Jessica Jones e as discussões que precisamos ter

Isadora Sinay
3 min readNov 25, 2015

Uma grande parte das boas histórias funcionam porque falam a coisas verdadeiras para a maior parte das pessoas. Histórias que permanecem ao longo de séculos, contos de fadas, tragédias gregas, falam de forma ampliada e metafórica sobre experiências e sensações universais.

Histórias em quadrinhos funcionam da mesma forma e talvez seja por isso que permaneçam tanto tempo, como uma força tão presente na cultura pop e na nossa forma de contar histórias. Super-heróis são pessoas comuns ampliadas. O Homem-Aranha é qualquer adolescente estranho tendo que passar pela descoberta das responsabilidades, só que multiplicado por mil e capaz de soltar teias. X-Men é uma história sobre a incapacidade da sociedade de lidar com o diferente, o diferente que controla o clima com o poder da mente é apenas uma versão mais espetacular do diferente que é gay, por exemplo.

E Jessica Jones é uma metáfora ampliada para abuso. É verdade que a maior parte dos namorados abusivos não controla mentes e sai por aí mandando estranhos completos se matarem com tesouras de jardim, mas a história sobre perda de controle é real.

A perda de controle, a vergonha de si mesma quando passa, a culpa, tudo isso é real e facilmente identificável. De todas as resenhas de Jessica Jones que eu li até agora (e foram muitas) nenhuma deixou de mencionar que é uma série sobre abuso. E não só da Jessica pelo Kilgrave, mas da Trish pela mãe também. É uma série que constrói de forma real os traumas, os caminhos, as voltas por cima.

Não é a toa que a Jessica pode se envolver com o Luke. Também não é porque ele é uma espécie muito bela de ser humano. É porque ele responde as necessidades dela após o abuso. Luke a respeita como um alguém que faz escolhas, escolhas com as quais ele muitas vezes não concorda, mas que são dela. Na verdade, ele a respeita como alguém capaz, de saber o que quer, de decidir por si mesma, de lidar ou não com os próprios problemas. O exato oposto de como Kilgrave vê Jessica.

Quando ela some de repente, Luke não vai atrás dela, apenas respeita. Não quer dizer que ele não se doa, não tenha raiva, não quer dizer que ele vá perdoar tudo que Jessica fez a ele. É essa mistura de dar a Jessica a sua parcela de responsabilidade e ao mesmo tempo aceitar a escolha como dela e perdoar aquilo que ela não poderia evitar que permitem que ela "veja um futuro com ele". Luke não mantém como refém, nem dele, nem dela mesma.

Mas o que eu acho mais interessante não é nem tanto o realismo da coisa, é considerar que esse é um traço comum suficiente para poder ser usado como o material de um super-herói. Não se constrói heroínas com base em coisas que apenas uma parcela minúscula da população pode se identificar, se constrói heroínas para que falem com as massas. Isso, talvez, seja o maior passo de Jessica Jones: sutilmente dizer que o problema é enorme, que falar sobre abuso é falar com muita gente.

E todo mundo notou. Todos os textos falaram sobre isso, diversas pessoas se identificaram. O problema é tão grande e a personagem tão universal quanto eles acharam que era. Jessica Jones é uma série sobre abuso que colocou o abuso no centro da discussão. Comparativamente ao que normalmente leio sobre adaptações de HQs, eu li poucos textos de homens sobre a série, poucos textos sobre a fidelidade da adaptação ou a boa inserção dela no universo da Marvel, tudo isso importava menos.

Talvez o grande passo da série não seja só a representação realista, o cuidado e os personagens bem construídos. Mas ter conseguido tornar isso a coisa mais importante, a discussão a ser feita. Se nós considerarmos que quadrinhos, e o universo nerd como um todo, é um meio bastante machista, essa vitória é enorme. Não estamos falando sobre fãs histéricos que acham que o cabelo do personagem X está diferente. Não estamos, pela primeira vez, lendo uma enxurrada de textos sobre como ele, o fã verdadeiro, está se sentindo traído. Jessica Jones conseguiu de certa forma colocar o elefante tão no meio da sala que não podemos falar de mais nada.

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