o texto sobre a janela
faz mais de 500 dias que leio textos e vejo fotos de janelas alheias. no começo do fim do mundo, também eu esbocei umas linhas. não terminei. assim como não terminei nenhum texto livre na pandemia, que não fosse por trabalho ou faculdade. talvez também não termine este. não tenho nada novo a acrescentar e detesto textos molengas, mas senti que era minha vez de registrar a vista da minha janela. daqui, também vi shows de vizinhos desafinados, sacadas se tornarem academias e crianças berrando dentro dos apartamentos. isso ali pelo primeiro mês, quando parecia que tinha uma luz no fim do túnel. na outra metade do ano, parece que todo mundo sumiu — não sei se eles foram pra dentro ou eu que fui aqui. chegou uma hora que perdi o interesse, cansei da vista atrapalhada pelas redes. não quis mais saber da janela, nem da praça aqui do lado e só de pensar no mundo lá fora eu me esgotava. meu colchão virou areia movediça: quanto mais eu queria me levantar, mais ele me puxava. as ruas — quaisquer ruas, todas as ruas — que eu tanto amava, depois de medo, me deram preguiça. mas aí, aos pouquinhos, fui saindo de mim de novo (não sei muito bem como, nem quando, porque meu cérebro não absorveu direito a questão do tempo enquanto só via as paredes com tinta branca de dez anos atrás. verdade seja dita, minha memória nunca foi lá grandes coisas). de repente, me peguei espiando pela janela de novo. a vizinha da frente voltou a malhar na sacada, uns dois andares acima uma moça limpava mais uma vez os vidros, e o bebê parecia engatinhar mais rápido em outra sala. aqui do lado, já tem mais gente na quadra. e agora, por exemplo, vez ou outra dá vontade de sair caminhando pelas ruas — somos amigas de novo. deve ser efeito colateral da vacina (não é, mas só queria dizer que eu já tomei vacina). de graça e sem valer nada, essas frases ficaram molengas, mas pelo menos tiveram um fim. talvez, com sorte, esse túnel de horror também tenha.
