Balanço crítico-etnográfico das Diplomações da Resistência da USP (FFLCH e Faculdade de Medicina)
Tenho estudado as práticas de construção de memória das vítimas da ditadura da USP nos últimos meses, e descobri que uma das 14 recomendações da Comissão da Verdade da USP teria sua continuação no ano de 2024: o projeto da Diplomação da Resistência da USP.
O projeto começou em 2023, com uma colaboração entre a USP, a PRIP, Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento e a Vereadora Luna Zarattini, com a diplomação dos estudantes de Geologia mortos pela ditadura Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Queiroz. Infelizmente não pude estar presente nesse evento, mas pretendo assistir a gravação no Youtube.
A diplomação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Em 2024, foi anunciada pela USP a diplomação pós-mortem de 15 estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo, atual FFLCH-USP. Esses estudantes são:
Antonio Benetazzo, Filosofia
Carlos Eduardo Pires Fleury, Filosofia
Catarina Helena Abi-Eçab, Filosofia
Fernando Borges de Paula Ferreira, Ciências Sociais
Francisco José de Oliveira, Ciências Sociais
Helenira Resende de Souza Nazareth, Letras
Ísis Dias de Oliveira, Ciências Sociais
Jane Vanini, Ciências Sociais
João Antônio Santos Abi-Eçab, Filosofia
Luiz Eduardo da Rocha Merlino, História
Maria Regina Marcondes Pinto, Ciências Sociais
Ruy Carlos Vieira Berbert, Letras
Sérgio Roberto Corrêa, Ciências Sociais
Sérgio Roberto Corrêa, Ciências Sociais
Tito de Alencar Lima, Ciências Sociais
Fiquei sabendo do evento ao assistir a uma sessão da Congregação da universidade, antes mesmo de ser colocada para votação. Logo após sua aprovação, entrei em contato com um membro da PRIP que divulgou a continuidade do projeto no Jornal da USP. Comuniquei a ele meu interesse, enquanto ainda era membro do Centro Acadêmico do curso de Ciências Sociais, o CeUPES, de construir esse projeto em conjunto, com a intenção de ressaltar ao curso a importância da militante que dá nome ao CA, Ísis Dias de Oliveira. Ele me respondeu de forma super solícita e disse que comunicaria nosso interesse à faculdade. Dessa forma, terminei minha atuação enquanto membro de uma entidade estudantil, pois saí por outras questões antes que ocorresse a reunião entre organização e CAs da faculdade.
Começaram os vídeos e matérias no site da FFLCH divulgando o evento, que me geraram ainda mais expectativa. No entanto, fiquei sabendo por colegas que a organização não estava tão aberta a sugestões e colaboração. Além disso, a data do evento foi alterada do dia 16 de agosto para o dia 26 de agosto com pouquíssima divulgação, sendo postado um vídeo igual com a nova data, sem avisos específicos.
Dias antes da diplomação da FFLCH, tive a oportunidade de presenciar a diplomação de Honestino, outro militante morto pela ditadura diplomado pela UnB, tendo o diploma entregue a sua filha em São Paulo. Em uma cerimônia pequena, com a presença de familiares e companheiros de luta, todos que queriam expor suas emoções tiveram a liberdade para tal antes da entrega do diploma. Foram depoimentos emocionantes, de grande resgate de histórias de luta e da vida de Honestino. Nesse mesmo dia, pude conversar com Adriano Diogo, ex-estudante de Geologia na USP, militante da ditadura e que presidiu a Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, do Estado de São Paulo. Ele afirmou que a diplomação da USP veio extremamente tarde, 50 anos depois, enfatizando que é uma cerimônia performática. Na semana anterior, também foi anunciada a cerimônia de Diplomação da Resistência da Faculdade de Medicina, na quarta-feira da mesma semana, que viria a entregar os diplomas de dois estudantes.
Finalmente, chegamos ao dia da Diplomação da Resistência da FFLCH. Minha primeira impressão foi ficar chocado com a quantidade de pessoas presentes. Fiquei feliz. A sala ficou lotada antes mesmo do início, em especial de jovens do movimento estudantil, idosos e familiares. Muitos, muitos abraços mesmo. Um começo emocionante mesmo antes do início da cerimônia. No entanto, o espaço acabou ficando pequeno para tantas pessoas que queriam assistir. Pessoas sentadas no chão, portas lotadas, e o auditório ao lado foi aberto para apresentar a transmissão ao vivo no Youtube.
A cerimônia começou e a mesa foi apresentada: “magnífico” reitor da USP, vice-reitora, pró-reitora de inclusão e pertencimento, pró-reitor de graduação, diretor da FFLCH, vice-diretora da FFLCH, presidenta da UNE, presidenta da UEE, representante do DCE Livre da USP e uma representante dos familiares e amigos, sobrinha-neta de Helenira Resende. Confesso que até o momento não sei quem era a pessoa que estava apresentando e mediando a cerimônia. Mesmo colaboradoras do projeto, como a vereadora Luna Zarattini, não puderam estar na mesa. Durante a cerimônia toda, apenas membros da mesa puderam falar.
A cerimônia se iniciou com uma abertura, um vídeo mostrando os estudantes e um momento para cantar o hino do Brasil. Em seguida, falas de membros da mesa. Falas tocantes, em especial da representante dos familiares, e uma manifestação do DCE ao levantar e distribuir cartazes com o nome das vítimas para os presentes. Os estudantes puxaram diversas palavras de ordem entre as falas reforçando a presença do movimento estudantil na luta contra a repressão e a ditadura. Na fala da pró-reitora de inclusão e pertencimento, foi anunciada a reinauguração do Memorial da Praça do Relógio com nomes que estão faltando, cumprindo mais uma das recomendações da Comissão da Verdade da USP. Além disso, também me marcou o diretor Paulo Martins comentando que esteve em um congresso da UEE ainda na clandestinidade no final da ditadura, ainda na sua graduação. Helenira foi muito relembrada por todos como grande símbolo de luta e resistência enquanto mulher negra líder no movimento estudantil, que terminou tombada pela ditadura.
Após o fim das falas, chegou o momento da entrega dos diplomas. Na minha opinião, o momento mais confuso, desorganizado e frustrante. Pareceu uma grande lista de nomes sem individualidade alguma. Começaram anunciando o nome do diplomado, o estudante que faria a entrega e o familiar que receberia, ou o outro estudante, caso não houvesse familiares vivos ou presentes. Todos os estudantes eram representantes de entidades estudantis, sendo elas o DCE e os Centros Acadêmicos da FFLCH, CeUPES, CAHIS, CAELL, CAF e CEGE. Gostei muito disso, nossas entidades estudantis precisam ser valorizadas.
No anúncio de cada estudante diplomado, eu gostaria muito de poder ter ouvido um breve resumo da história dele, ou, no mínimo, uma fala do recebedor do diploma, em especial familiares, a respeito da pessoa. Uma parente de uma das diplomadas preparou uma carta e tentou ler ao receber o diploma, mas foi interrompida pela organização, alegando que se uma pudesse fazer, todas deveriam poder, e isso não seria possível, que no final abririam espaço para qualquer um que quisesse se manifestar.
Compreendo que 15 pessoas é um número grande, diferente de apenas 2 estudantes como no IGc ou na FMUSP. São muito mais familiares e companheiros de lutas, que tomariam muito mais tempo de fala. Apesar disso, a cerimônia demonstrou clara prioridade para ouvir as figuras da institucionalidade uspiana, vangloriando o trabalho institucional nas variadas instâncias, deixando de lado a luta do movimento por resistência, das famílias e do movimento estudantil por justiça e memória. O relatório final da Comissão da Verdade da USP foi lançado em 2018, com a recomendação de diplomação dos estudantes mortos e desaparecidos, e só em 2024, seis anos depois, a diplomação foi realizada, e está ainda sem previsão para acontecer em alguns institutos.
Não sei vocês, mas eu preferiria ouvir as falas de familiares e companheiros de militância do que falas robotizadas de reitorias que sei que foram obrigadas a fazer isso e a estarem presentes neste evento. Assim como na emocionante diplomação de Honestino, eu gostaria muito de ter ouvido o depoimento de cada um dos recebedores dos diplomas.
Além da forma de condução, a entrega dos diplomas também foi completamente desorganizada. Além de ser super rápida, também foi super atropelada. Havia uma multidão de gente cercando as pessoas envolvidas na entrega para fotografar e “ver mais de perto”, ou seja, não vimos nada. Antes mesmo das pessoas descerem do palco com o diploma, o próximo estudante já tinha sido chamado. Uma verdadeira confusão, que parecia ter o objetivo de acabar o mais rápido possível. Não enxerguei nem metade das entregas de diplomas e fotografias.
Ao fim da entrega dos diplomas, tivemos a fala do Reitor da USP e dois vídeos, um de depoimentos de parentes, e um dos estudantes dos centros acadêmicos da FFLCH. Após esses passos, foi declarado o fim da cerimônia, com um simples adendo de que o microfone ficaria aberto para quem quisesse. Todos da mesa se levantaram e se retiraram imediatamente. A maioria do público também. Fiquei para ouvir as falas, pois considero ser a parte mais importante. A familiar que tinha a carta foi até o microfone, mas disse que não faria mais sentido ler. A vereadora colaboradora Luna falou e agradeceu. O que mais me tocou foram as falas de companheiros de luta que fizeram questão de se manifestar, contar suas histórias, que militaram com quase todos os estudantes mortos, reconhecer a importância do evento, e até mesmo destacar as falhas dessa cerimônia, como a falta de falas, e a fala de Adriano Diogo destacando a ausência de homenagem a uma das mortas pela ditadura com vínculos com a USP, justificando que ela já teria se formado. Além disso, uma diretora do DCE destacou que a reitoria faz o que sempre faz, diz que podemos falar, mas vira as costas e não nos ouve.
Apesar dos problemas, confesso que chorei nas entregas dos diplomas, em especial o de Ísis Dias de Oliveira. Foi uma cerimônia problemática, mas que ainda carrega enorme significado e símbolo. Muito emocionante ter a oportunidade de assistir esse momento de reparação, memória, justiça e verdade.
A diplomação da Faculdade de Medicina
A diplomação da Faculdade de Medicina da USP foi divulgada pela PRIP na semana anterior ao evento. Achei corrido, poderia ter sido melhor, mas, junto ao meu grupo, consegui ir.
Chegando lá, notei diferenças marcantes. Muito mais idosos do que jovens, diferente da FFLCH. Muito menos figuras do movimento estudantil organizado presentes, sendo as que estavam lá figuras da UEE e representantes de Luna Zarattini, e membros do DCE. O evento foi realizado em um teatro com capacidade suficiente para acomodar todos os presentes. Na fileira em frente à minha, estavam reservadas cadeiras para o coral.
A cerimônia se iniciou da mesma forma, com uma fala de abertura e apresentação do evento e um vídeo com as breves histórias dos alunos diplomados. Então, o coral, que descobrimos que é da própria Faculdade de Medicina, subiu ao palco para cantar o hino nacional. Em grande surpresa, após o fim do hino, o coral também cantou “Cálice”, famosa música de Chico Buarque em resistência à ditadura militar. Para mim, foi o momento mais especial e emocionante de ambos os eventos. Fiquei arrepiado e muito tocado. Veja o vídeo.
A apresentação do coral se encerrou e a mesa se apresentou: “magnífico” reitor da USP, vice-reitora, pró-reitora de inclusão e pertencimento, pró-reitor de graduação, diretora da FMUSP, diretor de direitos humanos e políticas de reparação, memória e justiça pela PRIP, presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, e estudante de medicina representante do DCE Livre da USP. Todas as falas de membros da mesa foram especiais, em especial as do diretor de direitos humanos, que também anunciou a diplomação do Instituto de Psicologia no final de outubro, e a do representante do DCE. Foi uma das melhores falas que já ouvi vindas do movimento estudantil, relacionando muito bem o histórico e papel ativo da USP na ditadura, suas sequelas e consequências até os dias de hoje, e colocando bem o papel do ME. Veja a fala dos membros do DCE na íntegra.
Foi realizada uma fala tocante sobre memória por um homem, acredito que ex-estudante, que não estava na mesa, que reforçou muito bem que memória não é história, e destacando a memória apagada, daqueles que foram considerados inferiores ou perigosos para determinada ordem social, além de ressaltar a importância da memória coletiva, expressada pela diplomação. Veja na íntegra.
Após as falas, foi realizada a entrega dos diplomas para as irmãs dos estudantes diplomados, Gelson Reicher e Antônio Carlos Nogueira Cabral, com muitos aplausos. 2 representantes institucionais fizeram a entrega de cada diploma para as senhoras, que também receberam buquês de flores e uma sacola com alguns presentes. Não houve tumulto e conseguimos ver melhor. Gostaria de ter ouvido mais sobre a história de cada um deles, mas, de toda forma, foi muito emocionante a entrega para familiares vivas e com tanto respeito.
Realizada a entrega de diplomas, o microfone foi aberto para ex-estudantes da Faculdade de Medicina fazerem falas. A primeira foi em homenagem a demais estudantes que foram perseguidos. Em seguida, 2 estudantes da FMUSP perseguidos e presos pela ditadura puderam falar, contando sobre suas experiências naquele período com a própria faculdade. A fala de um deles, Reinaldo Morano, me tocou especialmente, pois teve seu retorno à FMUSP negado após 7 anos preso, além de denunciar professores da faculdade apoiadores da ditadura e a entrega de livros para as irmãs dos diplomados com homenagens a esses professores. Ele destacou muito bem o papel da USP na época, mas também ainda hoje enquanto apoiadora da ditadura e que continua com esse papel. Isso tudo na frente do reitor da universidade rs. Infelizmente a memória da minha câmera acabou e não pude registrar a fala.
Pudemos notar que, ao longo das falas dos ex-estudantes, ouvíamos conversas ao nosso redor e muitas cabeças balançando. Quando iam falar de algum professor, pessoas atrás de mim chutavam quem era, e acertavam. Quando falavam de algum colega ou apontavam na própria plateia, muitas reações de felicidade e saudade. O público da diplomação era majoritariamente de colegas de época, colegas de Reicher e Cabral.
A cerimônia foi encerrada com a fala do reitor. Ao fim, pudemos ver as pessoas se procurando para conversar e matar as saudades. Fomos atrás de Reinaldo, que ao identificar que éramos do curso de Ciências Sociais, imediatamente falou de Basia, uma estudante de sociais que foi internada em um hospital psiquiátrico na época da ditadura, taxada de louca, e nunca mais voltou. Basia não foi diplomada. Ele afirmou que possui documentos e gostaria que fôssemos atrás de sua diplomação.
Conclusão
As duas cerimônias foram muito emocionantes e carregam enorme significado na construção da memória da ditadura na USP e de seus mortos e desaparecidos. 50 anos depois, pudemos lembrar desses estudantes que lutaram pelos direitos humanos, mas foram torturados e assassinados pela ditadura militar.
De forma geral, gostei mais da diplomação da Faculdade de Medicina. Foi um espaço bem preparado, com uma boa organização, presença do coral e forte presença de colegas que passaram por lá, atingindo não apenas os estudantes de hoje, mas aqueles que estudaram junto aos estudantes diplomados. A parte mais especial para mim foi poder ouvir as falas de colegas perseguidos, que sobreviveram para contar a história por si mesmos. De certa forma, isso deu um caráter menos institucional e mais pessoal ao evento.
Apesar dos pontos positivos da diplomação da Medicina, a presença do Movimento Estudantil na Diplomação da FFLCH também foi muito positiva. A entrega dos diplomas realizadas por membros de entidades que os próprios diplomados faziam parte, a manifestação com cartazes, a presença de entidades como a UNE e a UEE e as palavras de ordem trouxeram enorme importância para o ME da época e hoje. Quase todo, se não todos os diplomados fizeram parte do Movimento Estudantil, estiveram nos congressos de entidades, foram presos nesses congressos e o encaravam como ferramenta de organização. A presença do ME neste evento reconhece a luta dessas pessoas e fará com que seu legado esteja presente, hoje e sempre.
Para as próximas etapas de reparação, aguardamos a diplomação do Instituto de Psicologia e a reforma do memorial da Praça do Relógio. As diplomações foram emocionantes e se mostraram necessárias para que a memória dos assassinados pela ditadura militar siga viva. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!