999 | Como Apresentar um Personagem

Igor A. N. Silva
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De joelhos ao lado de Maria, Benta terminava as orações matinais, um hábito repetido desde que era capaz de entender o mundo”.

É assim que Wilson Junior nos apresenta Benta, uma das personagens centrais de seu livro 999. Neste texto aqui vou abordar o primeiro capítulo em que ela aparece, buscando analisar as formas como o autor nos apresenta a personagem e suas complexidades. Terão spoilers, óbvio, mas esse é apenas o terceiro capítulo de uma longa jornada. Prometo que não afetará sua experiência de leitura.

999 tem esse nome por se passar justamente nesse ano, em meio ao medo de um Apocalipse. A virada do milênio, no entanto, traz outros significados para o título. Ambientado em uma Portugal atormentada por invasões de mouros e nórdicos, acompanhamos a jornada de quatro personagens centrais. No entanto, vou falar apenas de uma delas: Benta. Aproveito para também falar bastante de sua mãe, Maria.

Benta é uma portuguesa de pele escura. Filha de um mouro, o que lhe rendeu apelidos como “a Mourinha” ou então “fruto do pecado”. Logo no início sabemos que essa personagem é cristã, embora tenha um espírito muito questionador. E que sua mãe, Maria, quer casá-la com alguém o quanto antes.

Especificamente antes do fim do mundo.

— Queria te casar antes do fim — disse Maria.” Esse fim é bastante propagado pelo padre da cidade. E se torna quase unanimidade que o mundo de fato acabará na virada do milênio. O título do livro se torna então ainda mais interessante ao pensar que, embora o fim do mundo seja algo cruel e drástico, quem o anuncia é um padre. E tal fim se dará com a permissão, ou talvez com a ordem, de Deus.

— Sendo o fim verdadeiro ou não, queria que tu tivesses alguém que pudesse te proteger das agruras da vida e da morte.” A mãe tem um bom argumento. A vida de mulheres nessa época certamente era difícil e, como mãe, ela queria apenas proteger sua filha. No caso, oferecer uma proteção que ela própria não poderia dar.

Mas Benta era uma jovem diferente do resto de sua sociedade.

— Não quero depender de ninguém para me defender.” Benta questiona o patriarcado, questiona a autoridade cristã do padre e da igreja. E acima disso tudo, ela quer se tornar uma guerreira. Quer defender-se por si própria.

— Antes ser de um do que do mundo todo. Torço para que a vida não tenha que te mostrar as vantagens.” Aqui Wilson tem a habilidade incrível de deixar implícito um background terrível. Assim como o humor, o horror acontece dentro da mente do leitor e, portanto, o escritor não pode dar a conclusão, apenas o caminho para ela.

Apenas a breve sugestão do que pode ter acontecido com Maria me fez refletir muito sobre a personagem. Até então, me parecia apenas mais uma mãe conservadora cristã impondo suas vontades à filha. Nesse caso, seu desejo de ver a filha protegida se torna algo sincero, compreensível.

Seguindo a leitura, descobrimos que as demais beatas da cidade chamam Maria de santa. Afinal, ela cria uma filha moura nascida de um estupro. O que antes era subentendido, agora é dito explicitamente. Benta carrega em sua pele a herança de um terrível criminoso. Há, portanto, o medo de que a filha possa ter o mesmo destino que a mãe. E cada uma quer resolver esse problema da sua forma.

E aí vem um ponto delicado do texto. Abordar estupro é sempre algo sensível demais. E normalmente, mais comum em livros de fantasia medieval, autores recorrem à violência gráfica para tocar nesse assunto. Claramente a pior forma de se fazer isso. Há uma outra abordagem, uma mais honesta. Esse tipo de violência acontecia na época? Claro que sim. Precisa ser mostrado em uma cena sádica? Claro que não.

Wilson aqui menciona o estupro e depois o “esquece”. Isso se torna apenas parte do passado da protagonista. Filha de uma mulher branca com um mouro, mas apenas teve o amor da mãe, uma mulher considerada santa por isso. Maria, então, torna-se uma personagem menos chata quando se pensa nela. A mulher, mesmo nessas condições, ama a filha e quer protegê-la da melhor forma, ou apenas da forma como ela julga a melhor.

Benta não pensava assim. Não queria casar. Para ela, seria até melhor que o mundo acabasse antes que precisasse se casar. O interessante é que, por estar mergulhada nessa cultura cristã, sempre que pensava nessas coisas pedia desculpas para Deus logo em seguida. E não apenas isso, mas se irritava após pedir desculpas. Embora temesse a Deus, também questionava seu próprio temor. “Pedir perdão era o modo de se afastar um pouquinho do inferno. Foi assim que aprendeu desde pequena.” A culpa cristã, tão enraizada em sua mente, a atormentava tanto quanto o medo do inferno.

Isso se manifesta, também, em outro momento, quando Benta se encontra com uma protagonista nórdica. Assim como o resto do vilarejo, Benta a considera uma bruxa. No entanto, tal “bruxa” a trata com respeito. Um respeito que mais ninguém lhe oferecia. Ao vê-la treinando a luta com espadas, mesmo que usando uma de madeira, a nórdica lhe presenteia com uma adaga.

Estava claro que Benta tinha vontade de se defender sozinha. Tanto que, sempre que possível, treinava sua habilidade com espadas escondida. Repetia os mesmos movimentos dos soldados, e os fazia em uma árvore agora cheia de cicatrizes em seu tronco.

Em apenas um único capítulo, Wilson nos apresenta personagens complexos, com seus lados fortes e suas fraquezas. Embora parecesse que a mãe de Benta era só uma velha cristã chata, sabemos seus motivos para ser super protetora com a filha. E Benta, uma jovem questionadora, rebelde, cheia de vontade de quebrar os padrões e ser diferente, ainda ama sua mãe, mesmo que seja difícil de admitir ou expressar de início.

Durante o diálogo com a tal “bruxa” nórdica, a estrangeira lhe perguntou “se você tivesse a certeza de que tudo ia acabar, o que faria?”. A resposta da jovem foi “ficaria com a minha mãe.

Logo após ler esse capítulo eu já tinha certeza de que, ao terminar o livro, faria um texto analisando apenas ele. Isso porque, ressalto aqui, é uma aula de roteiro. No entanto, ao longo da leitura, o livro nos traz reviravoltas inesperadas. Algumas contradizendo o que eu disse nesse texto. Isso porque nem tudo o que foi falado aqui é verdade. E se você pensa que isso enfraquece os assuntos que tratei aqui… nada disso. Pelo contrário.

Enquanto todos aguardam o mundo acabar, cada um o faz à sua maneira. Lutando, aguardando ou até mesmo ansiando pelo fim. Nunca li um livro onde as cenas de morte são tão… verdadeiras? Sinceras? Impactantes? Enfim, o livro é ótimo em retratar os assuntos que se propõe.

Lembrando: eu analisei apenas uma das quatro personagens centrais, e falei apenas de um único capítulo. O livro é uma grande jornada, acontece muita coisa, e eu te aconselho a ler para ter a mesma experiência que eu tive. Leitura de qualidade garantida.

Agora que você terminou de ler aqui pode ir lá comprar o livro. Vai lá, vai. Vai ler 999.

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Igor A. N. Silva

Escritor independente de ficção especulativa. Youtuber sem vídeo e Assombração Cibernética. https://linktr.ee/igoransilva