Goiás, Goiás
Um fim de semana na cidade que parou no tempo.
Às 16 horas de domingo, sentado na praça do coreto, observo a calmaria ao meu redor. Um grupo de pessoas sentadas a alguns bancos de distância bebe cerveja e conversa sem que eu consiga ouvir direito o que falam. O calor está forte e todos nos protegemos do sol sob nossas respectivas árvores. Venta morno, mas refresca. Algum deles puxou um dos bancos da praça e o colocou entre outros dois, onde bem queria, pra que todos pudessem se sentar perto.
Me pergunto em qual ritmo vivem aquelas pessoas. Me pergunto também porque me sinto tão diferente deles. Repreendo o meu próprio pedantismo. Tenho a impressão de que um dos rapazes me observa de volta, como se sentisse a mesma curiosidade que eu — a curiosidade de quem assiste os arredores por mero ócio. Sinto, não pela primeira vez nesta viagem, uma familiaridade estranha com aquele lugar. Porque será que toda cidade de interior me lembra o fim da adolescência em Marabá? Sempre acho que sei como aquelas pessoas pensam e se comportam, porque a cultura do interior de Goiás e a do Pará tem suas semelhanças. Não me culpo pela generalização.
O Thiago chega com o sorvete que ele foi comprar e senta do meu lado. O sorvete do coreto é famoso e recomendadíssimo. Eu, por minha vez, devoro meus pastelinhos. Essas cestinhas recheadas com doce de leite são o doce típico da cidade de Goiás. Nunca tinha ouvido falar disso, até que minha colega de trabalho me falou enquanto eu me levantava da minha mesa para viajar: “O melhor pastelinho fica na rua ao lado da Igreja do Rosário”. Além de ter que explicar o que era o pastelinho, ela também precisou me falar sobre a tal igreja.
Gostei de receber essas recomendações através dela e não de um site qualquer. Eu não tinha feito pesquisas sobre o lugar dessa vez, entre vários motivos, porque minha confiança nessa viagem não era lá tão alta. Estamos no final de setembro, e eu estive remarcando a vinda para cá repetidas vezes desde junho. Às vezes eu não podia por trabalho, às vezes por dinheiro, às vezes quem não podia era o Thiago. Por isso, até estar dentro do carro eu ainda sentia que talvez precisasse adiar a viagem mais uma vez. Essa dificuldade… No mínimo irônica, pois Goiás fica a meros 129 quilômetros de Goiânia. E foi justamente a ironia de morar tão perto e não conhecer que fez a ideia da viagem nascer, em primeiro lugar.
Na sexta-feira, busquei o Thiago de carro no Shopping Passeio das Águas, que era perto do trabalho dele, que era caminho e que era conveniente. Ele entrou munido de pacotes de balas Fini, Ruffles e chocolates. Descanse em paz, dieta. Quem eu quero enganar? Ela já tinha morrido mesmo. De novo. E enquanto eu dirijo, a gente se empanturra de besteiras e o sol se põe na estrada.
Chegamos na Cidade de Goiás já era noite. Depois de uma parada estratégica para se aliviar no posto da entrada da cidade, o tremor do carro no chão de paralelepípedos nos leva até a Pousada do Sol, recomendação de um amigo do Thiago. Não fizemos reserva. Eu queria chegar na hora e tentar a sorte, me sentir aventureiro, fingir que sou daquelas pessoas que simplesmente vai, que arrisca. O que eu não sabia era que, antes de ir, o Thiago tinha ligado secretamente na pousada para checar a disponibilidade e garantir que não dormiríamos na rua.
Acho um pouco confuso que a cidade tenha o mesmo nome do estado. Pior ainda ter descoberto no caminho que o apelido carinhoso “Goiás Velho” não é considerado tão carinhoso assim pelos seus habitantes. Habitantes que por sua vez são chamados vilaboenses, herança de quando a cidade se chamava Vila Boa de Goyaz. Uma confusão. Com tantos nomes, nem o Google sabe muito bem como encontrar o que a gente procura.
Só que eu não procurava nada. Procurava, talvez, enganar um pouquinho a minha sede de viajar, matando a saudade mesmo que pertinho de casa. E o que eu encontrei, logo na primeira noite, foi meia garrafa de vinho e uma panqueca de legumes no Dedo de Prosa Café e Bistrô, um restaurante que não tem ares nem de café, nem de bistrô. Sentamos nas mesas de plástico dispostas na rua e conversamos por horas, nos alegrando com a ajuda do vinho. Vez ou outra éramos interrompidos pelo vento, que insistia em revirar tudo sobre as mesas; ou pelos carros, que passavam raramente, porém sempre cheios de gente e com música alta escapando pelas janelas abertas. Foram os carros que me lembraram de Marabá pela primeira vez, mesmo as duas cidades não tendo absolutamente nada em comum.
O vinho foi uma boa companhia na sexta-feira e também na noite de sábado, porém dessa vez na figura de uma garrafa inteira, que foi esvaziada na rua de pedra em frente ao Restaurante Dalí. Via de regra, o calor nos fez sentar sempre nas mesas de fora, pois o ambiente interno, sem vento ou refrigeração, cria uma verdadeira estufa nessa época do ano. Jantamos um bacalhau memorável, ouvindo o som ao vivo do bar ao lado, cantada por um argentino que errava todas as letras da MPB.
Chegar ao Dalí foi um golpe de sorte. Aproveito a oportunidade pra agradecer ao acaso. A verdade é que as opções gastronômicas de Goiás são muito reduzidas, o que é incomum para uma cidade turística. O restaurante onde havíamos planejado jantar no sábado, Bodega Fantástica, estava fechado para reforma. A segunda opção foi o Flor de Ipê, que embora tenha nos recebido muito bem, tem um cardápio mais-sem-graça-que-top-model-magrela-na-passarela (abraços, Zeca Baleiro), com preços nada magrelos. Então esbarramos no Dalí, guiados pela música do Bar do Peixe.
Em Goiás não tem ar-condicionado nos restaurantes — nem nenhum lugar, diga-se — mas tem bom atendimento. Desde o espanhol sincerão que quer ir embora do Brasil e nos atendeu na primeira noite, até a dona do Dalí, que ao mesmo tempo serviu nosso vinho e comandou a cozinha, todos foram sempre simpáticos. A simpatia da Maria, no Flor de Ipê, quase foi o motivo pelo qual desistimos de ir embora. Pra não deixar ela triste, depois de ser tão solícita. A gente já tinha até pedido uma água. “Desculpa, é que a gente está meio sem fome, resolvemos beber alguma coisa antes”. O problema não é você, sou eu.
O problema, na realidade, é que o turismo de “Goiás Velho” não se profissionalizou. Tudo é simples. As opções gastronômicas vilaboenses são limitadíssimas. O comércio é fraco. Alguns lugares sequer funcionam nos fins de semana. A Cafeteria Moinho do Trigo, que abriria às 19h, mudou de ideia em algum momento ao longo da tarde e simplesmente não abriu. Isso porque perguntamos mais cedo para uma funcionária que arrumava o local e ela confirmou o horário. Dia nenhum vimos o café funcionar.
O tal pastelinho que me recomendaram é comprado na casa da Dona Rita, diretamente com o marido dela. A mesa de jantar da família e uma janela aberta eram feitos de vitrine. Era domingo e compramos o último pacote, daí em diante não se encontrava mais pastelinhos pela cidade. As confeiteiras reservam suas agendas para sentar na porta de casa e assistir o movimento quase inexistente das ruas com uma paciência admirável.
Foi na busca pelos pastelinhos que eu me questionei se essa informalidade do turismo era de fato um problema. Em um mundo globalizado, onde o consumo gerado pelo turismo aniquila tudo de real e espontâneo que colore cada cultura, a cidade de Goiás segue alheia ao turismo. Os turistas vêm, claro. Às vezes muitos, como na época do Fogaréu, às vezes quase nenhum, como quando estávamos lá. Mas a população segue sua rotina. Os parcos restaurantes seguem colocando suas mesas na rua para fugir do calor, ao invés de refrigerar o ambiente. O café segue abrindo quando quer, sem definir horário de funcionamento. E as confeiteiras seguem sem fazer pastelinho aos domingos.
Goiás velho não é uma das cidades cenográficas do EPCOT. Os moradores não são atores representando um papel. As casas antigas não são fachadas falsas só para fotografia. As pessoas moram ali e muitas vezes empreendem na própria sala de estar. A prefeitura pode ter proibido modificações nas fachadas do centro antigo, para preservar a arquitetura de época que dá charme às ruas, mas não existe lei capaz de obrigar a casualidade e a naturalidade do estilo de vida local.
Muitas vezes pode ser uma dor de cabeça visitar um lugar com um comércio sem preparo, é verdade. No almoço de domingo fomos no Serra das Orquídeas e esperamos 40 minutos por um bife a Parmegiana antes que a atendente viesse nos informar que o produto estava em falta. Sim, é frustrante. Porém, é esse mesmo amadorismo que nos permite pisar no alpendre de uma casa branca e azul e bater palmas na porta até uma senhorinha vir abrir. Foi assim que experimentamos o alfenim, um doce de açúcar com óleo de amêndoa feito no formato de animais. Experiência digna de casa de vó. Comprar o doce direto da travessa é mais raro que escolher entre as opções de um mostruário bonito, hoje em dia.
Como são duas atrações muito famosas do estado, é inevitável comparar Goiás com Pirenópolis. Embora Pirenópolis tenha uma melhor estrutura para turismo, ela não transmite a mesma sinceridade ingênua. Mesmo com mais conforto, melhores opções de restaurantes, lojinhas em todos os cantos, souvenires e pousadas boutique, a experiência não é tão genuína. A cultura parece editada. Goiás não. Goiás te faz sentir no interior de verdade. Mais goiano e menos turista.
Ainda assim, a cidade poderia se beneficiar de alguma estratégia. A Igreja Santa Bárbara, que fica em cima de um dos morros mais altos da cidade, oferece um quase mirante da cidade. Quase. O que poderia ser um belo ponto panorâmico está cercado de árvores e mato. A igreja, fechada. “Falta de verba”, denunciou um morador. Subimos as boas dezenas de degraus com a intenção de ver o pôr-do-sol, mas a única paisagem eram os galhos secos do cerrado e um rapaz fazendo exercícios físicos sozinho no terraço vazio.
Preferimos voltar para o carro e eu dirigi sem rumo, buscando apenas subir. Cacei as ruazinhas que apontavam para os pontos mais altos e, depois de uma série de tentativas, resolvi seguir pela estrada de terra que deveríamos ter entrado logo de primeira. Na falta de tempo para fazer uma trilha ecológica fora da cidade, o melhor ponto de observação estava atrás dos portões de um terreno da companhia de água, que algum funcionário desavisado deixou aberto. Chegamos bem a tempo de ver o sol escorregar atrás dos montes que cercam a pequenina Goiás.
Esse sábado, que se pôs na estrada de terra, tinha começado cedo com um delicioso café da manhã caseiro na pousada, seguido por uma maratona de museus. Foi a hora de conhecer a cidade com a luz do sol e se proteger dele dentro das exposições. Como são pequenos e rápidos, todos os museus se complementam como se fossem um só. Em uma manhã fizemos o roteiro completo. Começamos pelo Museu das Bandeiras, que é um antigo presídio do lado do Chafariz de Cauda. Fomos descendo. Passamos pelo Museu de Arte Sacra, mais por insistência do Thiago, pois não sou muito fã de turismo religioso, contudo não me arrependi. Em seguida fomos para o Palácio Conde dos Arcos, antigo centro administrativo do estado, onde foi assinada a transferência da capital para Goiânia — e ficamos sabendo que três dias por ano saudosamente a capital volta a ser ali. Por fim, atravessamos a ponte e conhecemos a Casa de Cora Coralina.
Este último foi onde mais imergi. Deixei de lado as críticas negativas que já tinha ouvido sobre a poetisa. O museu, ao mesmo tempo antiquado e moderno, me fez gostar da Cora. Os poemas, que eu pouco tinha lido, não me pareceram merecedores da depreciação que eu conhecia. O curioso é que o museu não se restringe ao interior de suas paredes. Como viveu por aquelas ruas, todos tem algo a dizer sobre a Cora. Os fatos e as fofocas que correm na boca pequena vão desde amantes secretos até uma personalidade perversa. Pelo que dizem, ela nem doceira era: “Terceirizava a produção e vendia dizendo que tinha feito”. “A primeira puta de Goiás”. “Muito antipática”. Verdade ou mentira, o que o museu não mostra a população espalha. Boatos nunca foram raridade em cidades pequenas.
Goiás é justamente uma cidade pequena e bucólica, que na maior parte do tempo foi uma delícia. Não digo que foi sempre porque preciso ser justo com o Thiago. Na primeira noite dormimos como bebês, mas na noite seguinte ele não teve a mesma sorte. Se queixou do calor. Foi disputado por mosquitos. Só dormiu na madrugada, depois de se render e ir tomar um banho frio. Eu, com uma tatuagem recém-feita no antebraço esquerdo, só podendo me deitar em determinadas posições e sendo acordado de tempos em tempos com os rompantes de aflição dele, que se debatia na cama, invariavelmente tornava a dormir em questão de instantes. Talvez fosse válido pagar os 60 reais a mais na diária pelo quarto com ar-condicionado. O Thiago com certeza há de concordar.
O calor esteve presente em todo o fim de semana, em conjunto com a seca, que depois de mais de 100 dias havia enxugado os rios da cidade, reduzindo a água do Largo da Carioca a uma goteira e o Poço do Sucuri a uma piscina profunda cercada de pedras cinzentas. Mas naquele momento, sentado na praça do coreto comendo pastelinhos e observando o movimento dos vilaboenses, nem o calor nem a seca me incomodavam. A tarde de domingo se aproximava do fim e, depois de dois dias, as atrações tradicionais já tinham sido zeradas. Pouco restava para fazer ali além de se entregar para a preguiça, mas ela não teve nem tempo de me dominar. Thiago perguntou: “Vamos pra casa?”. Era hora de deixar que a estrada nos levasse de volta para a rotina da segunda-feira nada calma que nos aguardava.
“Vamos”.