O Espírito da Manhã e da Noite

Jadson A. Tinelli
4 min readFeb 24, 2024

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Parque Rainha Isabel, Vancouver. Foto: Nicholas Burges

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Desajustado. É assim que venho me sentindo nas últimas semanas. Acho que, assim como disse Carol, deve ser pela proximidade do meu aniversário, que acontece daqui a alguns dias. Observando meu estado aflito, ela comentou que geralmente esse mês que precede o fim de uma volta completa em torno do Sol costuma ser relativamente tenso para qualquer indivíduo. Não é uma regra, mas é o que geralmente acontece. O seu subconsciente retorna ao estado físico, mental e espiritual que antecede o parto, quando o bebê completa a volta de cento e oitenta graus, se inclinando para o lado inferior do útero, trazendo a cabeça para baixo e colocando os pés para cima, seguro e pronto, mesmo que tenso devido à proximidade do primeiro trauma de sua vida, quando deixa do útero, cego e confortável, para a luz do Sol, que queima os olhos e te deixa sem direção clara.

Você está tenso porque muita coisa pode mudar, ou simplesmente por mera ansiedade com o que vem em seguida. Especialmente se você já passou dos 30 anos, quando, tecnicamente, atinge o meio da estrada, o pico da pirâmide, e então deve se preparar para a descida biológica ladeira abaixo.

Eu geralmente lido muito bem com a época de aniversário. Não digo que a ansiedade não me atinge. Geralmente não me sinto confortável em celebrações formais, e ainda mais, não tenho intenção nenhuma de ser o centro das atenções, nunca, e não digo isso para passar uma imagem de humildade, não mesmo. Digo, simplesmente, porque sempre me vi atrás das cortinas, por trás dos ombros de quem senta na fila da frente, gosto de fazer parte do show, porém, não de emprestar meu rosto.

Sou o pássaro escuro que sobrevoa o palco. Levanta-se e abaixa-se em seguida. Palmas e o pássaro desaparece na floresta. Seu nome é Carnaval. Rei soberano. Um sujeito minúsculo, fantasma e mestre de cerimônias da ópera. Uma sombra que te espera do lado de fora dos portões. Um amante da saída à francesa. Quando me procuram; nunca estou lá. Quando me encontram; já não sou mais eu. Quando pensam que vão me alcançar; já estou um pouco mais para lá.

Jogue o jogo do pássaro Carnaval.

O mundo se divide em dois, como um casal de estranhos.

Seu nome: Carnaval.

Hunter observando os barcos, Parque de Stanley, Vancouver. Foto: Nicholas Burges

Por isso eu sempre gostei de escrever, eu tenho sim uma carga pesada de vaidade, e porque não, somos, como já disse em contos anteriores, macacos ansiosos e cheios de amor próprio. Eu me encanto com o fato de poder flexionar a linguagem de modo elaborado e complexo, e assim estabelecer uma conexão carregada de sentido, cenas, explosão de cores, sentimentos escondidos ou perdidos que só podem ser acessados quando certos pontos são acionados, elos de uma corrente que vai se construindo, letra por letra.

Porém, apesar de desejar essa ligação, de tê-la como meu maior e mais estimado objetivo, ela não se deve manifestar com a minha presença, mas apenas com as letras agrupadas nessa tela, tempos antes ao dessa conversa propriamente dita, acontecendo aqui e agora, nessa página de fundo claro (ou escuro). Somente palavras, sem voz, sem autor de carne e osso.

Converse comigo como se eu estivesse dentro da sua cabeça.

Falando com a sua voz.

Sentindo como você sente.

Você é o espírito da manhã e da noite, o clandestino, o vingador, invadindo o seu próprio ser e penetrando a sua alma. Lá dentro, nesse plato oblongo que se forma na zona mais profunda de seu ser, é onde você vai se infiltrar novamente, onde vai morar por um certo período de tempo, mais precisamente o tempo que essa conversa durar, então, quando ela enfim acabar, na página 2666, você será livre, pairando como o pássaro Carnaval dentro da grande sala chamada O Aleph, que é esse lugar de onde se vê tudo e todos, de onde se pode enxergar o passado, o presente e o futuro, tudo ao mesmo tempo.

Estarei nesse local reservado te esperando para um dia quem sabe completarmos a volta de cento e oitenta graus dentro do útero ou a completa órbita em volta do Sol mais uma vez.

Cabeça para baixo, os olhos e os pés para cima.

Seguro e pronto.

Nascido de novo.

Completamente nu e revestido de luz.

Fogo exaurido e renascimento, o que para alguns se chama Nirvana.

Último beijo.

História sem fim.

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Jadson A. Tinelli

kind of reporter. sort of human. living in East Van. writing some thangs.