Dadaísmo, Marcel Duchamp e o conceito de ready-made

Isabela Jaha
8 min readJul 3, 2020

Os artistas europeus do início do século XX passaram por sérias questões
político-sociais decorrentes de graves crises econômicas e tensões políticas provocadas por acontecimentos antes e durante a Primeira Guerra Mundial. O dadaísmo foi uma vanguarda que nasceu do refúgio de diversos artistas a um território considerado neutro durante a Guerra, a Suíça. O Cabaret Voltaire, fundado por Hugo Ball e Emmy Hennings em 1916, exerceu definitivamente o papel de berço e ponto central dos artistas dadaístas, que culminou em obras com uma proposta nonsense e crítica em relação ao positivismo, muito mais fruto do acaso que fruto de técnicas acadêmicas em arte, pois afinal, os dadaístas não pretendiam “criar” obras de arte, mas construir novas propostas estéticas a partir da arte. Os dadaístas encontraram na arte uma linguagem capaz de transmitir todas as ideias difundidas pelo grupo.

Marcel Duchamp foi um artista pertencente a este movimento, e talvez obtenha o título de artista mais estudado dentre todos os dadaístas. Autor de obras irreverentes e discutidas até os dias de hoje, como “A fonte” e “À frente do braço quebrado”, Duchamp desenvolveu uma nova proposta de se produzir obras, não necessariamente obras de arte, que foi intitulada como ready-made. Os ready-mades, à grosso modo, são objetos produzidos em larga escala industrial, escolhidos aleatoriamente por um artista, e por fim deslocados à espaços não-convencionais destes objetos, como museus e galerias, provocando um deslocamento de objetos irrelevantes a lugares de destaque. Por definição, ready-made poderia ser até simples de compreender, mas o que gera sua ampla discussão é exatamente a “falta da mão de obra”
do artista, uma vez que ele não produziu aquilo que expôs. Essa carência de técnica e “ofício” do artista é justamente uma ideia proposta pelos dadaístas em suas produções; “é possível criar uma obra, sem ser ‘de arte’”? perguntou Duchamp. Com a criação do ready-made, o artista não é mais aquele que domina a técnica, plasticidade e manipulação dos diferentes materiais, mas é aquele que tem o poder de escolher um objeto fruto da aleatoriedade e do acaso. A obra que se encontra em um ready-made está na ideia, não no objeto que se vê.

Duchamp não iniciou esta proposta de ready-made com pretensões estritamente conceituais, até porque o artista começou a produzir seus ready-mades a partir de uma seleção aleatória de objetos industriais. Com o passar dos anos, o artista prosseguiu produzindo ready-mades, e acabaram se “amadurecendo” em termos conceituais, e os objetos constitutivos passaram a receber conceitos mais elaborados. O primeiro ready-made — que temos conhecimento — produzido por Duchamp foi em 1913, intitulado “Roda de bicicleta”. Antes de unir um banco a uma roda de bicicleta, Duchamp realizou algumas pinturas, notadamente inspiradas em vanguardas já existentes, no caso o impressionismo e o cubismo. Foi após a produção de sua “Roda de bicicleta” que o artista obteve uma tomada de consciência, e decidiu não ser mais um mero pintor entre milhões, mas um artista entre milhares, já que Duchamp entendia que a pintura já não teria mais o poder de revolucionar o
cenário da arte.

Por conta de uma “simples” junção de materiais frutos da indústria, Duchamp se tornou um dos artistas mais comentados, tanto em sua contemporaneidade quanto posteriormente, pela sua transgressão corajosa. Duchamp decidiu abandonar a pintura e criou seus ready-mades, cada um sendo considerado por ele como “enigma”. Os títulos das obras, por mais aleatórios que fossem em um primeiro momento, acabaram se tornando a peça-chave do “enigma” da obra, pois Duchamp afirmava que o título de uma obra fazia parte dela mesma, e não seria apenas um título ilustrativo e meramente catalográfico, como ocorria em diversas pinturas de mesmo título daquilo que se estava retratando. Tendo ideias contrárias à pintura, Duchamp acabou desenvolvendo uma nova ideia do que seria pintura, muito diferente daquela tão facilmente associada como um conjunto de pinceladas sobre uma tela.
A pintura deveria se “desmembrar” de uma proposta unicamente plástica, e começar a ser associada como seu próprio discurso. Pela sua proposta não ter razões plásticas, Duchamp e seus ready-mades passaram a se intitular como “antiartista” e “antiarte”, visto que as obras de arte contemporâneas a ele possuíam caráter visual e plástico consideravelmente diferenciados. Quando Duchamp diz que deseja que a pintura seja recolocada a serviço da mente, ele pretende retirar o belo da obra como prioridade, e passar adiante de um universo artístico que só depende de seu caráter visual.

Em 1921, Duchamp recebeu uma encomenda de Dorothea Dreier, que desejava uma obra feita e assinada por ele, e pagaria U$300,00 pelo trabalho. Dorothea não pediu uma obra específica, desde que fosse feita por Duchamp. Então, o artista decidiu cobrir uma gaiola de pássaro com tinta branca, recheá-la de cubinhos de mármore que se assemelhassem a cubos
de açúcar, inserir um termômetro, um osso de choco e intitular seu trabalho de “Why not sneeze, Rose Sélavy?”, além de sua assinatura, é claro. Após receber a gaiola, Dreier não ficou nada satisfeita com o que recebeu, e disse que Duchamp deveria vender o trabalho. Ele conseguiu um comprador e deu o dinheiro que arrecadou à Dreier, U$300,00. Quando Duchamp recebeu a proposta, mais uma vez ele decidiu realizar uma pintura, não no sentido
usual da palavra. 1921 foi o ano de execução da obra, o que corresponde a quase 10 anos desde que Duchamp produziu seu primeiro ready-made, “Roda de bicicleta”. Tanto o ready-made de 1921 quanto o de 1913 são ready-mades retificados, um tipo de ready-made que apresenta mais de um objeto e acaba obtendo uma certa composição. Visualmente, as duas obras pouco tem relação, mas a principal diferença está no fato que o ready-made de 1921 havia “amadurecido” em termos de ideias, e cada objeto acabou adquirindo um sentido dado pelo próprio artista.

Obra feita por Duchamp. São 152 cubos de mármore, osso de choco e um termômetro inseridos em uma gaiola retangular branca.
Marcel Duchamp, Why not sneeze, Rose Sélavy?, 1921 (réplica 1964). Disponível em: http://pt.wahooart.com/@@/7YLJ6Y-Marcel-Duchamp-Objet-Dard

Analisando a obra, ela parece ser apenas um amontoado de objetos aleatórios e dispostos ao acaso. Certamente, Duchamp poderia ter realmente disposto os objetos de uma maneira casual, mas o conjunto dos objetos acabou recebendo uma ideia muito bem definida pelo artista. Os 152 cubos de açúcar, que na verdade são de mármore, constituem quase todo o espaço da gaiola, e o termômetro alocado no meio dos cubos tem a função de mostrar ao
público que aqueles cubos não são de açúcar, uma vez que os torrões de açúcar são muito mais quentes que o mármore, um material naturalmente frio. Estes cubos feitos em mármore fizeram com que a obra ficasse mais pesada que o esperado, atribuindo um novo sentido à ambiguidade que já existia daquele material (açúcar ou mármore), pois o torrão de açúcar é leve, e o mármore é pesado. O osso de choco, que normalmente se localiza na cabeça desta espécie de crustáceo para manter o equilíbrio, é utilizado como alimento para pássaros pelas suas propriedades nutricionais. Duchamp não dispôs este osso ao acaso, ele está na gaiola justamente para identificar que aquele objeto é uma gaiola, espaço usado para abrigar animais. Na parte de baixo da gaiola, há uma mensagem escrita pelo artista, que nada mais é que o próprio título da obra e a data de sua produção: “WHY NOT SNEEZE, ROSE SÉLAVY? 1921”. A obra foi replicada pela primeira vez em 1963, e recebeu outras sete réplicas que foram aprovadas e monitoradas pelo artista, com pequenas alterações.

Na parte de baixo da obra de Duchamp, há um adesivo amarelo com os dizeres (em inglês): Por que não espirrar, Rose Sélavy?
Marcel Duchamp, Why not sneeze, Rose Sélavy?, 1921 (réplica 1964). © Succession Marcel Duchamp/ADAGP, Paris and DACS, London 2020. Disponível em: https://www.tate-images.com/preview.asp?image=T07508

Em 1920, Duchamp criou um pseudônimo feminino — para não ser reconhecido, ele criou pseudônimos com nomes e sobrenomes variados, mas percebeu que um pseudônimo de nome feminino seria muito mais eficiente, transformando em persona — chamado “Rose Sélavy”, e posteriormente sendo chamado “Rrose Sélavy”. Foneticamente, Sélavy se assemelha à frase “c’est la vie”, traduzida à grosso modo como “é a vida”. O nome é uma referência a um trocadilho feito por Duchamp e seu amigo e artista Man Ray, “Eros, c’est la vie” (Sexo, é a vida). O trocadilho é uma brincadeira com a ideia que o sexo é primordial à existência humana. Quando perguntado do título “Por que não espirrar, Rose Sélavy?” num programa de televisão francês, Marcel Duchamp comentou sobre a natureza do espirro. Quando nos deparamos com este título, surge à nossa mente quase de maneira automática o por quê de não espirrar, afinal, basta espirrar. Mas o espirro não é voluntário, ele surge a partir de um comando do corpo. Então, por que não espirrar? simplesmente porque é impossível espirrar por querer! Unindo o pseudônimo/trocadilho ao espirro, o título é uma metáfora que o próprio Duchamp acabou associando como uma excitação erótica, sendo que o espirro seria uma referência não-direta ao orgasmo. O momento anterior ao espirro sempre será um momento de antecipação inconsciente, afinal, nunca se sabe quando vai espirrar. Segundo Duchamp, os cubos que sugerem frigidez e a gaiola que sugere confinamento se transformam em um ambiente propício ao espirro. “Why not sneeze, Rose Sélavy?” é um ready-made retificado com uma ideia que surge a partir da disposição dos próprios objetos inseridos na composição, diferente de ready-mades anteriores que dispunham muito mais da ideia do acaso.

O ready-made de 1921 confere o início de uma transformação no trabalho de Duchamp, visto que a obra é considerada como uma pintura pelo próprio artista. A pintura da obra não é física, plástica e tampouco material, mas é uma proposta de ideia; a ideia que gira em torno da obra é muito mais potente e relevante que o caráter visual proposto por ela. A escolha dos materiais não se deu por uma estética visual, mas pelos atributos que os próprios materiais possuem, como a escolha do mármore, que possui a mesma cor e formato do torrão de açúcar, mas que é frio e pesado. O conjunto de pensamentos erguido pela união dos objetos geriu uma atmosfera única ao trabalho, em que o acaso começou a ser pensado, desenvolvido. Isso não significa que o artista não pensava no aspecto visual do trabalho, mas a visualidade buscada por ele não aludia à beleza e ao equilíbrio da composição, a escolha dos materiais se dá por suas características enquanto própria matéria, não enquanto beleza e plenitude.

Quando Duchamp se une aos dadaístas, ele não acaba fazendo isso por meras razões anti-positivistas, Duchamp se tornou uma figura necessária ao movimento, uma vez que o artista acabou influenciando seus colegas de movimento a partir de sua ideia de pintura anti-literal através dos ready-mades. Não apenas no dadaísmo, mas o ready-made de Duchamp acabou gerando uma nova leva de artistas que se inspiraram na proposta de ideia como principal elemento constitutivo de uma obra. Movimentos como o surrealismo e pop-art são exemplos de novas artes que se inspiraram no trabalho artístico de Duchamp. Os artistas passam a entender que uma obra de arte deve deixar de possuir como prioridade o seu aspecto final, como beleza e equilíbrio, e que seu conceito por trás daquilo que se vê é o atributo principal. Marcel Duchamp foi um dos maiores contribuintes para esta revolução no modo de se fazer e interpretar arte, em que diversas ideias difundidas por ele, como a do público sendo tão importante quanto o artista na criação de obras de arte, do público posterior sendo muito mais relevante que o público contemporâneo ao surgimento da obra, da pintura necessitar passar por mudanças conceituais, etc., acompanharam outros artistas e teóricos ao longo da história da arte, transformando — ou pelo menos trazendo novas propostas — o modo de se fazer, ver e consumir arte.

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