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“Tento focar nas coisas positivas, mas, sim, temos uma crise política preocupante aqui na Hungria”

Na outra lata: Dóra, de Szentendre

Ilana Cardial
Na outra lata
Published in
6 min readJun 16, 2020

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Antidemocrático, totalitário, extremista e super poderoso é o regime onde vive a gentil, carinhosa e doce Dóra. Abuso dos adjetivos, mas ao menos na língua do cafuné eles não dão conta de explicar nem o coração da minha amiga, nem o absurdo que hoje vive a Hungria. Acho graça, percebe? São os adjetivos, me conta Dóra, “especiais e poéticos para descrever a personalidade de alguém”, que a língua húngara tem de único. Do português, Anna Dóra Kiss aprendeu o obrigada e adora usar saudade — “Uma palavra tão bonita! Por que não temos aqui?”.

A 10 mil quilômetros de distância, Dóra e eu ansiamos por matar as saudades uma da outra. Nas muitas conversas ao longo desse ano de amizade, dentre as várias diferenças entre nossos países, percebo que compartilhamos de governantes que anseiam por matar, e ponto. Assim como o Brasil, a Hungria conta com um líder político de extrema direita, com propostas nacionalistas e atitudes questionáveis. Ao lado da Sérvia e Montenegro, o país não pode mais ser considerado democrático, aponta a Freedom House. A organização, que monitora os avanços (e recuos) da democracia ao redor do mundo, avalia sete quesitos ligados a direitos políticos e liberdades civis.

Quem desrespeitar as regras da quarentena fica sujeito a até oito anos de prisão. Quem divulgar informações consideradas incorretas pelo governo, a cinco anos.

Desde o dia 30 de março, o primeiro-ministro húngaro tem a liberdade de mandar e desmandar no país. Diferente do Presidente no Brasil, Viktor Orbán tem ampla maioria no Parlamento com seu partido, o Fidesz. Por 137 votos a 52, conseguiu aprovar uma lei que o permite governar por decretos durante o estado de emergência, instituído por conta da pandemia do novo coronavírus. Sessões parlamentares e eleições podem ser suspensas, e leis existentes, alteradas. Quem desrespeitar as regras da quarentena fica sujeito a até oito anos de prisão. Quem divulgar informações consideradas incorretas pelo governo pode ser preso por cinco anos. Orbán determinou, ainda, que os hospitais dessem alta a pacientes e garantissem 50% de seus leitos livres para pacientes de covid-19.

E quem determina o fim do estado de emergência?, você me pergunta. Acredite ou não: o próprio Viktor Orbán.

Quanto ao “Supremo Tribunal Federal” deles, a Corte Constitucional é composta por 11 juízes, todos indicados a partir de 2010, ano em que Orbán tornou-se premiê. A ministra da Justiça, que avaliou a medida dos superpoderes como “proporcional, adequada e necessária”, anunciou que a promessa é encerrar o estado de emergência no próximo sábado, dia 20. A decisão vem após eurodeputados sugerirem cortar repasses de fundos à Hungria para o combate direto à pandemia caso o país mantenha o que consideram ataques à democracia.

No meio do caos pandêmico, a fala do nosso ministro do Meio Ambiente sobre “passar a boiada” parece ter atravessado o oceano. Tanto aqui, quanto na Hungria pessoas trans têm seus direitos ameaçados. A Assembleia Nacional húngara aprovou uma lei que proíbe transgêneros de alterarem seus documentos. Como explica reportagem da Folha, a categoria de “sexo” no registro civil passa a ser “sexo atribuído em nascimento”, definido como “sexo biológico baseado em características sexuais primárias e cromossomos”. No Brasil, o deputado Filipe Barros apresentou em maio a PL 2578, que propõe determinar gênero com a exata mesma definição. Inclusive, você pode opinar sobre sobre a proposta neste formulário da Câmara.

É inevitável falar sobre as vítimas da crise sanitária que enfrentamos. Até o momento, a Hungria registra pouco mais de 4 mil casos confirmados e quase 600 mortes por covid-19, segundo a Universidade Johns Hopkins. Com investimento decrescente na área, o país ocupa a quinta pior posição da Europa no que diz respeito a serviços de saúde. A análise é feita pela organização sueca Health Consumer Powerhouse. Distanciamento social e medidas rígidas foram as apostas do governo a fim de evitar um contágio massivo.

Na percepção de Dóra, apesar da preocupação quanto ao decreto que concede superpoderes, a população húngara ficou satisfeita com as medidas tomadas no combate à pandemia. Entre pesquisas e reportagens que leu, apoiadores e opositores consideraram as providências emergenciais adequadas e as apoiam. “Acredito que aqui o problema não foi tanto em relação ao risco de saúde, mas o fato do nosso governo usar da situação como uma oportunidade para fortalecer seu poder”. O Parlamento Europeu repreendeu o governo húngaro pelas movimentações “totalmente incompatíveis com os valores europeus” de democracia e justiça.

As medidas de restrição foram rápidas e intensas. Com apenas a Eslovênia separando a Hungria da Itália, uma onda de pânico atingiu a população. A imprensa alertava que a capital poderia entrar em lockdown por alguns dias. “Eu fui ao mercado e haviam prateleiras vazias. As pessoas estavam estocando açúcar, farinha, carne e batatas. Eu nunca vi isso”. Pelo que Dóra conta, preparar o pão caseiro durante a quarentena também é atitude internacional.

Imagem: vexels

Desde 18 de maio, bares e restaurantes reabrem para servir suas Pálinkás e goulash, e os 9,7 milhões de habitantes do país estão livres para atravessar a ponte entre as regiões Buda e Peste que compõem a capital. “Dei uma volta de bike e foi completamente chocante ver pessoas XD”, me escreveu Dóra naquela primeira semana.

Cinemas, teatros, baladas e shows estão liberados, desde que não haja aglomerações. No entanto, os festivais internacionais de música no verão, pelos quais a Hungria é famosa, já estão cancelados em sua maioria. “É muito estranho, estamos todos muito tristes por isso”.

Das tradições húngaras, a Páscoa também foi prejudicada. Na segunda-feira pós-ressurreição, meninos e jovens se reúnem em grupos e visitam amigas e mulheres da família, espirrando água e perfume nelas. “É um símbolo de que as garotas são como flores e os meninos devem regá-las para mantê-las saudáveis e bonitas”, me explica. Em troca, as gurias os presenteiam com ovos pintados, chocolates ou até dinheiro. Com sua doçura, Dóra explica como se fossem apenas algumas gotas ou borrifos. Depois confessa que, originalmente, são baldes de água inteiros.

Foi em março que Anna Dóra deixou de ter aulas presenciais na Universidade de Eötvös Loránd, em Budapeste. Terminou a dissertação de Estudos Culturais e Comparações Literárias em casa, na pequena Szentendre, e também ali continuou suas atividades como copywriter. O escritório onde trabalha permanece fechado. Me enviou fotos sorrindo e com delineado nos olhos quando, depois de dois meses de quarentena, pôde ir à noite a uma das praias à margem do rio Danúbio. Fez o que para muitos de nós era hábito de quarta-feira e agora ganha aspecto de sonho: encontrou os amigos, bebeu e se divertiu.

“Que remédio é esse? Acho que não temos na Hungria”, Dóra perguntou quando contei incrédula que o Ministério da Saúde havia liberado cloroquina para todos os pacientes de covid-19 por aqui. Apesar de algumas semelhanças, muitas diferenças… Em abril, conversamos sobre o sentimento de impotência diante de tanta tragédia e Dóra constatou que a nós, ao menos por ora, resta ver o resultado.

There are years that ask questions and years that answer them [Existem anos que fazem perguntas, e anos que as respondem], Dóra leu em algum lugar. “Eu tenho a impressão de que o Brasil lida com essa pandemia bem diferente… Estou certa? Ou é só seu presidente?”, perguntou em uma das várias mensagens de WhatsApp que trocamos ao longo dessa crise — em inglês, já que egészségére (saúde!) e szia (oi!) é tudo que sei em húngaro. Enquanto descobrimos qual tipo de ano é 2020, me aproveito da citação e acrescento a dúvida da Dóra às muitas da lista.

com o telefone de lata, a brincadeira é bater papo. de um lado, eu, com saudades de pessoas queridas. Na outra lata, sempre um amigo. esticando bem o fio, escuto com atenção o que acontece do outro lado do mundo em tempos pandêmicos.

A última vez que Dóra e eu nos encontramos — Bologna (IT), Jul/2019

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