A Ciência de Chuang Tzu

Igor Teo
4 min readJan 23, 2020

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Chuang Tzu, o filósofo taoista, atravessava o rio com seu amigo Hui Tzu, quando exclamou:

— Veja como os peixes pulam e nadam tão livremente. Como são felizes!

Seu amigo então lhe questionou:

— Você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?

Chuang Tzu sorriu e respondeu amavelmente:

— Desde que você não é eu, como sabe que eu não sei o que torna os peixes felizes?

Hui Tzu refletiu por alguns segundos e pensou que finalmente havia derrotado seu amigo na argumentação:

— Ora, se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você também, não sendo um peixe, não pode saber o que os peixes sabem!

Chuang Tzu foi triunfante:

— Vamos retomar a pergunta inicial. Você me perguntou como eu sabia que os peixes eram felizes. Dos termos dessa pergunta, você sabe evidentemente que eu sei o que torna os peixes felizes — e então finalizou — Conheço as alegrias dos peixes no rio através da minha própria alegria, à medida que vou caminhando à beira do mesmo rio.

Os contos taoistas de Chuang Tzu são repletos de ensinamentos¹. Dissecá-lo completamente exigiria talvez uma tese de doutoramento. Porém, vou me conter hoje somente numa questão que me parece muito interessante no conto acima: a perspectiva da consciência.

Ao contrário do que Chuang Tzu dá a entender no final de sua história, ele continua sem saber como é a felicidade para os peixes. Porém, Chuang Tzu demonstra que isso tem pouca importância.

Contextualizando o conto dentro de sua filosofia, o pensamento de Chuang Tzu é conhecido por seu perspectivismo². Segundo o filósofo chinês, nós nunca sabemos o que as outras pessoas realmente pensam ou sentem. Cada consciência é uma perspectiva particular, e para que realmente pudéssemos entender o mundo a partir de uma outra consciência, teríamos que vivê-la desde a sua própria perspectiva, o que é impossível.

Cada consciência tem acesso apenas a sua própria experiência, sua própria perspectiva. Deste modo, não existe uma verdade independente de um contexto, que supostamente seria capaz de julgar o que é verdadeiramente justo, belo, correto, e por aí vai.

Dentro da filosofia taoista de Chuang Tzu, isso significa que cada coisa do universo tem o seu próprio Tao particular e perspectivo, e nada ou nenhuma pessoa pode ser ou falar em nome do Tao absoluto. Quando dizemos que algo é mais correto, ou uma perspectiva talvez seja melhor ou mais verdadeira, estamos impondo um Tao particular sobre uma consciência, como se fosse este um Tao universal.

Segundo Chuang Tzu, as coisas encontram seu caminho quando deixamos que elas desenvolvam a sua própria naturalidade. Sem impor nosso desejo e apego ao mundo, podemos deixar que a verdade de cada coisa se revele a ela por si mesma.

O engano de Hui Tzu

Hui Tzu conhecia muito bem seu amigo. Ele sabia como Chuang Tzu pensava. Sabia que, segundo o filósofo, ele jamais poderia dizer sobre a experiência de uma planta, por não experimentar a consciência e o ser de uma planta. Não podia falar sobre a experiência de um peixe, por nunca ter sido um peixe. Não poderia nem falar sobre o que o Imperador sentia, por ele mesmo não ser um Imperador.

Então, quando Chuang Tzu disse que os peixes eram felizes, Hui Tzu entendeu que seu amigo filósofo havia entrado em contradição. Após o debate, Chuang Tzu explica porquê ele pensa que os peixes são felizes:

porque ele mesmo sente felicidade ao vê-los nadar.

É devido ao fato de que Chuang-Tzu sente alegria ao caminhar pelas margens do mesmo rio que nadam os peixes que ele pode identificar-se como um peixe, e, portanto, imaginar a alegria que compartilham naquele momento. Chuang Tzu nos fala assim sobre empatia, uma questão tão importante à nossa contemporaneidade.

Contudo, a “empatia absoluta” é impossível. Ele jamais seria um peixe para dizer o que é ser um peixe de verdade. Como talvez, sendo homem, jamais saberei o que é ser uma mulher. E vice-versa.

Cada consciência pode saber apenas de si. E saber de si, às vezes, já é muita coisa. Nunca estamos realmente no lugar do outro para dizer o que ele verdadeiramente sente. Isso seria um ato de violência e silenciamento da perspectiva do outro. Um apagamento da alteridade. Chuang Tzu deixa isso claro.

Mas Chuang Tzu também diz que podemos sentir o que o outro sente através de nosso próprio sentimento. Portanto, ele jamais saberia dizer da alegria dos peixes, mas poderia dizer sim de sua alegria ao estar com os peixes.

Uma lição sobre escuta

Chuang Tzu é um daqueles filósofos ímpares que existiram na história da humanidade realmente capazes de silenciar seu próprio turbilhão de pensamentos e discursos para escutar o que o mundo pode nos ensinar.

Uma das principais lições deste conto é sobre escutar a nós mesmos para compreender o mundo. E Chuang Tzu demonstra que não existe uma oposição entre a subjetividade e o fato objetivo, entre o mundo íntimo de representações e o mundo externo de fatos e acontecimentos. Chuang Tzu não é um cientista moderno ocidental.

A chave metodológica de Chuang Tzu, sua ciência espiritual, diz que eu posso conhecer o mundo através do meu próprio silêncio. E onde, neste silêncio, há manifestação — como felicidade, tristeza, raiva, decepção — posso ver em mim a manifestação do mundo.

Portanto, o perspectivismo de Chuang Tzu está longe de ser um subjetivismo internalista. Trata-se, na verdade, de uma abertura para as múltiplas realidades da existência. Um mundo complexo e impossível de apreendermos em completude, mas mesmo assim possível de ser conhecido através de nossa experiência.

O mundo do taoismo não é uma unidade autoexplicativa, uma teoria do Todo, mas um universo de multiplicidades. Chuang Tzu, melhor que ninguém, encarnou isso em sua própria atitude questionadora e irônica sobre a existência.

A vida, compreendemos melhor, quando conhecemos nosso próprio silêncio.

¹ As histórias de Chuang Tzu, assim como a contada neste texto, podem ser encontradas no livro A Via de Chuang Tzu, de Thomas Merton, publicado no Brasil pela Editora Vozes.

² O perspectivismo pode ser compreendido melhor nos trabalhos antropológicos do pesquisador brasileiro Eduardo Viveiros de Castro.

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