NÚCLEO DE BASE AUTÔNOMO: ALÉM DO OBREIRISMO, ALÉM DO SINDICALISMO
Por Alfredo Bonanno
Introdução
A ideia de traduzir esses dois textinhos de Alfredo Maria Bonanno (que de tão pequenos, resolvi traduzir como um só) vem de duas necessidades:
1 — mostrar que dentro do anarquismo existe o debate sobre a organização burocrática e o limite das organizações formais, como partidos e sindicatos.
2 — mostrar que diferente do que os estereótipos colocam, o anarquismo insurrecionário não se limita a ações violentas e ilegalistas, nem pensa a “propaganda pelo ato” de forma ingênua e impraticável.
É inegável a influência de Bonanno na atualidade, influenciando diversos grupos anarquistas e libertários na europa. Sua elaboração é claramente influenciada pelo autonomismo e pelo situacionismo, sempre pensando nas transformações no mundo do trabalho e como elas mudaram a forma organizativa dos trabalhadores e das classes oprimidas hoje. Obviamente, que esses pequenos textos não são suficientes pra abordar toda a extensão de seu pensamento, nem as implicações teóricas dos núcleos autônomos de base. Mas sua crítica as organizações formais e ao anarcossindicalismo ainda reverbera, numa era onde a automação e o espetáculo retiraram a “exclusividade” da luta por emancipação do espaço de fábrica e a transferiu pra outros espaços da vida. É certo que esses “textículos” (espaço para piadas de duplo sentido: a revolução será luxuriosa ou não será!) ajudam a despertar a curiosidade e abrir um debate relevante pra qualquer um preocupado com o fim da sociedade de classes e das hierarquias sociais.
Os textos originais se encontram em:
El núcleo de base autónomo | Biblioteca anarquista (theanarchistlibrary.org) (em espanhol)
Beyond Workerism Beyond Syndicalism | The Anarchist Library (Em Inglês)
O Núcleo de Base Autônomo
Estruturas de massa, os núcleos de base autônomos são o elemento que conecta a organização anarquista informal às lutas sociais.
O núcleo autônomo de base não é uma forma inteiramente nova de luta. Foram feitas tentativas para desenvolver estas estruturas na Itália nos últimos dez anos. Sendo as mais notáveis delas o Movimento Autônomo dos Trabalhadores Ferroviários de Turim e as ligas autogeridas contra a base de mísseis de cruzeiro em Comiso.
Acreditamos que a luta revolucionária é, sem dúvida, uma luta de massas. Por isso, vemos a necessidade de construir estruturas capazes de organizar o maior número de grupos de explorados possível.
Sempre consideramos criticamente a perspectiva sindicalista, tanto por causa de suas limitações como instrumento [de ação] , quanto por sua trágica involução histórica, que nenhuma pincelada da pintura anarquista pode cobrir. Então chegamos à hipótese de construir núcleos de base autônomos, que não tinham as características de estruturas mini-sindicalistas, tendo outros objetivos e relações organizacionais.
Através dessas estruturas, tem-se feito um esforço para vincular o movimento anarquista específico às lutas sociais. Uma barreira considerável de reticências e incompreensões tem sido encontrada entre os camaradas, e isso tem sido um obstáculo para a realização desse método organizacional. É nos momentos de ação que surgem diferenças entre companheiros que concordam em princípio com a propaganda anarquista, a luta contra o Estado, a autogestão e a ação direta. Quando passamos para uma fase organizacional, no entanto, devemos desenvolver um projeto que esteja em contato com o atual nível de confronto entre as classes.
Acreditamos que, devido à profunda transformação social, é inconcebível que uma única estrutura tente conter toda a luta social e econômica dentro de si. De qualquer forma, por que os explorados entrariam e se tornariam parte de uma organização anarquista específica para realizar sua luta?
Uma mudança radical na forma como a sociedade funciona — a exploração — só pode ser alcançada através da revolução. É por isso que estamos tentando intervir com um projeto insurrecional. As lutas de amanhã só terão um resultado positivo se a relação entre a estrutura anarquista específica informal e a estrutura de massas dos núcleos autônomos de base for esclarecida e posta em prática.
O objetivo principal do núcleo não é abolir o Estado ou o Capital, que são praticamente inatacáveis enquanto permanecerem um conceito geral. O objetivo do núcleo é combater e atacar este Estado e esta Capital nas suas estruturas mais pequenas e acessíveis, recorrendo ao método insurrecional.
Os grupos de base autônomos são as estruturas de massa e constituem o ponto de encontro entre a organização anarquista informal e as lutas sociais. A organização dentro do núcleo distingue-se pelas seguintes características:
1 — autonomia contra qualquer força política, sindicato ou força sindical;
2 — conflito permanente (luta constante e efetiva pelos objetivos decididos, e não intervenções esporádicas ocasionais);
3 — ataque (a recusa de engajamento, mediação e acomodação que desafiam o ataque ao alvo escolhido).
No que diz respeito aos objetivos, estes são decididos e realizados através de ataques às estruturas repressivas, militares e produtivas, etc. A importância do conflito e do ataque permanentes é fundamental.
Esses ataques são organizados pelos núcleos em colaboração com estruturas anarquistas específicas, que fornecem suporte prático e teórico, desenvolvendo a busca dos meios necessários para a ação, apontando as estruturas e indivíduos responsáveis pela repressão e oferecendo um mínimo de defesa contra tentativas de recuperação política ou ideológica pelo poder ou contra a repressão pura e simples.
À primeira vista, a relação entre a organização anarquista específica e o núcleo autônomo de base pode parecer contraditória. A estrutura específica segue uma perspectiva insurrecional, enquanto os núcleos parecem estar em um plano completamente diferente, o da luta intermediária. Mas essa luta só permanece assim no início. Se a análise em que se baseia o projeto coincide com os interesses dos explorados na situação em que se encontram, então um resultado insurrecional da luta é possível. É claro que esse resultado não é algo certo. Isso não pode ser garantido por ninguém.
Esse método pode ser acusado de ser incompleto e de não levar em conta o fato de que um ataque contra uma ou mais estruturas sempre acaba aumentando a repressão. Os companheiros podem refletir sobre essas acusações. Pensamos que nunca é possível ver o resultado de uma luta em curso. Mesmo uma luta limitada pode ter as consequências mais inesperadas. E, em qualquer caso, a passagem das várias insurreições — limitadas e circunscritas — para a revolução nunca pode ser garantida antecipadamente por qualquer procedimento. Avançamos por tentativa e erro e dizemos a qualquer um que, se tiver um método melhor, aplique-o.
Além do Obreirismo, Além do Sindicalismo
O fim do sindicalismo corresponde ao fim do obreirismo.
Para nós, é também o fim da ilusão quantitativa do partido e da organização específica da síntese.
A revolta de amanhã deve procurar novos caminhos.
O sindicalismo está em declínio. Pro bem ou pro mal, essa forma estrutural de luta de uma era está desaparecendo, um mundo futuro e um mundo modelo visto em termos de uma reprodução melhorada e corrigida do antigo.
Estamos caminhando para novas e profundas transformações. Na estrutura produtiva, na estrutura social.
Métodos de luta, perspectivas e mesmo projetos de curto prazo também estão se transformando.
Em uma sociedade industrial em expansão, o sindicato passa de instrumento de luta a instrumento de sustentação da própria estrutura produtiva.
O sindicalismo revolucionário também desempenhou o seu papel: puxar os trabalhadores mais combativos para a frente, mas, ao mesmo tempo, empurrá-los para trás em termos de capacidade de ver a sociedade futura ou as necessidades criativas da revolução. Tudo ficou parcelado dentro da dimensão fabril. O obreirismo não é comum apenas ao comunismo autoritário. Destacar áreas privilegiadas do embate de classes é ainda hoje um dos hábitos mais arraigados que é difícil perder.
O fim do sindicalismo, portanto. Nós temos dito isso a quinze anos. Houve um tempo em que isso causou críticas e espanto, especialmente quando incluímos o anarcossindicalismo em nossa crítica. Hoje somos mais facilmente aceitos. No fundo, quem não critica hoje os sindicatos? Ninguém, ou quase ninguém.
Mas a conexão é negligenciada. Nossa crítica ao sindicalismo foi também uma crítica ao método “quantitativo” que tem todas as características do partido em seu embrião. Era também uma crítica às organizações específicas de síntese. Era também uma crítica à respeitabilidade de classe emprestada da burguesia e filtrada pelos clichês da chamada moral proletária. Tudo isso não pode ser ignorado.
Se muitos camaradas concordam conosco hoje na nossa já tradicional crítica ao sindicalismo, aqueles que partilham uma visão de todas as consequências que ele provoca são apenas alguns.
Só podemos intervir no mundo da produção usando meios que não se coloquem na perspectiva quantitativa. Eles não podem, portanto, alegar ter organizações anarquistas específicas por trás deles trabalhando na hipótese de síntese revolucionária.
Isso nos leva a um método diferente de intervenção, o de construir “núcleos” fabris ou “núcleos” zonais que se limitam a manter contato com uma estrutura anarquista específica, e são exclusivamente baseados na afinidade. É da relação entre o núcleo base e a estrutura anarquista específica que surge um novo modelo de luta revolucionária para atacar as estruturas do capital e do Estado através do recurso a métodos insurrecionais.
Isso nos permite um melhor acompanhamento das profundas transformações que estão ocorrendo nas estruturas produtivas. A fábrica está prestes a desaparecer, novas organizações produtivas estão tomando seu lugar, baseadas principalmente na automação. Os trabalhadores de ontem vão ficar parcialmente integrados numa situação de apoio ou simplesmente numa situação de segurança social a curto prazo, sobrevivência a longo prazo. Novas formas de trabalho surgirão no horizonte. Já a frente operária clássica não existe mais. Da mesma forma, o sindicato clássico obviamente não existe mais tanto quanto. Pelo menos já não existe na forma que conhecíamos até agora. Tornou-se uma empresa como qualquer outra.
Uma rede de relações cada vez mais distintas, todas sob a bandeira da participação, do pluralismo, da democracia, etc., se espalhará pela sociedade unindo quase todas as forças de subversão. Os aspectos extremos do projeto revolucionário serão sistematicamente criminalizados.
Mas a luta tomará novos caminhos, se filtrará para mil novos canais subterrâneos emergindo em cem mil explosões de revolta e destruição com nova e incompreensível simbologia.
Como anarquistas devemos ser cuidadosos, nós que carregamos uma hipoteca muitas vezes pesada do passado, para não ficarmos distantes de um fenômeno que acabamos não entendendo e cuja violência pode um belo dia até nos assustar, E no primeiro caso devemos ter o cuidado de desenvolver nossa análise de forma integral.