SOBRE A MODA E O TEMPO PRESENTE

Jackson Araujo
5 min readApr 22, 2018

Ponto Firme cria fissura entre o que foi e o que pode ser a moda do Brasil

Imagens do desfile do projeto Ponto Firme, que abre a SPFWN45 com peças criadas pelos sentenciados da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey em Guarulhos (SP), com orientação do designer Gustavo Silvestre | Fotos Marcelo Soubhia | FOTOSITE

“Com duas versões de Brasil, SPFW começa hoje”. O título do editor Sergio Amaral publicado em seu Instagram com foto de sua notícia no Estadão me traz a feliz sensação de que alguém está olhando como eu para a moda como uma narrativa dos tempos. E os tempos, caros amigos, não estão para escapismos em verde-amarelo, tampouco para bossas anacrônicas. O tempo presente exige profunda reflexão sobre a moda como micropolítica e seu poder de transformação.

A moda sugere amarras mais consistentes, como defende o designer Gustavo Silvestre, 40, em seu discurso e prática dentro do Projeto Ponto Firme, um exemplo brilhante dentro do que chamo de ECONOMIA AFETIVA.

Totalmente envolvido no ativismo slow fashion, Gustavo Silvestre trocou a costura e os tecidos pelas linhas e agulhas de crochê quando percebeu que não queria mais trabalhar no sistema tradicional da moda, sua rapidez de produção e consumo sem propósito. Adotou as técnicas do crochê como linguagem, mergulhou fundo no aprendizado e passou a tecer peças de moda e decoração num meticuloso trabalho manual, reaprendendo tudo sobre o tempo e o valor do fazer à mão coletivamente.

Gustavo Silvestre ensinando crochê para os alunos do Ponto Firme | Foto Danilo Sorrino

Em novembro de 2015, Gustavo criou de forma voluntária e independente o Projeto Ponto Firme, nascido a partir da necessidade de tornar produtivo o tempo de cumprimento das penas dos sentenciados da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey em Guarulhos, São Paulo. Ali, são ensinadas semanalmente as técnicas manuais da arte do crochê para um grupo de 20 alunos. “Todos homens!”, frisa Gustavo, que atua dentro da nova lógica de um movimento criativo global em que o “Do-It-Yourself” cede espaço para “Do-It-With-Others” e “Do-It-For-Others, como bem mostra o teaser do documentário em construção da diretora Laura Artigas.

O tempo dedicado às aulas contribui para a remissão de pena dos participantes além de ajudar no desenvolvimento da concentração mental por meio de uma terapia manual. “De acordo com a legislação em vigor no Brasil, quem cumpre regime fechado ou semiaberto pode ter remissão de um dia de pena a cada 12 horas de frequência em cursos, caracterizada por requalificação profissional. Esse é o verdadeiro objetivo das aulas de crochê”.

Nas aulas, Gustavo ensina técnicas de crochê em laboratórios de criação artística e experimental. “Tudo surgiu da minha vontade de transmitir conhecimento por meio de processos artísticos e manuais”. Na penitenciária, semanalmente Gustavo e seu alunos transformam Linhas Círculo nas mais variadas peças. Em dois anos, já formaram duas turmas, realizaram uma exposição e acabam de abrir a #SPFWN45, provocando uma fissura sem precedentes com seu desfile de peças produzidas dentro do sistema prisional.

O lado lúdico nos bichinhos e desconstruções | Fotos Marcelo Soubhia | FOTOSITE

Na passarela, momentos de pura liberdade. Modelos como pássaros flanando sobre concreto do Pavilhão das Culturas com franjas crochetadas à guisa de asas, em passo forte e expressão densa. Um manifesto sobre sonhos, obstáculos, mágoas, fraquezas e, sobretudo, força e vontade de dar certo com muito pouco: essa abundância que ao mesmo tempo é o melhor e o pior do país da ditadura da justiça.

Palavras que desenham o manifesto Ponto Firme | Fotos Marcelo Soubhia | FOTOSITE

Com o Projeto Ponto Firme, Gustavo não só ensina uma nova habilidade ou profissão para os detentos, mas também exercita o desenvolvimento do afeto perdido no meio da vulnerabilidade social. Ao trabalhar essencialmente com homens, o designer traz mais delicadeza e leveza às ásperas mãos masculinas, muitas vezes marcadas pela dor e violência. “Acredito que o crochê evoca memórias afetivas e as abordagens que recebo desses homens são muito carinhosas".

No cenário de crescente aumento da violência em penitenciárias do Brasil, Gustavo é parte da geração de ativistas da moda que acredita na educação e na arte como ferramentas poderosas de transformação pessoal e social, fatores que influenciam comprovadamente na redução da criminalidade. “Ponto Firme tenta incentivar o potencial humano e criativo de cada detento e, por meio das técnicas manuais, levantar questões de um ponto de vista mais humanista no sistema penitenciário do país. É importante ressaltar que nenhuma iniciativa funciona de maneira isolada. O contexto atual de violência só pode mudar com um conjunto de fatores. A arte é um deles”, defende.

“O único caminho para a liberdade é a educação por meio da arte. Tento contribuir para transformar o tempo ocioso dos detentos em criatividade”. (Gustavo Silvestre)

Suas aulas tem a duração de seis horas, acontecem duas vezes por semana e o projeto está a todo vapor, com a intenção de expandi-lo para mais sentenciados. “Recebo como retorno a esperança dos alunos em poder construir um novo futuro a partir das possibilidades que aprendem lá dentro. Tive contato com aprendizes que já concluíram suas penas. Fora do presídio, eles veem no crochê perspectivas para uma vida melhor, longe do crime”.

Anderson Figueredo é egresso do sistema prisional e um dos talentos transformados pelo projeto Ponto Firme | Foto Zé Takahashi | FOTOSITE

É o que atesta Anderson Figueredo, 34, egresso do sistema prisional e parceiro de Gustavo no Ponto Firme: “O trabalho com crochê foi um recomeço para mim”, declara ao portal FFW antes de pisar na passarela sob fortes aplausos, na sequência da fala da cantora-ativista Luedji Luna declamando versos de Tatiana Nascimento (leia e ouça abaixo).

São essas as imagens que desenham a nova história da moda — essa sim contemporânea e pertinente, digna de ser mostrada e exportada — que passa a ser contada pelo poder do coletivo.

Economia Afetiva é isso: um movimento que conecta pessoas que conectam pessoas e usam a moda como ferramenta de transformação social, cultural e ambiental.

“Mas se eu já fui trovão
Que nada desfez
Eu sei ser
Trovão
Que nada desfaz, nem
O capataz
Nem a solidão
Nem estupro corretivo contra
Sapatão
Os complexos de contenção
Hospício é a mesma coisa que presídio é a mesma coisa que
Escola é a mesma coisa que prisão que a mesma coisa que hospício
É a mesma coisa que
As políticas
Uterinas
De extermínio
Dum povo que não é
Reconhecido como civilização
(Mas eu sei ser trovão
E se eu sei ser trovão
Que nada desfez
Eu vou ser trovão
Que nada des
Faz)
Nem a solidão
Nem o capataz
Nem estupro corretivo contra
Sapatão
A loucura da
Solidão capataz queimarem
A herança
De minhas
Ancestrais
Arrastarem
Cláudia
Pelo camburão
Caveirão
111 Tiros contra
5 Corpos
111 Corpos
Mortos
Na prisão
Eu sei ser trovão
Que nada desfez
Eu já fui trovão e se eu já fui trovão eu sei ser trovão!
Eu sei ser trovão que nada
Nada
Desfaz
Epahey oyá!
Eu sei ser
Trovão
E nada
Me desfaz”.

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