Abençoado seja o fruto.

Sobre mulheres enquanto povo colonizado

Colonizado. Explorado. Mas rebelde.

Furiosa
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5 min readJun 8, 2020

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Esse texto levou 1h pra ser traduzido. Me ajude a continuar trabalhando!

Tradução do texto On women as a colonized people, de Robin Morgan, presente no livro Going too far: the personal chronicle of a feminist, publicado originalmente em 1977. Você pode ler o original em inglês aqui.

Este curto ensaio foi escrito a pedido de irmãs do Movimento de Saúde das Mulheres como introdução a um manual de saúde pessoal, Círculo Um, publicado por mulheres do Colorado. Apesar de o texto ter sido escrito em 1974, eu já vinha fazendo essa analogia entre mulheres e outros povos colonizados por muitos anos em palestras, porque me ocorreu que a opressão das mulheres era mais difusa (e evasiva) do que eu havia pensado. Pode-se comparar o sexismo com as questões de classe e raça e até de casta, e ainda sobraria uma alienação mais fundamental. Tais comparações são desagradáveis em termos de sofrimento humano — não há balança que o meça, e nenhuma análise, política ou o que quer que seja, deve “comparar e contrastar” sofrimentos — apesar de precisamente abordagens de sou-mais-oprimido-que-você serem tentadas o tempo todo por políticos patriarcais da Direita e da Esquerda. Eu estive no meio daquelas feministas que estavam, ao invés disso, buscando formas de articular o sexismo — uma alça, uma alavanca; uma forma de traduzir em termos de filosofia política geralmente aceitos e compreendidos “o que é que nós mulheres queremos”. Daí as analogias — que sempre foram perigosas, já que os próprios termos haviam sido cunhados e analisados, as próprias condições haviam sido formadas e às vezes até reformadas pelos homens e pelo patriarcado.

A busca continua. Não só definimos e redefinimos mas criamos termos completamente novos para interpretar — e mudar — nossa condição como mulheres. Quando eu propus pela primeira vez que nós enxergássemos as mulheres como um povo colonizado, a sugestão foi recebida com incredulidade, até por parte de outras feministas. Mas o que era “ir longe demais” ontem inevitavelmente se torna algo totalmente pressuposto, até tomado como garantido, amanhã. Da mesma forma, a teoria da colonização das mulheres foi assimilada ao pensamento feminista. E então vamos adiante, a partir daqui.

Enquanto feminista radical, eu faço uma analogia entre mulheres e povos colonizados, um paralelo que funciona bem — inevitavelmente, até — se você se propõe a examiná-lo cuidadosamente, superando o choque inicial ou nossa maldição feminina de sentir culpa.

Frantz Fanon e Albert Memmi, tão sexistas quanto outros homens mas autoridades consideráveis a respeito do processo de colonização e seus efeitos, escreveram sobre algumas características básicas pelas quais tal processo sempre poderia ser identificado. Primárias dentre essas são as seguintes: os oprimidos têm sua cultura, sua história, seu orgulho e suas raízes roubadas — tudo mais concretamente expresso na conquista de sua própria terra. Eles são forçados (por um sistema de punição e recompensa) a adotar os padrões, valores e identificação do opressor. No tempo devido, eles se tornam alienados de seus próprios valores, de sua própria terra — que, é claro, está sendo minada pelo opressor por seus recursos naturais. Eles são eufemisticamente permitidos (forçados) a trabalhar na terra, mas uma vez que eles não se beneficiam disso nem têm poder sobre o que produzem, eles acabam se sentindo oprimidos por isso. Portanto, a alienação do seu próprio território serve para mistificar aquele território, e a identificação forçada com seus mestres colonizadores provoca o eventual desprezo ambos por eles mesmos e pela terra. Segue-se, é claro, que o primeiro objetivo de um povo colonizado é reivindicar sua própria terra.

Mulheres são um povo colonizado. Nossa história, valores, e cultura supra-cultural foram tomadas de nós — uma tentativa ginocida manifesta mais impressionantemente na tomada patriarcal de nossa “terra” básica e preciosa: nossos próprios corpos.

Nossos corpos foram tomados de nós, minados por seus recursos naturais (sexo e crianças), e deliberadamente mistificados. Cinco mil anos de tradição judaico-cristã, virulenta em sua misoginia, ajudaram a reforçar a crença de que mulheres são “sujas”. A ciência médica androcêntrica, como outras indústrias profissionais a serviço do colonizador patriarcal, tem buscado por meios melhores e mais eficientes de minar nossos recursos naturais, expressando — literalmente — quase nenhuma gota de sangue de preocupação pela real saúde, conforto, cuidado, ou até sobrevivência desses recursos. Isso não deveria nos surpreender; nossa ignorância sobre nosso próprio terreno primário — nossos corpos — é do auto-interesse do patriarcado.

Devemos, enquanto mulheres, começar a reivindicar nossa terra, e o lugar mais concreto a começar é com nossa própria carne. Educação de si e de irmãs é um primeiro passo, uma vez que toda essa ignorância adotada e todo esse auto-ódio se dissolvem diante do conhecimento emocional e intelectual de que nossos corpos de mulheres são construídos com grande beleza, habilidade, limpeza, sim, santidade. A identificação com os padrões do colonizador se dissolve diante das revelações que florescem em uma mulher que empunha um espéculo em uma mão e um espelho na outra. Ela está desmistificando seu próprio corpo para si mesma, e ela nunca mais estará tão alienada dele de novo.

A partir da educação nós desenvolvemos expectativas mais altas, e a partir disso nós nos movemos através da raiva adentro do ímpeto por autodeterminação, por gozar de poder sobre nossas próprias vidas, por reivindicar os produtos de nosso labor (nossa própria definição sexual, e nossas próprias crianças), e, enfim, por transformar a qualidade da própria vida em sociedade, como um todo — em algo novo, com compaixão, e verdadeiramente são.

É por isso que, como feministas radicais, nós acreditamos que a Revolução das Mulheres é potencialmente a esperança mais sensível por mudança na história. E é por isso que o espéculo pode muito bem ser mais poderoso que a espada.

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