Uma bomba em Morungava ou Historinha sobre a relação entre futebol e demência narcótica (Douglas Ceconello, 22/05/07)

Memória Impedimento
6 min readNov 14, 2024

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Andei pensando em jogos que já acompanhei de uma forma bizarra ou correndo alguma espécie de risco físico ou emocional. Pensei em partidas com confronto entre torcidas ou policiais, no recente Gre-Nal assistido num bar do Jardim Leopoldina e em outros tantos que fui em um ônibus alugado, partindo totalmente alterado com a maloqueirada da vila. Foram jogos estranhos, mas nenhum se compara a Inter e Paysandu, em 2003.

Na época, o Inter fazia um bom campeonato, após quase ter sido rebaixado em 2002. Muricy Ramalho ainda não tinha sucumbido a seus vícios e conseguira armar uma equipe coerente, baseada no talento de Daniel Carvalho, o referencial técnico. Nilmar e Diego funcionavam bem como dupla de ataque.

Era um sábado, o jogo aconteceu no Beira-Rio. Estava prontito para me aventurar pela Freeway, com a inocente confiança de que aquele time chegaria em algum lugar. No entanto — e como há interferências na minha vida de torcedor, ó Cristo — um casal de amigos convidou para passar o final de semana em um sítio em Morungava, cerca de 30 quilômetros distante de Porto Alegre. Acatei. Já estava em débito com o social e tinha crédito com a arquibancada.

E lá fomos nós. Jovens saudáveis e lépidos, um rádio de pilha, conhaque e outros venenos que mais tarde se mostrariam quase letais. Eu realmente tinha a esperança de que a diversão conjunta fosse comandar as horas bucólicas na propriedade rural. O dia estava claro, com sol consistente e a boa vontade pairava no ar. A euforia era tanta que não demorei a preencher com DOMECQ um copo cujo tamanho recomendava que deveria ser usado para consumir líquidos benéficos à saúde. Sorvi em tempo recorde para dar um brilho e me preparar para a felicidade.

Eis que aparece uma Tamburello no meu caminho. O companheiro da anfitriã tinha sotaque forte de porto-alegrense e gostava de reggae. Mais não preciso dizer. Entre o papo furado e a feitura do almoço, aparece o indefectível tijolinho do capeta. Tem início o ritual de preparo do artefato maconhístico. Não demora para o usuário chegar no MICRO SYSTEM e sacar da mochila o Legend.

- Baahh, vamos escutar um Bob -, diz o malandro.
- Odeio reggae -, responde uma interlocutora, que, de fato, não suporta um som rasta.
- Tu não gosta de Bob?! Bahh, mina, que palha.

Mas ali ficamos, ainda felizes, com Buffalo Soldier comandando as ações. A bomba ficou pronta. Embora já conhecesse meus limites e reações quando estes são ultrapassados, também não sou de fazer desfeita aos donos da casa. E, como não queria ficar deslocado da espiritualidade do momento, não me restou qualquer outra saída.

Um aparte: já tenho idade suficiente para ter descoberto que minha droga é o álcool. Tudo mais me transtorna profundamente. Mesmo com o ORÉGANO, sempre fui extremamente fraco e suscetível aos efeitos. Bobeira pouca é bobagem. Com o IOGURTE não, geralmente me deixa com a vida transparecendo nos olhos e nos POROS, aberto ao mais fraterno convívio. Por isso, hoje rendo preces apenas ao DEUS CANECO.

E lá fomos nós. Estranhei porque geralmente demora a cair a ficha. Daquela vez não, foi rápido demais e realmente proporcionou uma confraternização por dez minutos, tempo suficiente para que o segundo ou terceiro copo de destilado fosse entornado. Admito que me passei e traguei como se fosse o MINISTRO. Mas nada que pudesse justificar a perda de toda coordenação motora que os humanos herdam de priscas eras.

Nesse momento, já empunhava o pequeno NKS, pretendendo acompanhar a jornada esportiva da Guaíba, andando pelo pátio de forma semelhante à que posteriormente vi Johnny Deep fazer ao interpretar Hunter Thompson. Mas meu medo e delírio sucedia em Morungava. Vaguei infindáveis minutos chutando o ar e dobrando os joelhos ao redor da bela e aconchegante residência, já estranhamente iluminada perante os meus olhos. Quando sentado, a cabeça me puxava para dar uma banda. Literalmente. Fazia movimentos bruscos e involuntários para o lado -, mas o corpo não queria, e esse dilema durou uma eternidade. Como a risadeira ainda estava uma beleza, continuei a fumegação por mais um tempo.

Havia uma piscina na casa, cheia de água verde e plantas variadas, que se colocavam pela borda como braços de criaturas HORRENDAS. Aspecto pantanoso. O adorador de Bob Marley aventurou-se na podridão e quase pude perceber a resistência da água quando ele deu uma ponta na gigantesca gelatina de limão. A mim, só restou preservar o grão de dignidade que ainda guardava no bolso e comunicar : — preciso dar uma deitadinha.

Mas não deitei sozinho. Belzebu escamoteou-se para o leito. E me levou aos delírios mais desgraçados que já tive. Mais do que a pneumonia sofrida aos oito anos e que resultou numa febre equatoriana, me deixando deitado por dias e me proporcionando a leitura do meu primeiro livro, a saber O menino candeeiro. Bom livro, aliás. Mas bem. Fui dominado por uma sucessão de imagens e sensações absurdas, difíceis da narrar e de lembrar, tremendo e tentando me reconciliar com meu sistema neurológico. Pânico e ansiedade. Na hora, não me parecia justo que escapasse ileso. Tinha certeza que sofreria uma lesão irreversível. Fiquei lá, em chamas, durante um tempo que pareceu elástico, sob observação atenta de uma companheira, que temia pelo enfarto fulminante — 24 anos, difícil de sair vivo. “Estudante de Jornalismo abusa das drogas e sofre enfarto”, estampava a Zero Hora impressa no éter pelo meu cerebelo.

Eis que no meio da fantasia e do desespero, vislumbro um brócolis, tenro, grande, verde. Tínhamos comido massa com brócolis. Aquilo foi o ápice da fantasmagoria vespertina. Mas a singela planta da família das CRUCÍFERAS também representou o meu retorno ao mundo real. Numa manobra súbita, saltei e já estava no banheiro, acertando as contas com o estômago, que insistia em se livrar de mim. Voltei para o quarto e me atirei na cama, quase lúcido, mas envergonhado diante da civilização. Então, lembrei. O jogo. Puxei o rádio e o coloquei sobre a barriga, ainda confundindo locução e fantasia, meio louco, meio são. Volta e meia, vinha da rua um grito desesperado, direto da garganta do senhor da minha desgraça:

- DÔGGLAAAAS, E O COLORADO?

Puta que me pariu. Eu não conseguia nem respirar, quanto mais responder qualquer coisa. A partida estava empatada. Mesmo entregue às moscas, tentei torcer. Achei que não ia dar certo, pois acredito que cada jogo precisa de um nível absurdo de concentração de cada torcedor. Mas o Inter marcou o gol da vitória no final. Wilson, o zagueiro que também gostava de Bob Marley. Entendi a coincidência como prelúdio de uma conspiração. Estendi um insólito punho cerrado para o ar, o que deve ter feito a cúmplice suspeitar que eu estivera fingindo. Mas foi um movimento involuntário. E não poderia deixar passar um gol sem comemoração. Dormi. Acordei com a maior dor de cabeça que já existiu na história da humanidade. Solito no quarto, com uma picareta atravessada do cume do melão até o queixo. Estavam lavando a louça. Cada vez que uma colher de chá tocava na pia, era como se alguém girasse a picareta em 180 graus. O desespero me fez reunir forças e clamar por atenção:

- Opa.

Fui atendido.

- Por favor, tentem fazer NENHUM barulho. Minha cabeça está RACHANDO.

Aos poucos, uma entidade qualquer extraiu lentamente a picareta da minha cabeça. Levantei como se tivessem me virado do avesso e passado num ralador. Cambaleei até a cozinha. As pessoas estavam se divertindo, o que me pareceu um comportamento demasiado pornográfico naquela altura das coisas. Malditos FUMETAS experientes.

- Fiquei meio mal -, comentei com o ALGOZ.

- É que era de um TIPO ESPECIAL.

Era skunk.

- Ainda bem, achei que fosse o demônio prensado.

Nota: esse texto trata-se de uma advertência à JUVENTUDE e culmina com o conselho: NUNCA abandonem seu time pela FUMETAGEM. E se forem a Morungava, tenham cuidado.

Saudações,
Douglas Ceconello.

Texto original em: http://www.insanus.org/impedimento/arquivos/2007/05/me_surpreendi_p.html

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Textos que marcaram a história do fabuloso sítio Impedimento.

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