Vacinada e dolorida

Janaína Steiger
3 min readJan 26, 2021

Apesar de tudo, hoje eu acordei com dor no braço esquerdo.

Photo by Hakan Nural on Unsplash

Abri a janela e o movimento fez doer. Lembrei do 15 de março, quando decretada pandemia e sofri, egoísta, pela impossibilidade de comemorar o meu aniversário 5 dias depois. Arrumei a cama e doeu. A dor lembrou da dor de mais de 215 mil famílias brasileiras. Tomei banho e doeu. Os rituais diários, pós trabalho, vieram à tona - a ida imediata ao banheiro, o descarte das roupas para lavar. Vesti minha roupa e doeu. Veio a lembrança da primeira colega do posto - de tantas - a ser contaminada. Peguei o celular e o gesto lembrou da dor. Reeditando outras - de cada notícia referente ao desgoverno perverso e aos efeitos do desmonte e do aprofundamento descomunal da desigualdade socioeconômica do Brasil. Coloquei a mesa de café-da-manhã e a dor permaneceu. Nada demais. Um incômodo que não deixava esquecer.

Lembrava, ainda, das tantas pessoas que, apesar de tudo, trabalharam dia e noite pela fabricação da vida. A cada levantar do braço esquerdo eu lembrava da dor. E bem que poderia não doer mais, poderia ter sido o que, no momento, pensei: 10 meses em 10 segundos. Mas continuou a doer. Latejando. Lembrando de tanto, lembrando de tudo que, apesar de, possibilitou que doesse. Possibilitou que hoje eu sorrisse, em parte, por essa dor no braço esquerdo. Sorri pelo SUS, pela ciência e pela luta que ainda vivem, que ainda são e produzem vida.

Mas também doeu e segue doendo, embora passada a dor no meu braço esquerdo. Segue doendo ao saber que cidades menores e marginalizadas ainda não receberam o suficiente nem para seus trabalhadores de saúde. Segue doendo ao saber que colegas da mesma instituição e de outros setores tão ou mais expostos quanto seguem sem vacina.

Segue doendo ao pensar em todas as dificuldades e empecilhos desnecessários vivenciados até então e que fazem parte de um projeto genocida que escolhe e se (des)organiza direitinho pra fazer morrer quem (não) interessa. Sorri em parte e sorrio cada vez mais quando alguém compartilha que também foi vacinada (o).

Mas só vou conseguir sorrir sem dor, quando todo mundo tiver a chance de vivenciar esses 10 segundos que contém 10, 11, o quanto de meses tiverem que conter. Mas que contenham. Em salas de vacinação maiores ou menores, de grandes unidades de Saúde, fixas ou itinerantes; ou de ‘postinhos”, tão inhos quanto mal cabem na carinhosa forma de chamar; de muitos territórios, ou de um único; unidades fixas ou itinerantes, rurais, quilombolas ou ribeirinhas. Unidades do SUS. Ou do SUS. Com segurança, ciência e equidade. Com o peso de tudo. Apesar de tudo.

21.01.21 - vacinada
22.01.21 - vacinada e dolorida

Janaína Oliveira Steiger
- Psicóloga residente em Saúde da Família e Comunidade
Atuando em Unidade de Saúde da Atenção Primária — ou como carinhosamente chamado, “postinho”

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