ÉGUA NÃO!
Nível 0 — O autor
Jordan Peele deixou de ser apenas um dos grandes comediantes estadunidenses em 2017 e virou um selo de qualidade do cinema mundial com a estreia de Corra! (Get out — 2017). Dotado desse novo status, progressivamente vários projetos foram viabilizados (Us, Lovecraft Country, Além da Imaginação, a Lenda de Candyman e etc), e nesse mesmo ritmo os orçamentos se tornavam bem menos modestos. É válido mencionar que a fama do cineasta não trouxe apenas coisas boas, uma vez que as expectativas de seus fãs são talvez o verdadeiro monstro metafórico de sua biografia. Isto posto, falemos de Nope (2022), vendido como um terror alienígena do já citado diretor. O filme segue várias das convenções do subgênero, e conta a história de um casal de irmãos, os Haywood, criadores de cavalos que perderam o pai num acidente bizarro 6 meses antes do início da trama e desde então vivem em intensa dificuldade financeira (como vários outros filmes pós crise de 2008), além de terem os últimos resquícios de paz do seu rancho retirados por uma série de eventos sinistros que sugerem abduções alienígenas e aparições de ovnis… Sendo que todo esse mistério pode de alguma forma estar relacionado a morte de seu pai. Mistério é a palavra chave que define essa história, portanto, a melhor experiência possível é aquela que ainda não foi contaminada por informações prévias. [Spoilers a partir daqui]
Nível 1 — Filme de gênero
Somado ao tema de abdução alienígena, o filme emula a estética de um faroeste clássico, porém em um contexto contemporâneo, graças aos seus planos abertos que valorizam muito bem o seu cenário: um rancho isolado e cheio de cavalos situado na Califórnia nos tempos atuais. Contudo, a medida que a narrativa avança ela acaba se desdobrando em um filme de monstro, o que pode soar estranho, porém tematicamente faz todo sentido, por ser mais uma maneira de abordar o “Nós Vs Eles” presente em todos os gêneros supracitados, além de dar um frescor para a ideia central da trama. Numa camada mais superficial temos várias referências (“foreshadowings”, rimas visuais e etc) a eventos futuros da trama, que ainda estão por se desdobrar, como: um disco voador que claramente surge aqui como um paralelo a um chapéu de caubói, as câmeras “panavision” que aparecem nos flashbacks do estúdio idênticas as cabeças dos alienígenas do rancho Júpiter, a moeda que se apresenta na primeira cena como símbolo de azar e acaba retornando ao final como signo de sorte/oportunidade, o capacete reflexivo do repórter investigativo se assemelha às bolas reflexivas utilizadas em sets de filmagem como a que assusta o cavalo no início do longa e não podemos esquecer da casa de arquitetura vitoriana que parece saída de uma pintura de Edward Hopper ou de um filme do Hitchcock (inspirado pelo primeiro, claro).
Nível 2 — Show business
Existe uma máxima amplamente difundida que diz “todo filme é sobre cinema”, porém aqui temos um exemplo que eleva isso à última potência (pelo menos aos olhos desse humilde cinéfilo). A narrativa fictícia expande um parte real da história do cinema: um dos primeiros filmes gravados foi de um jóquei negro em cima de um cavalo, cuja identidade na vida real segue sendo “esquecida”, ou melhor apagada, porém na trama os protagonistas são seus descendentes e ambos trabalham com cinema: o irmão, vivido por Daniel Kaluuya, segue os passos do pai e treina animais para serem usados em produções enquanto a irmã, vivida pela carismática Keke Palmer, atua, dança, canta e até pilota motocicletas (risos). Ademais, o filme inteiro se passa na Califórnia e o clímax da trama reside num plano desafiador e elaborado de registrar em vídeo/foto o monstro/disco voador que se esconde por detrás das nuvens e tem a habilidade de desativar temporariamente todos os aparelhos eletrônicos no momento de seus ataques. Somado a isso, somos capazes de traçar alguns paralelos entre os membros do elenco principal e pessoas que trabalham produzindo filmes: OJ seria um dublê, Angel seria um membro da produção, Holst seria um diretor e Emerald seria outro membro da produção que num momento de dificuldade rouba os holofotes com suas habilidades e energia se tornando a protagonista. No mesmo mote, temos também uma enxurrada de referências a clássicos do cinema/literatura: a manobra de Kaneda em Akira (1988), o clima de contatos imediatos de terceiro grau (1977) misturado a Tubarão (1975), ET (1982) e temáticas de Jurassic Park (1993); o banho de sangue que a casa recebe poderia ser uma alusão a cena do corredor de O Iluminado (1980) ou a formatura de Carrie — a estranha (1976), a criatura com ares de terror cósmico que parece ter saído direto da mente de H.P. Lovecraft ou talvez algum anjo de Evangelion (1995), as cenas com tornado que lembram O Mágico de Oz (1939) bem como a protagonista que se chama Emerald.
Porém, ao sair do cinema uma das minhas maiores preocupações foi: o que diabos aquela cena do chimpanzé surtando em um set de filmagem tem a ver com o resto do filme? Seria apenas uma grande exposição do passado do personagem Jupe? Creio que não. Penso que ali reside o cerne do filme: a espetacularização da violência, a ilusão de controle do ser humano sobre a natureza, sobre o imprevisível… Lembrando que o filme mostra através de Jupe (interpretado por Steven Yeun), um ex ator infantil traumatizado por trabalhar com um animal selvagem estressado, vivendo um ciclo vicioso de abuso, uma vez que ele se tornou um adulto ganancioso que explora outros animais selvagens estressados até que o (in) esperado acontece (novamente).
Nível 3 — Indo além: raça e fé
Seguindo nessa mesma temática, porém alterando o signo que a suscita basta retornar ao início, onde mesmo antes de vermos a primeira cena temos uma citação bíblica retirada de Naum 3,6 “Eu mesmo lançarei sobre ti imundícias, te tratarei com total ignomínia; e farei de ti um espetáculo, um exemplo para todos.” Outros momentos que desencadeiam interpretações bíblicas são a “chuva” de sangue que cai sobre a casa da família Haywood de maneira semelhante a uma praga do Egito, o aspecto ritualístico do show no rancho Júpiter e o fato do animal se esconder nos céus. Inclusive é importante destacar que em momento algum a origem do mesmo é pormenorizada, portanto não se sabe se sua origem é mágica/mitológica, orgânica terrestre ou extraterrestre. Ademais, temos um momento onde o protagonista OJ (um aceno a OJ Simpson provavelmente?) questiona se existe palavra para descrever um milagre ruim. Bom, o velho testamento é cheio de “milagres ruins”, a ira de Deus era um recurso narrativo frequente em várias passagens. Tendo isso em mente, Nope parece por completo um grande milagre ruim, do sapato misterioso que fica em pé, passando pelo comportamento anormal de vários animais durante o filme (gafanhoto, Sortudo e o Jaqueta Jeans).
Por fim: filme de Jordan Peele sem subtexto racial é golpe! E é evidente que ao contar uma história sobre os descendentes do primeiro ator negro, apagado pelas mãos de quem escreve a história do cinema, ele busca chamar atenção para a invisibilidade do negro na própria indústria cinematográfica. Válido ressaltar que na cena do set onde os protagonistas aparecem juntos pela primeira vez, os mesmos são os únicos negros ali, a menos que você contabiliza o Sortudo (risos). Ademais, fica subentendido que o próprio monstro personifica o racismo na trama, uma vez que alguns tentam usá-lo para lucrar, ele se esconde em plena luz do dia sob uma forma alternativa, é quase impossível de ser filmado/denunciado e quando acuado se radicaliza, muda de forma e se torna mais ameaçador.
Em resumo:
Nope é um aula de cinema e merece ser visto na telona.
Obs.: Essa resenha foi lançada originalmente em 30 de agosto de 2022 no blog do meu brother Elton Tavares (Égua, não! — Resenha de Igor Hanon sobre o filme “Nope” — @igorhanon — Blog de Rocha)
Trailer oficial do filme:
“Não! Não Olhe!” hoje já está disponível para streaming e/ou aluguel nas plataformas: Amazon Prime, Apple TV e na Google play.