Agnotologia e a produção da ignorância
Agnotologia, etimologicamente, é a junção de duas palavras gregas: agnosis, que significa “ignorância”, e logia, que significa “estudo”. O termo foi cunhado em 1995 por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, para definir o estudo da produção política e cultural da ignorância.
Com a ascensão da internet e o uso cada vez mais intenso das redes sociais como fontes — nem sempre seguras — de informação, a agnotologia é mais atual do que nunca.
Agnotologia na história
Em 1979, um memorando interno da empresa de tabaco Brown & Williamson, redigido dez anos antes, veio a público. O documento, chamado “Smoking and health proposal” (“Tabagismo e proposta de saúde”), reunia uma série de estratégias empregadas pela indústria do cigarro para enfrentar os movimentos antitabagistas que começavam a surgir naquele período.
Ao analisar o memorando, Proctor descobriu que a indústria do tabaco promovia propaganda enganosa e informações mentirosas sobre seu produto, além de gastar bilhões para manter dados sobre os danos causados pelo fumo em segredo. Foi então que ele teve um insight e resolveu iniciar uma pesquisa sobre o assunto.
A partir dessa pesquisa, Proctor criou o termo agnotologia, que é o estudo da propagação intencional da ignorância para fins políticos e comerciais. A palavra aparece pela primeira vez em seu livro The Cancer Wars: How Politics Shapes What We Know and Don’t Know About Cancer (“A guerra do câncer: como a política molda o que sabemos e o que não sabemos sobre o câncer”), de 1995. Em 2008, ele lançou um livro específico sobre o assunto, intitulado Agnotology: The Making and Unmaking of Ignorance (“Agnotologia: a construção e a desconstrução da ignorância”).
Em outras palavras, a agnotologia é o estudo das manobras políticas e culturais praticadas por pessoas e grupos poderosos, que se beneficiam da ignorância social por meio da manipulação de informações.
Desinformação ameaça bem-estar social
Segundo Proctor, a ignorância se espalha quando muitas pessoas não entendem um conceito ou quando grupos, como empresas ou políticos, se esforçam para criar confusão sobre temas específicos. No caso do tabaco, por exemplo, uma sociedade cientificamente ignorante poderá ser mais vulnerável às táticas usadas pela indústria tabagista.
Um dos objetivos da agnotologia é revelar como esses grupos poderosos utilizam a ignorância como ferramenta para esconder ou desviar a atenção de problemas sociais nos quais têm interesse, confundindo a opinião pública.
O estudo de Proctor mostra que a desinformação não é uma consequência das redes sociais e, definitivamente, não é um fenômeno que surgiu com elas.
Mas é inegável que as mídias digitais aceleraram o processo de disseminação de notícias falsas e boatos, elevando o alcance da desinformação a níveis jamais vistos.
Afinal, a internet é território fértil para a produção de conteúdos sem embasamento científico, já que não exige referências e fontes sólidas para que as pessoas publiquem materiais.
As redes sociais, por sua vez, não só publicam conteúdos falsos como também permitem seu compartilhamento. Assim, mentiras, boatos e fake news são replicados à exaustão, atingindo milhares de pessoas diariamente.
Na era das mídias digitais, até mesmo os grupos poderosos que historicamente têm controlado os meios de comunicação e a manutenção da “ignorância social” parecem ter perdido o domínio sobre os falsos conteúdos divulgados hoje.
No entanto, ainda são significativos os efeitos da propagação de fake news na escolha de representantes políticos. No Brasil, as eleições de 2018 foram marcadas pelas polêmicas em torno da campanha de Jair Bolsonaro, cuja equipe é investigada pela CPI das Fake News.
Nos Estados Unidos, muitos se perguntam como Donald Trump assumiu a posição de maior liderança do mundo, mesmo tendo mentido tanto para seu eleitorado. Daí a importância da agnotologia em nosso tempo.
Agnotologia na era da pós-verdade
Na era da pós-verdade, a agnotologia assume uma nova face. Os grupos que controlam a disseminação de notícias falsas não só promovem a ignorância, mas também colocam a verdade como um ponto de discussão — a famosa “questão de opinião”.
Para parcela do público, não são os fatos científicos que importam, mas a percepção que se tem deles. Nesse contexto, o que conta é aquilo em que o indivíduo acredita, ainda que suas crenças esbarrem no que diz a ciência. Afinal, ele pode escolher os conteúdos que consome — e certamente um deles vai corresponder à sua “verdade”.
Um estudo do Departamento de Psicologia da universidade britânica Royal Holloway descobriu que as pessoas têm certa tendência a tirar conclusões precipitadas e que a maneira como elas avaliam as informações pode ser facilmente espalhada. Ou seja, é possível que um indivíduo passe a desconsiderar evidências científicas por já ter visto alguém fazer isso.
Ryan MacKay, um dos professores que conduziram a pesquisa, menciona como exemplo o caso de Donald Trump, que relacionou as vacinas como causadoras de autismo diversas vezes. O ex-presidente demonstrou ser, em muitos momentos, alguém que não lê ou checa informações fundamentadas em evidências.
Segundo o The Washington Post, Trump também ignorou mais de uma dúzia de informes sobre o coronavírus em janeiro e fevereiro de 2020. Nessa situação, tanto as crenças sobre a vacina quanto seu comportamento controverso em relação à checagem de informações podem ter se espalhado socialmente, de acordo com as conclusões do estudo da Royal Holloway.
A agnotologia se concentra em entender o funcionamento desse novo sistema de produção de ignorância. Com essas pesquisas, cientistas buscam auxiliar na formulação de políticas públicas de combate à desinformação.
Em tempos de pandemia, a agnotologia se mostra ainda mais importante. O surgimento do novo coronavírus acelerou os processos de desinformação, e as redes sociais foram inundadas por notícias falsas sobre a doença e as vacinas contra Covid-19. Nesse contexto, a propagação de fake news é uma ameaça global à saúde pública, colocando em risco a vida de milhares de pessoas.
Por isso, é preciso criar instrumentos legais para punir os responsáveis e promover reflexões sobre o papel social da informação, bem como as consequências da criação e do compartilhamento de conteúdos falsos ou manipulados. É fundamental também repensar a relação da sociedade com a ciência, cuja produção de conhecimento ainda se mantém distante da população geral.
A desinformação é, inegavelmente, um desafio do nosso tempo. E a agnotologia pode ser a resposta.
Publicado no portal eCycle, 2020.