Deus te abençoe e guarde e te livre de todo o mal

O Grupo de Dança da Rede Cuca Mondubim estreia o espetáculo Benção evocando a vida, a resistência e a força do Nordeste, em um alinhamento perfeito com o momento político nacional.

Iury Figueiredo
4 min readDec 21, 2019

2019 foi um ano que começou quebrado. Tava todo mundo quebrado. Exausto, cansado. Briga com pai, tio, tia, avô, qualquer um que tenha, em 2018, escolhido o infeliz destino do Palácio da Alvorada.

Nós e eles. Se desde 2013 o País vinha desenhando uma polarização cada vez mais intensa, em 2019 ela ganha outros contornos. Enquanto a direita (se não for muito eufemismo chamar de “direita” os racistas, misóginos, homofóbicos, transfóbicos e por aí vai a multidão de criminosos que saiu dos condomínios fechados para ir às ruas, shoppings, escolas, urnas e Palácios) se fortalece, os marginalizados se unem em “barricadas”, prontos para uma eminente guerra.

Ao mesmo tempo, esse marginais estão cansados, são anos brigando contra a morte, a fome, a bala, o desemprego (e o emprego), as lâmpadas, os carrinhos de mão, e seguem as demais armas do mundo moderno. Há o desejo de encontrar paz, de deitar em uma rede na varanda numa tarde de domingo, de tomar um banho de Sol na laje, de beber um litrão em paz na rua do Gato Preto.

As barricadas parecem manter a paz, pelo menos por alguns momentos. Saber que está entre os seus e que um defende o outro é o que garante o sono leve das noites de 2019. Não estou falando aqui de “ninguém solta a mão de ninguém”. Estou falando de “cola com quem cola contigo”.

Dito isto, Benção. Espetáculo que estreou no teatro (lotado) do Cuca Mondubim na sexta-feira, 20, protagonizado pelo Grupo de Dança da Rede Cuca Mondubim sob a direção e orientação (e quase adoção, levando em conta o brilho nos olhos e o carinho que este homem demonstra pelo seu trabalho e seus alunos) de Luiz Alexandre.

Benção vem depois de Vetin, espetáculo que o Grupo apresentou no final de 2018 e durante o ano de 2019 em diversos festivais. Quando me disseram que o tema do espetáculo que iria estrear este ano seria voltado para a cultura tradicional nordestina, uma luzinha de alerta ligou em mim. Vetin é um espetáculo contemporâneo, que trata das periferias da Cidade, tema que, a cada ano que passa, fica mais urgente. E Benção, como seria? Quando se fala em cultura tradicional nordestina há sempre o risco de se ler cultura TRADICIONAL nordestina, isto é, remeter ao passado, como se a tradição estivesse presa ao campo da memória apenas, e não viva, enraizada no contemporâneo, amarrando cada esquina do Nordeste, desde as ruas de terra dos pequenos vilarejos do sertão às avenidas largas de Salvador.

É o caminho dessa tradição viva que Benção segue. O espetáculo evoca imagens que vão desde as entidades e personagens do sertão às linhas retas e curvas das grandes metrópoles da Região. Benção traz a força, a fé e até a agressividade necessária para viver na terra seca do Canindé e, ao mesmo tempo, a receptividade, o afago, o carinho e as belezas, o copo de água, o café e o bolo mole das casinhas de Piranhas, à beira do São Francisco.

A iluminação de Aline Rodrigues cria atmosferas como a do sol quente das tardes na caatinga; as noites escuras e silenciosas clareadas apenas pelos lampiões e vagalumes; e as madrugadas de festas nas praças em frente às igrejas. O figurino de Marina Carleal remete à arte do Mestre Espedito Seleiro, em cores, formas e costuras do artesão do couro do interior cearense.

Tudo isso se soma às danças que viajam desde o Maranhão à Bahia, passando por movimentos que remetem às religiosidades, como o Cristianismo e a Umbanda, e até referências da atualidade, como o Brega Funk de Recife, sem esquecer, obviamente, do Forró. Na musicalidade, o espetáculo mistura os triângulos, sanfonas e a sonoridade do repente com beats contemporâneos, trazendo desde o Cordel do Fogo Encantado até músicas cantadas e tocadas ao vivo pelos dançarinos.

Benção é uma barricada pela arte. Assistir ao espetáculo é entender que meus movimentos, minhas danças, o Brega Funk que eu danço na Praça dos Leões e o Forró que meu avô dançava nas festas em Baturité são da mesma raiz, formam a mesa muralha que me colocam no Nordeste e me defendem dos punhos cerrados de Brasília, como a Chapada do Araripe defende o Cariri cearense. Benção evoca o panteão nordestino, evoca Lampião, evoca Chico da Matilde (Dragão do Mar), evoca Lunga (de Bacurau), evoca as defesas do Nordeste, uma mulher ou um homem de peixeira na mão e sorriso no rosto, que diz: “se for, vá na paz”. Evocam minha avó, que segurava a minha mão, olhava nos meus olhos e dizia: “Deus te abençoe e guarde e te livre de todo o mal”.

O espetáculo Benção está programado para ser apresentado durante os próximos meses de 2020 nos teatros da Rede Cuca com entrada gratuita.

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Iury Figueiredo

Jornalista freelancer formado pela Universidade Federal do Ceará