor” em um culto de fim de ano no Bope, em dezembro do ano passado, William Douglas parecia animado: “Cruz na caveira!”. Em várias manifestações que faz online, o juiz faz retinir o grito de guerra do Exército brasileiro: “SELVA!!!”. Autor do best-seller “Como Passar em Provas e Concursos”, é tido mesmo como o “guru dos concursos” no Brasil.

Once upon a time as ‘condições objetivas’

Nesta sexta-feira, 25 de maio, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes deu o segundo aval judicial para acender o rastilho de pólvora entre os paióis dos piores desfechos possíveis para a crise brasileira, que, para além da crise de abastecimento, já dura dois anos. O primeiro tinha vindo de Niterói, e era mais uma vez a primeira instância do judiciário sendo didática sobre as condições e sobre o equilíbrio de forças da luta político-ideológica no Brasil atual. O professor William Douglas, muito probo, apostolar, jejuador, “selva”, “caveira”, guru da concursocracia meritocrática, fez lembrar que é precisamente sobre essas bases que no Brasil “vivemos um momento democrático extraordinário”, e que à base desses “princípios” é que certas forças amealharam “apoio da sociedade” para pôr na rua o bloco da Grande Marcha Para Trás.

Alexandre Frota apoia caminhoneiros na Régis Bittencourt: ”Se tiver que ser com intervenção militar, que seja” (Foto: Isabel Fleck/Folhapress)

De outro lado, de forma não menos instrutiva sobre a situação atual do Brasil, setores da esquerda conclamam à disputa dos acostamentos com Jair Bolsonaro e Alexandre Frota. Assim, não mais que de repente, e logo numa hora dessas: com minguada ou nula capacidade de mobilização popular; sob falta de unidade das forças democráticas; sem um programa claro para as massas debaixo do braço; sem lideranças tão destacadas quanto consequentes — muito menos com mínimo trânsito em uma “família estradeira” por certo heterogênea, como é até a família Addams, mas de conhecido brio à moda “mito”, levando na boleia “pleitos difusos”, por assim dizer, se quisermos lhe fazer uma bondade.

Tudo o que um dia a esquerda já levou em conta e chamou, afinal, de “condições objetivas”, sem avaliação das quais sua luta política tende a se resumir à luta para ver o circo pegar fogo. “Quer ver o circo pegar fogo”, disse o presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), tido como principal liderança da greve, quando Eunício Oliveira, presidente do Congresso Nacional, pegou um avião para seu curral eleitoral no auge das negociações com os caminhoneiros em Brasília. Fazer o circo pegar fogo, ou melhor, explodir a bomba do combustível é o que parece interessar, na verdade, ao grupo político entrincheirado no Palácio do Planalto, mas acossado pela proximidade de eleições que significam pôr em risco o empreendimento golpista, e que deve deixar seu “capitão” à sorte de foros mais incontroláveis. Isso a que chamados de governo Michel Temer.

Fracassada a “Solução Temer”, o vereador do Rio da Janeiro Otoni de Paula (PSC) propõe uma nova, ainda que velha.

Tutela e esparrela, não necessariamente nessa ordem

Num dia, o governo Michel Temer anuncia um acordo fake com lideranças caminhoneiras que não gozam exatamente de prestígio nas estradas. No dia seguinte, diante da “renitência” de uma “minoria radical”, Temer se anuncia com “coragem para exercer autoridade”, e anuncia um decreto nacional de Garantia da Lei e da Ordem. O jornal O Globo informa que a GLO foi uma requisição do Comando do Exército. O comandante do Exército, general Villas Bôas, aparece mais uma vez no Twitter, dessa para dizer que a tropa sai dos quartéis “em apoio às instituições e pela democracia”, mais ou menos dois anos depois de dizer que o país tinha “as instituições funcionando perfeitamente bem, o que dispensa a sociedade de ser tutelada”.

Agora, e portanto mais ou menos dois anos depois da “Solução Temer” — negligenciada pela esquerda quando já era urdida no Jaburu — e nessas condições propícias, isto sim, para centelhas inflamadoras daquele rastilho de pólvora, flerta-se com uma “Solução Otoni de Paula”: se o povo se unir com os caminhoneiros, Temer cai como caiu Allende. Seria mesmo uma grande e macabra ironia se a esparrela da “greve contra o neoliberalismo” precipitasse para a prolongada crise brasileira desfecho semelhante àquele depois do qual aconteceu a primeira experiência de neoliberalismo da história, ou seja, no Chile depois do golpe de Pinochet. De fato, desse movimento pode surgir algo novo, ainda que velho.

É do chileno Roberto Bolaño o romance “Amuleto”, do qual a protagonista é Auxilio Lacouture, uma riponga uruguaia que vive na Cidade do México, onde escapa à repressão ao movimento estudantil de 1968 escondendo-se por semanas no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México. Ali, malocada no banheiro feminino enquanto os coturnos passeiam lá fora, começa a pensar nos dentes que só depois viria a perder (Isso mesmo. Leiam Bolaño). Nunca viria a perder, porém, o ânimo para frequentar os ambientes da literatura e da esquerda. Não sobre os revezes do passado, do presente e do futuro, mas sobre ter que a tapar a boca sempre que fala ou sorri, Auxílio revela o segredo do seu jogo de mãos prodigioso: “O segredo, meus amigos, não penso em levar para o túmulo (não há que levar nada para o túmulo). O segredo são os nervos”.

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