O dia em que o Quilmes virou o time do Pato Donald (Luís Felipe dos Santos, 28/02/2009)

Memória Impedimento
7 min readNov 16, 2024

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Grande alvoroço se instalou no bairro de Jacarepaguá com a notícia divulgada no final de 2012. Não, a Fifa não desistiu da Copa do Mundo, nem o governo resolveu acabar com a renovação automática das concessões. A questão é que o Quilmes, clube mais antigo da Argentina, derrotou o Vélez Sarsfield e tornou-se o quarto classificado argentino para a competição, disputando uma vaga na Pré-Libertadores.

Não era exatamente uma novidade, pois o Quilmes disputara uma Libertadores antes, protagonizando o lamentável episódio Desábato. O problema previsto por um executivo mais atento era o nome que os jornalistas da empresa global deveriam dar ao clube. Vigorava desde 2007 a ordem de que clubes com nomes de empresas deveriam ser chamados apenas pelo nome das suas cidades. Malwee virou Jaraguá, Cimed virou Florianópolis, Ulbra virou Canoas. Ninguém entendeu lhufas, protestos aconteceram aos montes, mas a empresa seguiu irredutível na sua cruzada contra o merchandising.

Jarra de cerveja cheia de Quilmes

Só que em 2013, a cerveja Quilmes era uma marca bastante conhecida entre as bebidas importadas e nacionais. O mercado das cervejas de litro estava se expandindo e a Quilmes era uma das opções mais aceitas. Um dos executivos achou que, por ser a empresa argentina, nada demais aconteceria.

Qual o quê. O departamento de marketing da emissora foi informado pelos espiões de sempre. Quilmes não era um nome aceitável. E o contrato milionário com a outra distribuidora, como ficava? O departamento reuniu-se com o jornalismo para decidir renomear o clube.

– Pois bem, ficamos sabendo que o Quilmes jogará a Libertadores. A partir de agora, o clube será chamado pelo nome da sua cidade.

– Buenos Aires?

– Isso.

Correram os jornalistas para atualizar suas pautas. No dia seguinte, choveram emails para a empresa. Ora, não havia um clube chamado Buenos Aires. Ora, o clube que era denominado Buenos Aires era o Quilmes. Ora, o Quilmes NÃO FICAVA em Buenos Aires!

– Como assim? — perguntou o big boss.

– Chefe, o Quilmes é da província de Buenos Aires, apenas. Fica na cidade de Quilmes.

– Droga! Eles já se classificaram para a fase de grupos?

– Ainda não, precisam ganhar do Estudiantes de Mérida em casa.

– Hm. Então ignorem esse jogo. Vamos esperar o resultado.

Assim cumpriram os jornalistas. Não se viu na TV ou na internet qualquer referência ao jogo, que acabou com vitória de 5×1 do Quilmes em casa. Saiu o sorteio da segunda fase e cumpriu-se o horror: O Quilmes, por ser o pior argentino no ranking da Conmebol, não foi cabeça de chave. Acabou caindo no mesmo grupo do Flamengo. DO FLAMENGO!

Convocada reunião urgente.

– Ok, temos que decidir que nomes vamos dar ao Quilmes. Não pode ser Buenos Aires por que a cidade é Quilmes. Que outras opções temos?

– Bom — disse um jornalista entendido — o nome é Quilmes Atlético Clube, foi fundado em 1887, o apelido é El Cervecero, o estádio é o Centenário.

– Já temos três opções. Atlético Clube, Cervecero e Centenário.

– Nenhuma possibilidade de chamar pelo nome certo?

– Temos que manter a coerência.

– Tudo bem — disse o chefe de jornalismo — eu sugiro Atlético Clube. Cervecero pode causar problemas com a legislação que impede propagandas de bebidas alcoólicas, e nunca chamamos um time pelo nome do seu estádio.

– Que assim seja — disse o executivo, mais aliviado.

Assim foram ao campo Flamengo X Atlético Clube. Não foi muito complicado, embora os protestos e as gozações das outras emissoras. O problema aconteceu no returno do grupo. O Flamengo enfrentava o Atlético Clube na última rodada do returno, disputando classificação, jogo da TV. Numa quarta-feira — no domingo anterior, jogava o Brasileiro contra o Atlético Mineiro; no domingo posterior, o Atlético Paranaense.

No domingo, o executivo chefe chamou uma reunião extraordinária com o jornalista entendido e o chefe de jornalismo. Quando todos chegaram, reproduziu várias vezes teipes diversos dos programas da emissora.

“O Flamengo está preparado para enfrentar o Atlético Mineiro, mas sem deixar de pensar no Atlético Clube e no Atlético Paranaense”

“O treinador do Flamengo mostrou que jogará com reservas para enfrentar o Atlético.

– Vamos com reservas para enfrentar o Atlético, pois precisamos de força total para jogar contra o Atlético”

“O Flamengo está certo ao priorizar o Brasileiro. Vamos ver como vão se portar os jovens contra o Atlético. A idéia mesmo é vencer o outro Atlético, o Clube”

Entre outras tantas.

– Vocês conseguiram entender quem enfrenta quem?

– Deveriam diferenciar os Atléticos Mineiro, Clube e Paranaense — disse o chefe de jornalismo.

– Isso é evidente. Só que ninguém consegue entender nada. Chovem emails para a redação perguntando qual dos três atléticos é o clube.

– Mas não são todos clubes? — perguntou o jornalista entendido, louco para queimar o chefe.

– EXATAMENTE! Temos que mudar imediatamente esse nome. Tudo indica que o Quilmes vai passar para a próxima fase. Ainda dá tempo.

– Bom, opções não temos muitas…o departamento jurídico certamente vetará o “cervejeiro”.

– Dá para tentar!

Duas horas depois, chega um parecer do advogado de plantão.

“Considerando (…) ponderando (…) observamos que a denominação “cervejeiro” para uma equipe de futebol, além do inusitado, contém uma possível infração legal caso o time dispute jogos a ser transmitidos antes das 22h. É o parecer”

Não dava mesmo. Ficaram os três analisando por mais uma hora a história do Quilmes e todas as suas características. Chegaram na camiseta, que continha o distintivo do clube.

Camisa do clube Quilmes, com o distintivo QAC.

– Olha ali — disse o executivo — podemos dizer o que existe no distintivo.

– Aquilo é um QAC.

– Então. Vamos chamá-lo assim.

Primeiro jogo da segunda fase. Como estava previsto, o Quilmes (QAC) enfrentou novamente o Flamengo. Dada a importância da partida, escalaram o melhor narrador da empresa. Quando chegou o roteiro, imediatamente ele protestou.

– O nome do time é esse mesmo?

– Ordens da direção… — respondeu o contínuo.

– Produtor! Que diabo de time é esse? Não era “Atlético Clube”?

– Não é mais, segundo a direção determinou. Parece que é para não confundir com os outros Atléticos.

– Tá, e daí eu vou chamar o time de QUAC? Por acaso o treinador é o Donald e o dono é o Tio Patinhas?

– Não é QUAC, é CAC. Q sem U é pronunciado como C, segundo o nosso revisor.

– Ah, tá bom.

Começou o jogo no Maracanã. É claro que o narrador chamou o time de QUAC o tempo todo, enfrentando as ordens do revisor. O que ninguém imaginava era a proporção disso. Em fóruns, no Orkut, nos blogs, nas emissoras concorrentes e nas rádios, o jogo do Flamengo contra o “QUAC”, o time de “patos”, virou a principal piada da semana. O Flamengo conseguiu um resultado pouco confortável, 1×0 — no dia seguinte, a interjeição animal utilizada pelo narrador já era capa do Olé.

“Brasileiros acham que Flamengo ganhou do time do Pato Donald” — era a manchete.

Pato Donald da Disney.

É claro que os hermanos se ofenderam. Para a quarta-feira seguinte, armaram uma guerra no estádio Centenário. Vestidos com máscaras de patos, levando patos para a arquibancada, cuspindo, ofendendo e jogando foguetes nos brasileiros, os argentinos reagiram à sua maneira. O narrador escalado foi outro, que dessa vez não deixou escapar a ordem do revisor. Claro que a dificuldade fonética mudou o nome da equipe para CÁQUI, a cor, e alguma interjeição patolina acabou escapando em meio à transmissão.

O Flamengo não resistiu à guerra. Perdeu por 2×0 — o Quilmes tinha um time bom — e aumentou a piada a níveis estratosféricos. No estádio, os argentinos inventaram um novo canto:

Soy de la banda del cervecero

El decano de Argentina

Se nosotros somos patos

Ustedes son gallinas

Para horror dos executivos de Jacarepaguá, o próximo adversário do Quilmes na Libertadores era o Botafogo — e o mesmo narrador, inventor de todo o problema, seria escalado para o Engenhão. Mais uma vez, os erros foram repetidos, levando os produtores à loucura.

“Lá vem o QUAC com a bola…”

“O QUAC está fazendo duas linhas de quatro”

“gooooooooooooooooooooooooooool do QUAC”

O jogo acabou empatado em 1×1. No vestiário argentino, o treinador do Botafogo praticava avançadas técnicas de hipnose em um centroavante quando ouviu um estampido na porta. Era o executivo da grande rede de televisão.

– Só vim dizer uma coisa. GANHEM ESSA MERDA. Ganhem desse time desgraçado. Eu não vou ter que agüentar uma final de Libertadores sem saber dizer o nome do time. Não vou. Ganhem desses filhos da puta. Pelo Brasil!

Com a mesma celeuma armada em campo, o Botafogo foi heróico e conseguiu uma vitória por 1×0. O QUAC poderia ser esquecido para sempre.

É claro que o apelido pegou. Além de “los cerveceros”, os torcedores do Quilmes começaram a ser chamados de “los patos”, e a direção do clube resolveu trocar o distintivo no ano seguinte — usando a inscrição “Quilmes” inteira, não apenas QAC. O caso ganhou repercussão mundial e foi citado em tom de chacota por várias revistas internacionais.

Aquele executivo foi mantido, por seguir à risca a coerência editorial da empresa. O problema é que logo depois, começou a Copa Sul-Americana, onde jogava o Sporting Cristal — patrocinado pela cervejaria peruana de mesmo nome. Foi marcada outra reunião extraordinária.

Luís Felipe dos Santos

Texto publicado originalmente em: https://impedimento.wordpress.com/2009/02/28/o-dia-em-que-o-quilmes-virou-o-time-do-pato-donald/

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