Agora é que são Elas — Mulheres da Ocupação Carolina Maria de Jesus

Isabela Abalen
5 min readApr 26, 2018

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e seus desafios e conquistas como mulheres em ocupação

dezembro/2017

“Tudo que sei ou que sou:
Sou mana, sou muleca,
sou sem direito.
Afinal, meu direito foi parar
no bolso do governo!
Sou militante, sou semente
de Palmares.
E digo a você:
meus direitos vão se restabelecê.” —
Stéfani (23), para um sarau que ocorreu na ocupação.

Stéfani tem um sorriso bonito, encanta qualquer um. Quem vê seu rosto de mulher-muleca feliz e vaidosa — nas orelhas brincos grandes -, não desconfia das dificuldades que constroem sua história. “Se hoje alguém me perguntar, assim, qual a coisa mais difícil que eu já passei na vida, eu não sei dizer. Pra mim todas foram muito difíceis”. Filha de uma família humilde, começou a trabalhar cedo como vendedora ambulante, seja de bala, cerveja, algodão-doce ou balão. “Eu passei por muito preconceito, mas era aquilo ou sentir fome”.

No seu cantinho da ocupação Carolina Maria de Jesus, perto do seus poucos pertences e sobre o colchão que a abriga agora, toda noite, no segundo andar do imóvel nº 2300 da Av. Afonso Pena, Stéfani revelou que foi na ocupação que teve a oportunidade de se descobrir como mulher e, ao mesmo tempo, como mulher de ocupação. “Eu digo que não é fácil ser mulher aqui na Carolina. Eu acho que é a mesma coisa que ser mulher na sociedade, a gente às vezes ganha uma cantadinha alí dos nossos vizinhos, às vezes vem um ‘menina, sua roupa tá muito curta’, vem o machismo, que a gente lida no dia a dia(…)”. Certa de si, acredita e argumenta que a ocupação não funcionaria se não houvessem as mulheres. Segundo ela, por serem mais rígidas, disciplinadas e maternais, é que a ocupação, urbana e comunitária, dá certo. E Stéfani se considera “de luta”. Sabe que resiste e diz que não só por ela:

“Eu tô lutando por várias gerações, eu tô lutando pela minha mãe, que hoje é doente e não é sã, mas eu tô lutando por ela, pela minha avó, por todas!”

E há quem lute para Stéfani continuar sorridente. Cris (37), é da organização do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MBL) e ajuda como coordenadora de segurança na ocupação Carolina Maria de Jesus, desde o seu início em 06 de setembro deste ano. Mãe de três filhos, vendeu a casa em que vivia com o ex-marido por “questões de violência”, separando-se em seguida e se tornando moradora da ocupação Paulo Freire, no Bairro Barreiro, sempre presente na Carolina para ajudar. Com os filhos, morou por três meses em uma barraca de camping na Paulo Freire, passando depois para madeirite, até a alvenaria.

Ela contou que teve de enfrentar o machismo no início da sua atividade como segurança nas ocupações,

“eles olhavam e falavam: ‘não, cê não vai dar conta!’, ‘cê vai fazer errado!’, e eu falei ‘não, eu vou dar conta e vou mostrar pra vocês que eu vou dar conta.’”

E deu. Cris continua com a função e ainda ajuda em demais tarefas da organização do movimento. Uma delas é prezar pela não violência contra a mulher: “não pode acontecer, em hipótese alguma”. Se ocorrer, o homem é expulso, e se a mulher insistir, ela também é.

Mostrando os interiores da Ocupação Carolina Maria de Jesus, que passou por reformas desde o início do uso do espaço para melhor alocar as famílias, ela disse que é normal em movimentos de ocupação a mulher tomar a frente de tudo, controlando, organizando e definindo afazeres. Elas dividem as tarefas de limpeza, cozinha e segurança igualmente entre os homens e as mulheres, com horários iguais e sem qualquer discriminação. As mulheres, segundo ela, costumam ser mais prestativas e “na linha”, o que alguns homens demoram um pouco mais para aprender. “A gente tá provando pra eles que quem manda são as mulheres, e não os homens.”

Tanto Stéfani quanto Cris são mulheres, negras, pobres, trabalhadoras, líderes, resistentes. Tanto Stéfani, quanto Cris, quanto Carolina Maria de Jesus. Quanto Vera, Ana, Aparecida, Natália e os demais nomes e personalidades femininas que fortalecem a ocupação. No centro da cidade, entre prédios comerciais e de moradias da classe média alta à classe alta, uma ocupação urbana com nome de mulher é erguida por mulheres em luta diária por lar, condições básicas e voz.

A Ocupação se localiza no imóvel pertencente ao plano de benefícios de aposentados de empresas de telefonia e é administrado pela Fundação Sistel de Seguridade Social — entidade de previdência sem fins lucrativos -, mas há cinco anos estava inutilizado. As mulheres, com suas famílias e a necessidade de moradia em um cenário de alto preço dos aluguéis, cortes em direitos sociais e dificuldade em arranjar emprego somados ao peso de ser mulher em sociedade, transformaram um prédio vazio e cinza em um ambiente de luta, educação (com oficinas, biblioteca comunitária e creche) e autoafirmação. Agora é que são Elas.

“Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não têm ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.” — O Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus, 1960.

Ao final, todas já entendem, Carolina Maria de Jesus não é só o nome da nova casa conquistada por Elas, mas está Nelas.

As entrevistas com Stéfani e Cris foram documentadas, assim como mais outra conversa com Vera, cozinheira da ocupação. O resultado final se tornou um curta documentário intitulado Carolinas (2017) de direção de Chris Martins e Gisele Bossi. O filme foi exibido no Cine 104 durante o Festival Cine Memória 2017. Histórias que Elas marcam depois de continuamente serem marcadas por serem mulheres.

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Isabela Abalen

eu no telhado thought the future would be cooler numa batucada de bamba