Melhores de 2018: Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Ieda Marcondes
3 min readAug 9, 2018

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Joaquin Phoenix e Ekaterina Samsonov.

Quinze anos atrás, o canal Cinemax era uma das poucas fontes de filmes independentes no Brasil. Quem passasse por ele, em uma noite qualquer, poderia assistir a uma pequena joia de uma diretora, até então, iniciante. “O Romance de Morvern Callar”, segundo longa-metragem da escocesa Lynne Ramsay, conta a história de uma jovem (interpretada por Samantha Morton), que, após o suicídio inexplicável do namorado, decide vender os direitos de um manuscrito deixado pelo morto e gastar parte do pagamento em uma viagem para a Espanha com a melhor amiga. O que de fato acontece na história não importa, a trama é secundária. Essencial mesmo é a mistura de cores e sons que transmite o estado de espírito de Morvern em sua jornada pessoal de recomeço.

Após um hiato de nove anos, Ramsay retornou à direção com o polêmico “Precisamos Falar Sobre Kevin”, relato brutal e melancólico de uma mãe (Tilda Swinton) sobre a criação de seu filho psicopata (Ezra Miller), quase um “Psicose” às avessas. Maior e mais ambicioso do que “Morvern Callar”, o debate gerado ao redor do filme deveria ter sido suficiente para que Ramsay recebesse carta branca em produções futuras. Não foi o que aconteceu. “Eu ganhei a reputação de ser difícil,” disse a diretora. “Às vezes você tem de falar, ‘isso não está certo’. É preciso defender o que você acredita[…]Quando um homem faz isso, ele é visto como artístico — ‘ser difícil’ é sinal de genialidade. Mas não é a mesma coisa com mulheres. É uma indústria dura e mais dura ainda se você for mulher.”

Apesar de adaptar livros e de escrever os próprios roteiros, a sensibilidade de Ramsay não é literária. Antes de se formar como cineasta, estudou pintura e fotografia, o que explica o esmero de seus enquadramentos e o seu estilo de contar histórias. Seus filmes, em geral, giram em torno de personagens traumatizados (sem nunca tratá-los como vítimas indefesas) e buscam retratar memórias, sonhos e emoções sob uma perspectiva mais íntima e subjetiva, em que o visual carrega mais informação do que um simples diálogo ou outro recurso narrativo mais conveniente. Sua obra é contemplativa, mas nunca inacessível ou indiferente — envolve e intriga o espectador, provocando sensações que permanecem muito tempo depois dos créditos aparecerem.

Seu trabalho mais recente, “Você Nunca Esteve Realmente Aqui”, ganhou os prêmios de melhor roteiro e melhor ator para Joaquin Phoenix no último festival de Cannes, onde o filme foi aplaudido de pé. Nele, Phoenix interpreta Joe, um ex-fuzileiro naval traumatizado, que sofre com flashbacks tanto da guerra como de sua infância abusiva, e que é contratado por um senador (Alex Manette) para localizar e resgatar a sua filha sequestrada (Ekaterina Samsonov). A missão parece simples, mas as consequências são avassaladoras. “Você Nunca” é de uma violência chocante, mas nunca estilizada ou glamurizada. Joaquin Phoenix não é Liam Neeson. Barbudo e acima do peso, seus golpes são brutais e diretos, sem técnica alguma, mas ele entende como ninguém o impacto da violência.

Ramsay adaptou a obra de Jonathan Ames para contrapor violência e empatia — violência sendo o aspecto mais chamativo, por motivos óbvios, e empatia como um desejo latente, um tema principal que nunca é explícito pelo roteiro, mas apenas sugerido pelas imagens. Um exemplo disto é uma bela cena em que Joe se deita ao lado de um capanga ferido para que ele não tenha de morrer sozinho. São as conexões que fazemos com outras pessoas, mesmo que por alguns instantes, que nos machucam tanto e, ao mesmo tempo, nos salvam de um desespero profundo. Muitos críticos citaram “Taxi Driver” e “Drive” como influências, mas o anti-herói de Ramsay é mais vulnerável e a menina a ser resgatada não é o velho clichê de uma donzela em perigo.

A música de Jonny Greenwood, da banda Radiohead e também colaborador frequente de Paul Thomas Anderson, acompanha esta viagem quase onírica de violência e conexão humana, em que a beleza dos sons e das imagens conta com o respaldo da atuação sensível de Phoenix e da complexidade da visão de Ramsay. Não é um mero exercício de estilo, mas o estilo utilizado de forma tão coerente, e sempre em serviço da substância, que torna “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” uma experiência cinematográfica inesquecível e um dos melhores filmes de 2018, se não for o melhor.

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Ieda Marcondes

“I have always preferred the reflection of the life to life itself.” François Truffaut donieda[at]gmail