A Pegada Ecologica na União Europeia

Interrogações Internacionais
12 min readJan 12, 2024

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Quantos planetas seriam necessários para sustentar a procura por recursos naturais exigida pelo estilo de produção e consumo do homem contemporâneo hoje? Como a Europa — tradicionalmente considerada uma região ambientalmente consciente — têm “deixado sua pegada” frente aos desafios crescentes em termos de sustentabilidade ambiental?

De maneira objetiva, já podemos responder a primeira questão: contamos apenas e unicamente com um único planeta Terra e a biocapacidade de regeneração de seus ecossistemas tem diminuído significativamente a cada ano. Com isso mente, ao que se refere a segunda questão, teremos que levantar algumas evidências — não muito otimistas — sobre o contexto europeu e a sua realidade ambiental: em 2019, por exemplo, os relatórios da WWF e do Global Footprint Network alertavam que se todas as pessoas do mundo tivessem o estilo de vida como os residentes da União Europeia, em maio daquele ano, a humanidade teria esgotado os recursos naturais que tanto dependemos (ANP, 2029). Sabendo que os países europeus não estão imunes a estes desafios, esse pequeno ensaio buscará analisar a Pegada Ecológica da UE e os desafios para a sustentabilidade ambiental.

“Explorando a Pegada Ecológica”

Desde 2019 a humanidade tem operado “a crédito” do capital natural disponível, o que significa que estamos esgotando as reservas da natureza cada vez mais rápido (ANP, 2019). Para mensurar tal “redução do planeta”, ou seja, a diminuição dos recursos biológicos e a capacidade de absorção dos resíduos produzidos pelas pessoas é que contamos com o que chamamos de “Pegada Ecológica”. O conceito foi criado em 1990 na Universidade da Columbia Britânica pelos pesquisadores Mathis Wackernagel e William Rees. Ela é uma medida da área (em hectares globais de terra e água produtiva) que expõe a “pegada” deixada pela atividade do homem sobre o meio. É a partir dos dados informados por ela que se verifica todas as exigências depositadas sobre a natureza, desde a produção de alimentos, fibras, uso de áreas urbanas à emissão de gases do efeito estufa, frente a sua capacidade de regeneração (WWF, 2022).

São 6 classificações dos espaços ecológicos que são analisadas dentro dos critérios da pegada:

  • Pegada de terra de pastagem;
  • Pegada de produtos florestais;
  • Pegada dos pesqueiros;
  • Pegada de terras agrícolas;
  • Pegada de ocupação de terrenos construídos;
  • Pegada de carbono.

Usando como base suas classificações, se olhássemos para a fisionomia do planeta Terra ao longo do último meio-século, veríamos claramente as mudanças que a rápida expansão do meio urbano e a intensa atividade antrópica têm causado sobre as áreas produtivas de terra e água, bem como impactando negativamente a disponibilidade de espécies de vegetais e animais. Infelizmente, de modo geral, o panorama não é nada bom.

De acordo com o relatório Planeta Vivo de 2022, as Pegadas de Carbono, de Terras Agrícolas e de Produtos Florestais, por exemplo, foram as pegadas de uso da terra da população global que tiveram maiores impactos devido a demanda humana (representaram 60%, 19% e 10% respectivamente). Além disso, o documento também nos chama atenção para a redução de 69% nas populações de vida selvagem monitoradas entre 1970 e 2018, a recorrência dos incêndios florestais, a morte de áreas verdes devido à seca e o descongelamento da camada de permafrost. Tais fatores que contribuem para o aumento da liberação de CO2 na atmosfera, pois o material vegetal morto libera CO2 quando se decompõe ou é queimado (WWF, 2022).

Diante dessas evidências, está cada vez mais claro a necessidade de o homem reconhecer a existência dos limites planetários impostos pela natureza. Os relatórios mais recentes sobre a pegada europeia, demonstram que os padrões de consumo e produção, é impulsionador direto e indireto da pressão sobre os recursos naturais que certamente não atinge somente a Europa, mas também em outras regiões, uma vez que esta depende de recursos extraídos em outros países.

Embora, os compromissos de várias iniciativas e planos de ação dos países membros demonstrem que há um entendimento claro sobre a necessidade de agir, o modelo de negócio dominante baseado em uma lógica linear de “extrair-fabricar-descartar” é, além de antiquado para a realidade urgente que vivemos, também incompatível com qualquer possibilidade de um futuro seguro para as próximas gerações. Qualquer possibilidade que envolva ações para reduzir a pegada ecológica não é mais uma “opção filosófica” de repensar os modos de produção, distribuição e consumo, mas um imperativo de criação de estratégias de direcionamento no contexto europeu que devem percorrer o setor privado e público (SCHMIDT, 2020).

Na “economia ambiental”, a conta não fecha!

Nesse sentido, começamos a “conversar” dentro de uma linguagem de economia de mercado: o homem explora os serviços que tem valor de mercado, ou seja, a produção de alimentos e energia, por exemplo, em detrimento dos “serviços que não tem preço de mercado”, como a nossa biodiversidade — nosso capital natural. Trata-se de uma relação de oferta e demanda — porém a carga humana de demanda não esta em consonância com a capacidade de suporte do sistema! Do lado da demanda, nos países e regiões em que há um nível de industrialização maior, o estilo de vida e lógica produtiva daquela sociedade têm grande impacto devido ao alto volume de consumo de energia elétrica, alimentação com proteína animal e mobilidade urbana. Entretanto, temos visto uma redução alarmante do lado da oferta, ou seja, da biocapacidade do ecossistema de produzir recursos e depois absorver resíduos (SANYE; SALA, 2023).

A publicação de 2023 do “Consumption Footprint and Domestic footprint: Assessing the environmental impacts of EU consumption and production” nos apresenta algumas evidências sobre o cenário europeu. Dentro das 5 principais áreas de consumo [1] e seus respectivos impactos nas 16 categorias de avaliação da pegada ecológica [2] a média por cidadão em 2021, mostrou que dessas cinco, três áreas chamam maior atenção: o consumo de alimentos lidera como principal área, seguida pela habitação e mobilidade como sendo os maiores contribuidores no impacto ambiental (SANYE; SALA, 2023).

Figura 1 — Pegada de Consumo da UE-27 por área de consumo [2021]

Então seriam as atividades mais corriqueiras e presentes no nosso dia a dia que mais surtem efeitos na pegada?

De certa forma sim, principalmente por compartilharem características de serem produtos com pouca durabilidade e com maior intensidade de uso. Infelizmente, essa é a realidade, mas não se trata de culpabilidade de agentes individuais, pois o cálculo sobre a pegada de consumo é somente um dos indicadores. Vamos olhar com maior atenção para as 3 áreas destacadas como as principais na pegada de consumo na média da UE-27 de 2021:

Alimentação: No que diz respeito ao padrão de consumo de alimentos, o relatório nos chama atenção para alto nível de consumo de produtos a base de animal. A contribuição desse tipo de alimento é significativa, chegando a quase 50% no impacto ambiental, isso porque há uma menor eficiência nos sistemas de produção (SANYE; SALA, 2023). Os efeitos são transversais, causados pela atividade doméstica da região e, como o comércio internacional é componente fundamental na economia europeia, suas importações também são contabilizadas. A agricultura intensiva (maquinário e energia) e uso de agroquímicos impactam na Pegada de Terras Agrícolas, pois vale lembrar que os animais precisam fazer uso da terra, seja devido ao uso para pastagem — muitas vezes em áreas desmatadas -, seja para o cultivo de alimentação para o gado (EXPRESSO, 2021). De acordo com a WWF em sua publicação de 2022, entre 2005 e 2017, cerca de 3,5 milhões de hectares de floresta foram destruídos para prover meios de produção de produtos agrícolas para o mercado da UE. Os hectares destruídos equivalem a uma área maior do que os Países Baixos.

Portanto, a ciência tem comprovado a necessidade de redução do consumo e produção de alimentos de base animal (carne, laticínios e ovos). Entretanto, algumas das regras de produção e comercialização da UE-27 inseridas na Política Agrícola Comum (Common Agricultural Policy, sigla CAP em inglês), acabam favorecendo a pecuária industrial de grande escala e dificulta resultados mais ousados em benefício da natureza (PE’ER et al, 2020). A recente iniciativa “Farm to Fork”, foi apresentada como estratégia de reduzir o consumo de carne, promover a dieta baseada em vegetais, melhorar a rotulagem dos alimentos e investir na pesquisa de alternativas sustentáveis à carne é uma oportunidade para estabelecer novas direções no sistema alimentar europeu (EUROPEAN COMMISSION, 2023).

Mobilidade: Em relação a mobilidade na Europa, ainda que haja projetos de descarbonização dos transportes como o amplo conjunto de proposta do pacote Objetivo 55 que prevê um conjunto de iniciativas políticas para reduzir as emissões de CO2 em pelo menos 55% até 2030, o progresso ainda tem sido incipiente. Nos últimos anos, as emissões provenientes dos meios de transportes aumentaram: os automóveis de passageiros, seguidos por veículos aéreos são os meios mais utilizados e com impacto significativo no ambiente, principalmente, porque a grande maioria ainda depende de combustíveis fósseis.

Vemos que há iniciativas que buscam alinhar os compromissos do Acordo de Paris e Pacto Ecológico Europeu, por exemplo, com a realidade dos países membros. Com base nessas iniciativas, foi definido pela Comissão a implementação progressiva de regras de tarifação rodoviária de veículos pesados novos, de modo que todos passem a ter emissões certificadas de CO2 e estejam sujeitos a metas de redução de emissões de gases do efeito estufa. No caso da aviação, em dezembro de 2020, a Comissão Europeia emitiu seu comunicado de “Sustentabilidade e Estratégia de Mobilidade Inteligente” e a proposta ReFuelEU Aviação [3], como parte do pacote Objetivo 55, que demonstram a necessidade transição para combustíveis sustentáveis como algo desafiador, mas extramente necessário (CONSELHO EUROPEU, 2023).

Dessa forma, para o curto e médio prazo, a adesão aos combustíveis sustentáveis seria fator chave para uma redução significativa das emissões e descarbonização do setor, ainda que seu potencial seja pouco explorado atualmente. Isso se deve ao baixo nível de oferta e um preço pouco competitivo comparado aos negociados por combustíveis fósseis. Além de que segundo os analistas em transição, há certa instabilidade nas normativas da UE sobre biocombustíveis o que acaba sendo visto de maneira negativa por parte de investidores que tomariam decisões financeiras baseando-se em informações que podem alterar no meio do percurso (CONSELHO EUROPEU, 2023)

Habitação: Dentre os três maiores impulsionadores do consumo, a habitação foi o que demonstrou alguma redução dentre os anos de 2010 a 2021, em parte graças as renovações envolvendo parques imobiliários a partir de 2010. Sanye e Sala (2023), destacam que renovar ou construir habitações para que tenham sistemas de energia e de uso da água mais eficientes faz parte das políticas da UE no setor habitacional. O relatório também destaca a correlação entre a pegada de consumo na área de habitação e o clima da região, no qual países com clima moderado e frio tem grande impacto comparado com os de clima quente, pois consomem mais energia para o aquecer as casas, fornecer água quente e iluminação.

Assim como para mobilidade, preocupações e propostas para a área da habitação também estão inseridas nas propostas do Objetivo 55. Elas são colocadas como prioridade e de acordo com os objetivos, exigem que todos os edifícios estejam com emissões zero até 2030 e prevê que a partir de 2028, os novos edifícios que forem de propriedade do setor público também estejam com emissões zero. Também está previsto pela iniciativa, a implementação de instalações de sistemas de uso de energia solar em todos os novos edifícios públicos e não residenciais com mais de 250 metros quadrados até o fim de 2026 (SHAIN, 2022).

Considerações finais

Na União Europeia — e na verdade, no mundo todo — enfrentamos desafios crescentes em termos de sustentabilidade e das consequências deixada pela pegada e atividade humana no meio ambiente. Vemos que a estrutura produtiva e de consumo que faz uso dos recursos naturais estão indo na via contrária das regras e respeito aos limites planetários, desde o aumento nas emissões de gases do efeito estufa até a perda da biodiversidade. Limites estes que estão sendo ultrapassados em ritmo alarmante. De acordo com os relatórios analisados, o consumo de alimentos, seguido pela mobilidade e a habitação são as três áreas impulsionadoras da pegada ecológica na UE-27 e que exigem mudanças nos hábitos dos cidadãos, mas principalmente da adoção de uma lógica circular que centr em “produção, consumo, reutilização, reciclagem” e de políticas eficazes.

As iniciativas de descarbonização e de desenvolvimento sustentável demonstram que há um avanço na agenda climática-ambiental no bloco. Isso fica mais evidente quando a agenda é reforçada como pauta de destaque nos objetivos e compromissos discutidos no contexto europeu, começando pela Agenda 2030, os ODS, o Novo Plano de ação de Economia Circular, a Estratégia de Biodiversidade até o Plano de Ação de Poluição Zero. Entretanto, a complexidade e as diferentes necessidades dos 27 Estados-Membros, combinada com as questões de segurança energética e as divergências financeiras e políticas para o não-uso de combustíveis fósseis, torna difícil a tomada de decisão e implementação alinhada entre todos. Assim como algumas resistências em hábitos culturais, sociais e empresariais.

A publicação anual de relatórios como os aqui abordados são essenciais para o monitoramento, avaliação da evolução e de mudanças relacionadas aos caminhos que os países têm tomado em direção a transição efetiva para uma economia verde. Além de oferecer uma visão cientificamente embasada e estruturada, permitindo uma compreensão mais completa da realidade atual, fornecendo ideias e influenciando decisões a serem tomadas em médio e longo prazo.

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NOTAS:

[1] As 5 áreas de consumo abrangidas e análisadas no relatório “Consumption Footprint and Domestic Footprint”, 2023 são: Alimentação, Habitação, Mobilidade, Bens domésticos e Eletrodomésticos.

[2] As 16 categorias de avaliação do impacto da pegada ecológica são: Mudanças Climáticas; Destruição da Camada de Ozônio; Radiação Ionizante; Poluição por Particulas; Formação Fotoquímica de Ozônio; Eutrofização Terrestre; Acidificação; Ecotoxicidade da água fresca; Eutrofização Marinha; Toxicidade humana — não cancerígena; Uso da água; Uso de recursos minerais e metálicos; Toxicidade humana — cancerígena; Uso da terra; Uso de recursos fósseis.

[3] A proposta ReFuelEU Aviação, parte do pacote Objetivo 55, visa reduzir a pegada ambiental da aviação e contribuir para a consecução das metas climáticas da UE através de uma maior adesão aos combustíveis sustentáveis para a aviação, assegurando simultaneamente condições de concorrência equitativas para um setor dos transportes aéreos sustentável. Ao abrigo das novas regras, os fornecedores de combustível para aeronaves terão de aumentar até 70 % a percentagem de combustíveis sustentáveis até 2050" (Conselho Europeu, 2023)

REFERÊNCIAS

ANP. Se o resto do Mundo consumisse como os Europeus, os recursos da terra esgotavam-se a 10 de maio. Associação Natureza Portugal, Lisboa, 09 de maio de 2019. Disponível em: <https://www.natureza-portugal.org/?347014/Se-o-resto-do-Mundo-consumisse-como-os-Europeus-os-recursos-da-terra-esgotavam-se-a-10-de-maio>. Acesso em: 10 de mai. de 2023

CONSELHO EUROPEU. Mobilidade limpa e sustentável para uma UE com impacto neutro no clima. Conselho Europeu, Lisboa, 22 de dez. de 2023. Disponível em: <https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/clean-and-sustainable-mobility/>. Acesso em: 10 nov. de 2023.

EUROPEAN COMMISSION. Farm to Fork strategy. European Comission, Brussels, 20 de mai. de 2020. Disponível em <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52020DC0381>. Acesso em: 14 de dez. De 2023.

EXPRESSO. Produção de carne é responsável por 60% de todos os gases da indústria alimentar que geram aquecimento global. Expresso, Lisboa, 13 de setem. De 2021. Disponível em: < https://expresso.pt/sociedade/2021-09-13-Producao-de-carne-e-responsavel-por-60-de-todos-os-gases-da-industria-alimentar-que-geram-aquecimento-global-1c1a03bc>. Acesso em: 10 de nov. De 2023.

SHAIN, Emily. EU proposes rules requiring all new building to be zero emission by 2030. ESG Today, 25 de outubro de 2022. Disponível em <https://www.esgtoday.com/eu-proposes-rules-requiring-all-new-buildings-to-be-zero-emission-by-2030/>. Acesso em: 20 de dez. De 2023.

SCHMIDT, Peter. Parecer do Comité Económico e Social Europeu — Rumo a uma estratégia da UE para o consumo sustentável. Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 18 de setem. 2020. Disponível em <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020IE1596&from=EN>. Acesso em 10 de nov. De 2023.

PE’ER, G, et al. British Ecological Society, 08 de mar. De 2020. Action needed for the EU Common Agricultural Policy to address sustainability challenges. Disponível em < https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/pan3.10080?utm_campaign=451cbc8e25-EMAIL_CAMPAIGN_2020_03_09_05_57&utm_medium=email&utm_source=POLITICO.EU&utm_term=0_10959edeb5-451cbc8e25-189810753>. Acesso em: 26 de dez. De 2023.

SALA Serenella; SANYE MENGUAL Esther. Consumption Footprint: assessing the environmental impacts of EU consumption. European Commission, 2022. JRC Number JRC126257. Disponível em <https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC126257

WWF. Relatório Planeta Vivo 2022 — Construindo uma sociedade positiva para a natureza. Gland, 2022. WWF International. ISBN 978–2–88085–316–7. Disponível em <https://wwflpr.awsassets.panda.org/downloads/relatorio_planeta_vivo_2022_1_1.pdf>. Acesso em: 15 de dez. De 2023.

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"Dois pontos, Interrogação": assim eu começo. Mergulho no complexo mundo das relações internacionais, explorando as perguntas e os caminhos que elas nos levam.