A verdade que peregrina entre nós

Ímã Editorial
3 min readAug 14, 2020

Prefácio de Eliana Alves Cruz para E eu não sou uma mulher?, a narrativa de Sojourner Truth, publicado pela Ímã Editorial

As razões que nos levam hoje, em pleno século 21, a viajar intensamente pelas estradas trilhadas por Sojourner Truth são as mesmas que empurraram esta personagem ímpar da história negra do norte da América a erguer sua voz, no longínquo e hostil século 19: Um desejo férreo por liberdade e reconhecimento de humanidades.

Após abandonar os seguidos nomes próprios dados pelos que a escravizaram, ela opta por uma libertação maior que o simples livramento dos domínios de supostos senhores. Ela decide elevar a voz por diferentes lugares, não fincando raízes e tocando as mentes e corações que por ela passassem. Assumiu a nova identidade de “Verdade Peregrina”.

Passados quase um século e meio de sua morte, a tarefa de mexer com as verdades estabelecidas parece não terminar, visto que Sojourner reverbera em volume cada vez mais alto um mundo que passou por abolições que, se não falsas, foram no mínimo incompletas, pois saíram da escravização oficial para a oficiosa das condições análogas à de cativeiro, baixos salários, nenhum direito ao descanso e acesso à moradia ou sistema de saúde.

O sistema judiciário, que foi ousadamente acessado e vencido por uma Sojourner iletrada, mas plenamente ciente do direito a viver ao lado dos seus é o mesmo que nos fala de liberdade conquistada, mas não impede que botas esmaguem pescoços de pessoas negras em uma das nações mais ricas do planeta em 2020. Desta forma, por trás do manto da emancipação obtida com lutas, revoltas e morte, está a ideia de que todos são iguais perante de leis que não garantem e permanecem não garantindo equidade.

Os questionamentos da pessoa que sofreu apagamentos, violências e humilhações sem conta até tomar as rédeas da própria existência, parando pelo caminho para proferir discursos cheios de paixão e amor pela vida, chegam a cansados ouvidos contemporâneos. Tímpanos esgotados por retóricas e narrativas que não frutificam em ações capazes de transformar realidades, que ainda separam umas e outras mulheres, pois, nestes séculos decorridos algumas seguem sendo menos mulheres que outras e, consequentemente, menos humanas.

A pergunta “E eu não sou uma mulher?” é uma formulação que encerra questões profundas e, para além do óbvio tratamento excludente que recebem as mulheres negras, o discurso completo e a trajetória da personagem que o criou trazem interseccionalidades, demandas que se cruzam e se retroalimentam. A fala de Sojourner constrange a plateia oitocentista e segue intimidando leitores do alto de todas as experiências humanas somadas nestas primeiras décadas do século 21.

A mulher negra está mais que nunca na luta pelo direito à igualdade no mundo do trabalho, nos acessos à educação formal, nos relacionamentos afetivos, na presença nos espaços de poder das sociedades e em todas as questões que tangem a plenitude da dignidade humana. Essa mulher, ainda que sofra os esmagamentos por estar na base da pirâmide da economia planetária, ousa como Truth a deixar os nomes e definições que a ela foram impostos e tomar para si o protagonismo da própria história.

Enquanto Truth falava corajosamente para audiências nem sempre amigáveis, outra mulher, Harriet Tubman, auxiliava centenas a escapar do cativeiro pela famosa Underground Railroad (“ferrovia subterrânea”). As impactantes palavras de Sojourner, na Convenção dos Direitos da Mulher, em Akron, em 1851 estão 112 anos distantes do célebre discurso “I have a dream” (“tenho um sonho” ), do Pastor Martin Luther King, nos degraus do Memorial Lincoln, na capital Washington, em 1963. Exemplos que dialogam nitidamente com a ideia de continuidade resumida na frase, tão comumente repetida hoje pela comunidade negra no Brasil, “nossos passos vêm de longe”.

Sojourner Truth, assim como os exemplos de ativistas citados, era consciente de que suas lutas iriam muito além dela ou de seu tempo de vida. A fagulha de esperança que levou aquela mulher ex-escravizada e autodidata a não temer soltar seu grito pelas veredas e cidades norte americanas é o motor que nos impele adiante, na batalha atual para trocar o ponto de interrogação pela exclamação e definitivamente afirmar: “Eu sou uma mulher!”.

E essa verdade não cessará de peregrinar entre nós.

Eliana Alves Cruz é autora dos romances Água de barrela, O crime do Cais do Valongo e Nada digo de ti, que em ti não veja.

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