15,6 quilômetros de inverno

Por causa de uma foto antiga, coloquei minha mochila nas costas e fui parar no Winterlude, um enorme festival de inverno que acontece anualmente em Ottawa.

Igor Mariano
13 min readJan 18, 2018

Em 2013 tranquei minha faculdade no Brasil e fui morar em Toronto. Enquanto estava lá, num dia ocioso de outono, acabei encontrando um trabalho de escola que eu fiz no ensino fundamental sobre o Canadá. Na época, nem imaginava que um dia moraria naquele país. Entre as imagens utilizadas na simplíssima apresentação de slides me deparei com a foto de um rio congelado cruzando uma cidade, passando debaixo de pontes e ruas, com dezenas de pessoas patinando em sua superfície. Eu não sabia, mas esse era o Canal Rideau, que durante o inverno se torna a maior pista de patinação natural do mundo.

A foto que inspirou esse sonho.

Eu pesquisei mais sobre o assunto, descobri que aquela foto tinha sido tirada em Ottawa e percebi que eu jamais estaria tão perto de lá como estava naquele momento. O viajante dentro de mim não pôde ser controlado. Sem nunca ter patinado no gelo e antes mesmo que o primeiro floco de neve tivesse caído no Canadá, eu já tinha decidido ir para a capital do país viver aquela experiência, mesmo que fosse sozinho.

O frio chegou, os rios e lagos congelaram, eu levei tombos praticamente todos os fins de semana até estar craque nos patins de gelo, e no dia primeiro de fevereiro de 2014 peguei minha mochila, vesti um casaco e fui sozinho em direção àquele lugar que até então só tinha visto pela internet.

O melhor jeito de ir de Toronto para Ottawa no inverno é de trem. Ir de ônibus ou carro, além de ser um pouco mais demorado, te coloca à mercê de nevascas e estradas que podem ser interditadas a qualquer momento. Ir de avião, mesmo em uma companhia aérea low cost, acaba saindo mais caro que ir de trem. Também não posso negar que desde o Brasil eu já tinha uma quedinha pelos trilhos — e essa quedinha se tornou uma fervorosa paixão depois de fazer isso diversas vezes no Canadá, com um sistema ferroviário muito mais extenso e avançado que o brasileiro.

Viajei com a VIA RAIL, principal companhia ferroviária do país, em um percurso curtinho de 4 horas: Toronto e Ottawa ficam na província de Ontario, a 450 km de distância uma da outra. E aí vai uma dica: menores de 25 anos podem comprar passagens usando a tarifa Escape, que te dá um desconto na preço da classe econômica.

Chegar a Ottawa foi como chegar em qualquer lugar que você nunca esteve antes: você vê aquele monte de coisas novas ao seu redor, não sabe bem pra onde andar, não sabe como ir da estação para seu hostel, e quando acha o ponto de ônibus não faz a menor ideia de qual linha pegar. Felizmente eu já estava no Canadá a mais de seis meses e tanto a língua quanto a cultura já não me eram estranhas — o que quer dizer que eu já sabia que os canadenses são muito simpáticos e dispostos a ajudar quando você pede informação.

O que eu não sabia é que Ottawa, por ser a capital nacional e por estar na fronteira com Quebec, que é uma província francófona, é umas das raríssimas cidades que fazem valer o rótulo canadense de país bilíngue. É que a grande maioria das cidades do país fala apenas francês ou apenas inglês, usando a outra apenas como segunda língua, da qual os locais normalmente sabem apenas o básico. No entanto os habitantes locais de Ottawa são realmente bilíngues no sentido mais literal da palavra, misturando constantemente palavras em inglês e francês, às vezes até frases inteiras, muitas vezes sem nenhum tipo de transição entre uma língua e outra.

Não se assuste com o choque inicial e nem ache estranho se parar de entender o que estão falando no meio de uma frase: use a língua que você tiver mais segurança e não tenha medo de pedir para eles repetirem, explicarem ou mesmo traduzirem o que estão falando. Ao contrário dos francófonos, eles não se sentem ofendidos se tiverem que falar em inglês ao invés do francês e vice-e-versa.

O hostel onde me hospedei se chamava Ottawa Backpackers Inn (literalmente “pousada dos mochileiros em Ottawa”) e era uma clássica casa canadense adaptada, muito bem localizada, perto dos principais pontos turísticos e conveniências. Cada quarto tinha o nome de um continente, e cada cama era batizada por um ponto turístico daquele lugar. Eu fiquei no quarto Ásia, que era o quarto para 10 pessoas, e minha cama era batizada de “muralha da china”. Cada hóspede tem direito a um armário pequeno (eles não fornecem o cadeado, leve o seu), uma tomada e uma luminária de parede.

É imprescindível conferir e pesquisar sobre a localização do hostel onde você vai ficar, mas minha dica é sempre dar preferência para albergues próximos aos principais pontos turísticos ou atividades que você faz questão de fazer. Ter ficado hospedado em um local tão central na cidade fez com que eu economizasse muito dinheiro em transporte, e embora eu tenha andado muito, o melhor jeito de conhecer uma cidade é a pé. A única vez que precisei pagar passagem de ônibus foi para ir e voltar da estação de trem.

Union Station em Toronto (esq.) e Ottawa Backpackers Inn (dir.)

“Foi nessa viagem que eu aprendi o porquê de grande parte dos mochileiros evitarem o percurso turístico tradicional.”

TURISMO

Não vem ao caso uma narrativa detalhada de cada ponto turístico que visitei e muito menos descrever o que fiz em cada dia, minha meta naquela viagem era muito clara: patinar os 8 quilômetros do Canal Rideau congelado. O único comentário pertinente é que foi nessa viagem que eu aprendi o porquê de grande parte dos mochileiros evitarem o percurso turístico tradicional.

Quando fui nos pontos turísticos comuns, mais voltados “para turista ver”, foram as únicas vezes que o fato de estar viajando sozinho me incomodou. Ver todas aquelas famílias e grupos de viagem interagindo ao seu redor te rouba a tranquilidade de estar sem ninguém, trazendo de volta aquela insegurança social de “o que será que eles vão pensar” que não existe quando estamos longe de casa. Nos lugares menos turísticos a gente se sente mais livre, conhece mais gente e vive histórias mais legais.

Foi num desses tours em grupo que subi a famosa torre do relógio, ponto mais alto do parlamento — o que me fez pensar aquela viagem inteira tinha sido em vão. Lá de cima eu vi um grande rio, cortado por pontes e cercado pelos prédios da cidade.

E ele estava descongelando.

Para que seja seguro e permitido patinar sobre um rio a camada de gelo acima da água deve ter mais que 10 centímetros de espessura. Abaixo disso, existe o risco de o gelo se romper causando acidentes e até mortes. Um rio que já tenha partes descongeladas então, por menor que seja o degelo, não pode ser patinado em hipótese alguma — e o rio que eu via lá de cima parecia já ter declarado o inverno como encerrado. Eu desci o elevador da torre fazendo o máximo de esforço para manter o bom humor, tentando a qualquer custo me convencer a aproveitar a viagem apesar da má notícia.

Ao sair do parlamento, quando o guia turístico acabou de declamar todas aquelas informações históricas decoradas, caminhei em direção àquele rio como quem vai para um cemitério assistir um velório. Estava desolado. Quando cheguei à margem e vi os blocos de gelo boiando na correnteza lenta, já estava pensando o que faria dali pra frente.

Mas essa história tem final feliz! Eu tinha pesquisado sobre a cidade antes de ir, então sabia o nome de algumas ruas e restaurantes que deveriam estar ao lado do rio, mas não estava encontrando nenhuma delas. Foi quando finalmente pedi informação, e para minha imensa surpresa e alegria, aquele não era o Canal Rideau! Na verdade eu estava em frente ao Rio Ottawa, que separa Ottawa de sua cidade satélite, Gatineau. Lembro que nesse momento já era noite, eu fui então até o Canal Rideau e ao chegar lá me deparei com o rio congelado e várias pessoas patinando e senti uma alegria enorme, nem parecia que eu tinha ficado tão decepcionado momentos antes. Esses altos e baixos às vezes são o que fazem uma viagem valer a pena.

Outro detalhe muito importante da minha aventura é que eu estive lá durante o Winterlude, que é um imenso festival de inverno! Estar lá para o evento não era primordial nos meus planos, mas para garantir que o Canal Rideau já estaria patinável eu fiz questão de planejar minha viagem em Fevereiro, que além de ser nas minhas férias da faculdade, é logo depois do auge do inverno. Foi assim que decidi conciliar a data da minha viagem com o Winterlude, que até então eu nunca tinha ouvido falar.

O WINTERLUDE

Com duração de três fins de semana (normalmente os três primeiros de Fevereiro), o Winterlude (ou Bal de Neige, em francês) acontece desde 1979 e chega a receber até um milhão e meio de pessoas por dia, somando todas as atrações.

O ponto central do Winterlude é o próprio Canal Rideau. Nessa época, turistas do mundo inteiro vão para lá e é quando o Canal está mais cheio (de pessoas e de eventos). Durante o festival existem barraquinhas de comida, lojinhas e até trailers em cima do gelo!

Outras atrações do festival é o Snowflake Kingdom, que fica no Jacques-Cartier Park em Gatineau e é um gigante parque de diversões na neve, com esculturas de gelo, escorregadores e vários tobogãs feitos na neve para descer sentado ou de bóia. No dia que eu fui para o Snowflake Kingdom precisei pegar ônibus, mas durante o Winterlude a prefeitura disponibiliza ônibus gratuitos de uma atração para outra, de modo que aproveitei para conhecer a cidade de Gatineau sem gastar nada.

No Confederation Park acontece o Crystal Garden, uma competição de esculturas de gelo que levam dias para ser concluídas e, espalhadas pelo parque, tornam a paisagem cada vez mais bonita à medida que as obras vão ficando prontas. De noite as esculturas são iluminadas, deixando tudo ainda mais mágico.

O Marion Dewar Plaza sedia o Rink of Dreams, uma pista tradicional de gelo onde acontecem shows de patinação, competições e até festas com DJs sobre o rinque. Durante os três fins de semana de festival acontecem inúmeras exibições, shows de música, eventos especiais em museus e pontos turísticos e até uma corrida de camas sobre o gelo, uma hilária e inusitada competição que eu tive o prazer de assistir.

PATINANDO NO RIDEAU

O Canal Rideau tem 200 quilômetros de extensão e passa por diversas cidades, desaguando no Lake Ontario, no sul da província. Durante os meses quentes ele é navegável, e durante o inverno um de seus trechos se torna a maior pista de patinação de todo o mundo, com 7,8 quilômetros de extensão, a partir do rio Ottawa até o campus da Carleton University. Seu comprimento equivale ao de 86 campos de futebol enfileirados!

Para um rio congelar o suficiente a ponto de ser seguro patinar nele, ele não pode ser muito largo e nem ter correnteza forte — é por isso que o rio Ottawa estava descongelando e o Canal Rideau não, embora ficassem lado a lado. Para se certificar de que o gelo está seguro para patinação, todo dia o governo mede a espessura da camada de gelo no Canal, que chega a ter 30 centímetros ou mais, e são eles que definem quando a temporada de patinação está encerrada. Por ter vários caminhos e por cruzar a cidade, no período permitido muitas pessoas usam o canal como percurso para ir patinando para o trabalho, escola ou faculdade.

Quando chegou a época desta viagem eu já estava treinando há meses nos pequenos rinques de Toronto, então já tinha me apaixonado por patinação no gelo. Logo no segundo dia de viagem fui direto para o Canal, preparado para patinar os quase 8 quilômetros de extensão e finalmente realizar aquele sonho. Pisei no gelo com todo o cuidado de quem ainda não colocou os patins e caminhei até a barraca de aluguel mais próxima. Quase caí para trás quando me disseram o preço! Cada hora de aluguel custava 17 dólares, e ainda exigia que se deixasse uma caução de 50 dólares que só seriam devolvidos na entrega dos patins. Para ter uma base de comparação, no ponto de patinação mais caro de Toronto eu pagava 8 dólares pelo mesmo período de tempo!

Eu não sou a pessoa mais atenta do mundo, mas lembrei de ter visto em algum lugar que o meu hostel tinha patins para aluguel. Decidi voltar lá e perguntar, pois o pior que poderia acontecer era ser mais caro e eu ter que pagar aquela pequena fortuna que cobravam no Canal. Mas no hostel não só era mais barato, como era de graça! Isso mesmo, pra quem desse a sorte de achar patins no seu número, eles emprestavam gratuitamente. Andei contente de volta para o Rideau com os patins pendurados no pescoço, pronto para ir até o fim da pista.

Patinar no canal Rideau foi uma experiência verdadeiramente incrível! Além de ter diversas atrações pelo percurso, ver gente do mundo todo passando por você e ser um fenômeno maravilhoso da natureza, o Rideau pra quem gosta de patinar é o equivalente ao Louvre para quem gosta de arte, ou o Havaí pra quem gosta de surfar, ou Milão pra quem gosta de moda… Você entendeu.

Pra fazer valer a viagem eu patinei até a exaustão, mas não exatamente por escolha própria. Calma, você vai entender o que eu quero dizer.

Lá no começo existe uma área com prateleiras onde você pode deixar suas coisas para pegar na hora de ir embora. Não existem chaves, cadeados, nem nada, as pessoas simplesmente deixam os sapatos ali e depois voltam para pegar (e SIM, quando eu voltei horas depois as minhas coisas estavam exatamente como eu deixei!). E eu patinei, patinei, patinei, patinei até cheguei ao fim do Canal.

Durante o festival existe um ônibus assim como aquele que peguei para Gatineau que leva as pessoas de volta sem ter que patinar por quilômetros. Só que o ônibus passa na rua, e eu estava no gelo. De patins. Sem minha bota. Obviamente andar descalço na neve quando o termômetro marca dez graus negativos não é uma opção, e não dá pra andar de patins no asfalto, o que me obrigou a patinar todo o percurso de 8 quilômetros de volta até onde tinha deixado meu calçado!

Fiz todo o percurso novamente, deslizando um pé na frente do outro até não sentir mais a ponta dos meus dedos. Foi um dos dias mais cansativos da minha vida. Mas eu estava realizando um sonho ali. Eu estava profundamente feliz.

Além disso, ter patinado por mais de 15 quilômetros me ensinou uma lição: Se o intercâmbio e o meu primeiro mochilão ainda não tivessem me mostrado que eu era capaz de mais do que imaginava, naquele dia foi quando eu tive certeza de que eu subestimava meus limites. E um conselho ainda mais útil para quem for conhecer o Canal: se for tentar ir até o fim do Canal, coloque uma mochila pequena nas costas e leve sua bota com você!

“Ter patinado por mais de 15 quilômetros me ensinou uma lição”.

Mesmo tendo chegando destruído ao final do primeiro dia, enquanto estava na cidade ainda voltei mais vezes para o Rideau e patinei alguns trechinhos, enquanto alternava as demais atrações do Winterlude. Entre museus, parques, mercados e os mais diversos lugares de Ottawa, os dias se passaram e colecionei mais histórias para contar do que caberiam nessas páginas.

Altos e baixos, sustos e situações engraçadas fazem parte da vida de todo mundo que ama conhecer o mundo. O bom dessa viagem é que quando acabou eu ainda tinha muitos meses de intercâmbio pela frente, então não foi o fim definitivo da minha jornada. Dentro do trem voltando para casa eu já sabia que essa experiência tinha marcado a minha vida, e quanto mais o tempo passa, mais eu tenho certeza disso.

Foto tirada na marca final do Rideau, antes de descobrir que teria que fazer todo o caminho de volta.

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Igor Mariano

Brasileiro, gestor de marketing, apaixonado por viagens, café, cerveja, livros e tudo que nos distrai • www.instagram.com/igor_mariano