A capa mostra uma arte de fundo preto com alguns círculos azuis e cinzas e um quebra-cabeça azul com quatro peças no centro.

Construindo uma cultura de acessibilidade, diversidade e inclusão em empresas

Conscientizando times com ações internas e simples a fim de desenvolver produtos e serviços mais acessíveis

8 min readAug 16, 2022

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O grande desafio de criar produtos e serviços acessíveis vai além de dificuldades técnicas e orçamentos: deve-se focar primeiro em criar uma mentalidade mais madura em relação a experiência de usuário nos colaboradores do produto/projeto. Trazer a consciência da nossa responsabilidade social no âmbito da diversidade e fazê-la um pilar do nosso trabalho é o primeiro e um dos mais importante passos em direção à verdadeira inclusão.

Ao analisar o histórico da acessibilidade nas empresas, observa-se que faz pouco tempo que o tema ganhou alguma relevância, sendo promovido em eventos e/ou priorizado na criação de produtos digitais. Ainda é uma parcela bem pequena do mercado e constitui-se em sua grande maioria de empresas que são cobradas por lei. Por conta disso, ainda existem muitas dúvidas sobre como de fato implementar uma cultura de acessibilidade e por onde começar.

Depois de muita insistência e dedicação, comecei a observar quais iniciativas deram certo na minha experiência e decidi relatar alguns pontos importantes para se ter em mente ao levantar a bandeira dentro da sua empresa. Vamos a eles.

Trazendo consciência e informação

Capacite os colaboradores com cursos e palestras

O primeiro passo é criar a consciência: traga treinamentos para os times, seja em formato de curso, talks, palestras, o que for. Existem diversos profissionais renomados no mercado que, convidados pelas empresas, promovem talks de introdução à acessibilidade, assim como cursos de introdução que podem ser adquiridos — e às vezes é possível conseguir um desconto coorporativo pela quantidade de alunos. Caso orçamento seja um problema, existem cursos gratuitos e canais no YouTube que fornecem conteúdos de qualidade também.

Atente-se ao conteúdo dos treinamentos e direcione-os para os times que fizerem sentido. Existem muitos cursos voltados para designers e desenvolvedores, mas também é possível encontrar cursos mais teóricos, ou chamar um palestrante e alinhar o conteúdo com ele.

Baseie-se em dados

Você sabia que atualmente, de acordo com uma pesquisa feita em 2022, apenas 0,89% da internet pode se considerar acessível? Isso é apenas um de muitos dados disponíveis na internet pra consulta. Reuna algumas informações relevantes para a sua empresa e mercado e apresente-os como argumentos.

Por muitas vezes, o argumento para não priorizar acessibilidade é "o número de PCDs na plataforma é baixo demais", mas fica sempre aquela pergunta: será que não é baixo por justamente não ser acessível? Então, para rebater esse argumento — que sabemos que não faz sentido, mas acontece muito— podemos trazer alguns dados sobre o poder de consumo das pessoas com deficiência no Brasil.

Mostre a realidade dos usuários

Nada melhor do que ver na prática: traga alguns testes gravados e vídeos ilustrando a experiência de pessoas com deficiência em plataformas não acessíveis. Caso seja possível simular essa experiência no próprio produto da empresa, melhor ainda.

Existem plugins, extensões e ferramentas que simulam algumas deficiências e podem ajudar nessa compreensão também. Deixarei alguns listados nas referências, ao final do texto.

Quer fazer um teste divertido? Coloque as pessoas para navegarem com leitor de telas no site ou produto com os olhos vendados, ou aplique uma extensão que adicione um filtro de daltonismo na tela. A experiência pode ser bem interessante para se colocar “na pele” do outro.

Criando uma conexão com o cenário do seu produto e empresa

Mostre a realidade "dentro de casa"

É muito importante também mostrar as dificuldades que usuários encontram no próprio produto da sua empresa. Para isso, você pode fazer testes com pessoas com deficiência utilizando esses produtos, documentar e mostrar para o time. Também existem consultorias especializadas em acessibilidade que fazem essas análises.

Alguns sites de diagnósticos para sites podem ajudar a levantar a bandeira de que há o que melhorar, mas não confie totalmente nos seus resultados, pois eles não possuem uma inteligência capaz de identificar experiência e usabilidade. Muitos irão oferecer uma nota baseada em como o HTML foi montado, por exemplo, identificando erros de sintaxe no código, mas não servirão para validar textos alternativos, por exemplo, ou se a navegação por teclado funciona. Por isso, sempre considere conversar com os usuários para "bater o martelo".

Colete reclamações nas redes sociais

É onde as pessoas costumam expor frustrações sobre produtos e serviços constantemente e é bem provável que já existam esses feedbacks caso o seu produto esteja há um tempo no mercado. Pesquise por “acessibilidade” + nome da empresa/produto. Você poderá encontrar bastante no Twitter e no ReclameAqui. Essa exposição ajuda a trazer a urgência de corrigir os erros e evitar que o problema escale. O time de atendimento ao cliente pode ajudar também coletando um histórico de reclamações dos usuários.

Empoderando o time

O conhecimento sobre o tema deve ser global

Considere o cenário de uma empresa que vende cursos online. A plataforma dos cursos, claro, precisa ser acessível: navegável por teclado, leitor de telas, ter interpretação em libras dos vídeos etc. Mas a experiência do aluno não vai se resumir apenas à plataforma: ele vai ter dúvidas, entrar em um chat de atendimento, falar com alguém no telefone, interagir com emails, materiais em PDF e por aí vai. Até aqui já estamos considerando grande parte da empresa envolvida com esse aluno. Desse modo, um produto ou serviço demanda que todos os seus profissionais saibam como lidar com os diversos cenários dos consumidores. Como um atendente se comunica com aquele aluno surdo que está com uma dúvida? Tudo isso deve-se ter em mente.

Todos devem ser “responsáveis” pela acessibilidade. Criar um produto acessível requer uma série de boas práticas por meio de várias disciplinas. Um designer deve entender de Acessibilidade, mas não será um especialista de código. Por isso, é ideal que em cada área de desenvolvimento exista alguém que sabe os princípios e boas práticas de acessibilidade da sua disciplina.

O problema de delegar essa função a uma pessoa só do time acaba fazendo com que não exista um compromisso de conhecer boas práticas. Uma vez que se torna consciente, podemos implementar no dia a dia esse novo olhar, tornando-se algo natural e intuitivo. O especialista ajuda na resolução de problemas, mas todos do time deveriam ter uma noção disso no que se aplica ao seu próprio trabalho.

Utilize boas práticas de acessibilidade no dia a dia

Uma vez que o time já tem um conhecimento básico sobre o tema, agora é hora de transformar em hábito. Traga com recorrência assuntos, artigos, indicações de conteúdos que ajudem a aprofundar os estudos. O tema deve estar sempre fresco, mas sem se tornar algo chato.

Desconstrua a ideia de que acessibilidade é uma feature: ela deve ser um pilar do projeto desde o primeiro dia, da mesma forma que deve-se também testá-la desde o começo. Implemente etapas de validação de acessibilidade nos reviews de design e rituais de critique e, ao trazer os pontos de melhoria, enriqueça-os com argumentos e soluções, para que as pessoas aprendam. Dessa forma, o time cometerá cada vez menos erros básicos e se acostumará a projetar sempre da forma mais adequada.

E, claro, busque sempre ampliar os horizontes e disseminar o que deu certo com outros times e equipes.

Encontre aliados

É provável que existam outras pessoas que também são apaixonadas e entusiastas do assunto. Junte-se a eles para somar forças e pensarem juntos em ações internas para criar essa cultura organizando iniciativas e mapeando os principais problemas a serem resolvidos.

Fique de olho

Existe uma lei que garante acessibilidade em produtos digitais

Apesar de não ser tão específica em seus requisitos como é a WCAG, a LBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) busca garantir e promover os direitos e liberdades das pessoas com deficiência. Isso significa que, caso um usuário processe a empresa pela falta de acessibilidade, isso pode resultar em dois cenários: a) a empresa deverá arcar com despesas jurídicas para esse usuário ou b) a empresa deverá se comprometer com implementar a acessibilidade necessária e prover aquela pessoa de tudo que ela necessita para utilizar o produto ou o serviço. De qualquer forma, é uma repercussão negativa para a marca e uma tremenda dor de cabeça, principalmente para os times de produto que terão que se virar para ajustar tudo a tempo.

E ainda que a lei não descreva em detalhes o que deve ser feito, minha sugestão é seguir os níveis de conformidade da WCAG e garantir que todo o produto esteja de acordo, pelo menos, com o nível AA (isso inclui todos os requisitos do A + AA), e que sejam feitos estudos e implementações para que futuramente atinja-se o nível AAA.

Não confie em plugins maravilhosos

"Uma linha de código e seu produto estará acessível" — essa é a maior mentira que podemos ter sobre acessibilidade em produtos digitais. É definitivamente impossível garantir acessibilidade com apenas plugins que não possuem inteligência para, por exemplo, criar boas descrições de imagens ou dar boas instruções de erro. Acessibilidade precisa ser pensada e projetada considerando a realidade dos usuários alinhada aos objetivos do produto. Por outro lado, criar produtos do zero já acessíveis poupará tempo e dinheiro da empresa.

Se acessibilidade fosse tão fácil assim, teríamos muito mais do que menos de 1% da internet acessível, não acha?

Não só os produtos devem ser inclusivos, mas as empresas também

Além de construir um produto acessível e inclusivo, seja uma empresa inclusiva: é muito importante contratar PCDs. Existe uma lei de cotas que, caso não seja cumprida, pode gerar multas altíssimas para algumas empresas. Porém, contratar PCDs apenas com medo da multa é um ato capacitista e nada inclusivo, uma vez que essas pessoas são tão qualificadas quanto as outras. E, tão importante quanto, as pessoas com deficiência são protagonistas de qualquer discussão relacionada a acessibilidade. São elas que sentem diariamente os problemas causados pela barreira de falta de acessibilidade e terão mais propriedades para ajudar a sua empresa nessas questões. E essas pessoas devem ser contratadas para atuar em suas profissões, não em um cargo qualquer que foi feito só pra preencher a cota, viu?

E o mais importante de tudo: saber que nunca seremos, de fato, 100% acessíveis

É preciso ter uma certa humildade para chegar a essa conclusão, mas a verdade é que a pluralidade de cenários e pessoas é tão vasta que necessariamente sempre teremos alguém com problemas para utilizar nossos produtos. Portanto é importante, sim, irmos em busca do máximo possível de acessibilidade, mas sem grandes promessas que podem acabar em frustração.

Pessoas se sentem acolhidas quando sabem que empresas se preocupam com sua experiência, seja uma pessoa com deficiência ou não. Então posicione-se de forma inclusiva, traga o máximo de conhecimento e apoio ao time para desenvolver a mentalidade de acessibilidade e trabalhe para que seja um tema de constante estudo e investimento.

Devemos isso às pessoas. É para isso que estamos aqui.

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Design Lead, UX/UI, Web Accessibility, and Writer hobbyist