Ninguém manda em Prince

Janaína Azevedo Lopes
12 min readFeb 13, 2017

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Dezessete álbuns de Prince estão disponíveis no Spotify desde o dia 11 de fevereiro, 10 meses após a morte do músico. Cerca de 24 horas depois, só a faixa Purple Rain já marcava mais de 25 milhões de plays no aplicativo. Toda uma nova geração está prestes a conhecer de perto a obra reluzente que encantou os fãs de música nos anos 80.

Mas a verdade é que isso provavelmente não teria acontecido se o artista ainda estivesse vivo.

Os embates entre Prince e a indústria das artes marcaram quase toda a carreira do produtivo músico que, hábil no discurso de que sua música era sua propriedade, não baixou a cabeça para os esquemas pré-concebidos de gravadoras, plataformas online e veículos de mídia.

Ainda em abril de 2016, quando o mundo da música ainda lamentava a morte do ídolo, o site Pitchfork organizou os principais fatos conhecidos da luta de Prince contra o sistema da música. A tradução é minha.

Eis todas as batalhas que Prince travou contra a internet a indústria da música

Enquanto o mundo chora a perda de Prince, a indústria também se despede de Prince, Inc.

Os movimentos de Prince Rogers Nelson dentro dos negócios da música eram sempre tão proféticos e misteriosos quanto sua arte e persona pública. Ele escrevia, cantava, produzia e tocava todos os instrumentos de suas músicas, e teve uma carreira marcada por uma insistência semelhante no domínio sobre como sua obra era vendida e distribuída. Nos anos 80, depois do sucesso multimídia de Purple Rain, convenceu a Warner Bros a ajudá-lo a lançar a gravadora Paisley Park Records no seu estado, Minnesota. Nos anos 90, aparecia em público com a palavra “slave”, inglês para “escravo”, escrita no rosto, mudava seu nome para um glifo impronunciável, e lançava um disco triplo via NPG, sua empreitada pós-Paisley Park. Como um jovem fã de música naquele tempo, eu lembro de ouvir sobre as lutas com a indústria do Artista Anteriormente Conhecido como Prince, tanto quanto ouvia seus lançamentos.

Aquela iconoclastia por si só lhe traria um legado significativo. Em entrevista ao New York Times, o produtor e sócio de Prince Jimmy Jam traçou um paralelo entre os experimentos de Prince com controle artístico completo e lançamentos atuais como The Life of Pablo, a obra inacabada de Kanye West.

Mais do que alguém com a mente voltada para os negócios, perspicaz o suficiente para querer a propriedade de sua música, porém, Prince, como David Bowie, também foi pioneiro quando o assunto era o emergente mundo online. Tinha CD-ROM. Tinha um serviço de assinatura online, o NPG Music Club. Seu sucessor foi chamado de Lotusflow3r, que, talvez não por coincidência, lembra o título da canção Lotus Flower, do Radiohead, que copiou a abordagem direta-para-os-fãs de Prince, com o “pague o que você quer” no lançamento do disco In Rainbows, de 2007. Prince “era sexo”, segundo o Guardian. Ele “era tecnologia”, nas palavras do Times. E sua discussão posterior com o reino online, além de tudo, era negócio.

A luta de Prince com quem fazia bootlegs e com os serviços de streaming foi além do normal, mas ele as defendeu usando a lógica pura do limite. E com frequência demonstrava estar ligado — como ao nomear uma canção após um meme popular ou usar a imitação que David Chapelle fez dele como uma obra de arte solo — mostrando que Prince estava bem atento ao meta-reino da internet que aparentemente rejeitava. Prince queria ser livre para criar sua música, mas não queria necessariamente que ela fosse de graça para consumo.

“Era uma voz independente”, me disse o CEO da Pandora, Tim Westergren, na sexta-feira, recordando uma discussão que teve certa vez com Prince. “Ele estava sempre de olho nos artistas, tentando ajudá-los a ganhar o justo pelo que rolava no meio digital. Era um músico dos músicos, tentando se entender com os demais”.

Aqui vai uma linha do tempo da valsa singular que Prince dançou com a indústria da música, com ênfase especial no âmbito digital. Em suas interações com a interatividade, e em tantos outros aspectos da obra de Prince, você achará algumas conclusões “preto no branco”, mas várias roxas também.

1977:

Pouco após completar 18 anos, Prince assina um acordo de seis dígitos com a Warner. O contrato estipula que Prince produzirá seus próprios álbuns, iniciando o jovem músico em uma carreira com um grau incomum de controle artístico. Ele se beneficia, também, de uma indústria no auge de sua era disco. Seu disco de estreia, For You, de 1978, atinge número 163 no no Top 200 da Billboard americana. Mas a gravadora, mesmo apressada demais pra ter paciência com seus talentos, o apoiou enquanto os discos Prince, de 1979, Dirty Mind, de 1980, e Controversy, de 1981, nunca atingiram o Top 20.

Julho de 1984:

Purple Rain estreia nos cinemas um mês depois que o disco de mesmo nome é lançado. O filme fatura mais de 68 milhões nas bilheterias dos Estados Unidos. O álbum lidera a parada da Billboard 200 e é um triunfo artístico, com influências do pop e rock ao R&B e disco. Enquanto isso, a letra de Darling Nikki obriga o uso dos adesivos de censura do Parental Advisory, provando que Prince havia virado uma estrela tão popular que podia enlouquecer pais. Purple Rain é o único de seus filmes que Prince não dirige, mas seu posto de virtuoso multimídia foi cimentado, independentemente disso. Por que apenas vender discos quando você pode vender ingressos de cinema também?

Abril de 1985:

Paisley Park Records estreia com o lançamento de Around the World in a Day, o sétimo disco de Prince. O selo é uma joint venture com a Warner, e irá lançar oito discos de Prince. Mas mais do que isso, é o início de artistas aprovados por Prince, como Sheila E. e Tevin Campbell. Os ícones Mavis Staples e George Clinton também lançaram música pelo selo.

1987:

O complexo de estúdios Paisley Park, com 65 mil metros quadrados, ao custo de 10 milhões de dólares, abre em Chanhassen, Minnesota. Com uma gravadora e um estúdio, Prince leva seu domínio comercial sobre sua arte para um novo nível.

Junho de 1989:

Warner lança a trilha sonora de Prince para o blockbuster Batman. Eis outro paradoxo: Batman chega no auge do controle criativo de Prince, mas seu primeiro álbum número 1 desde Around the World in a Day também tem um pouco da sinergia corporativa da Warner Bros, tangencialmente relacionado com o filme de Jack Nicholson e Michael Keaton, que é da mesma companhia. Mesmo um autor com controle de seus assuntos de negócios por vezes tem que dançar com o demônio da mídia consolidada.

Junho de 1993:

Prince muda seu nome para um glifo conhecido como “The Love Symbol”. “O primeiro passo rumo ao objetivo principal de me emancipar das correntes que me ligam à Warner é mudar meu nome de Prince para (símbolo)”, ele disse em um release. “Prince foi o nome que minha mãe me deu quando nasci. A Warner pegou o nome, o transformou em marca, e usou como a principal ferramenta da marketing para promover as músicas que compus”. Em uma ação fascinante, o escritório de Prince mandou para as redações um disquete com uma fonte que permitia que eles o chamassem pelo nome escolhido. Os jornalistas ainda tinham que recorrer com frequência a escrever “O artista anteriormente conhecido como Prince.” Mas o ponto é:

Ninguém manda em Prince.

1994:

Prince lança Prince Interactive, um CD-ROM. O principal do disco é um videogame muito comparado com o popular jogo de aventura Myst, anterior a Prince Interactive. O CD supostamente inclui músicas não lançadas e vídeos inéditos de nomes como Miles Davis e George Clinton falando sobre Prince. Prince Interactive deixa claro que, se há um novo meio para a mensagem de Prince, ele vai adotá-lo— e essa mensagem vai ser Princenizada. Também em 1994, a Warner finaliza seu acordo de distribuição com a Paisley Park Records. Prince também lança NPG Records, porém, diferente de Paisley Park, esse selo só lança seus próprios projetos. Enquanto isso, toda a disputa contratual pode estar começando a ofuscar a música: No mesmo ano, ele lança The Most Beautiful Girl in the World, seu primeiro single sob o novo nome; a música é o seu último top 10 nas 100 mais dos Estados Unidos.

1995:

A essa altura, a disputa de Prince com a Warner o leva a aparecer em público com a palavra “slave”, inglês para escravo, escrito no seu rosto. Ele aparece com o look no vídeo de Dolphin, em 1994, e em uma performance dessa música no The Late Show with David Letterman. Em outubro de 1994, os assessores de Prince emitem um comunicado acusando a Warner de não lançar The Gold Experience. Prince, eles explicam, “acha que seu muito comentado contrato de 100 milhões havia sido uma forma de o prender em uma ‘escravidão institucionalizada’ com a Warner.” Ele quer cumprir seu acordo e acabar com ele, afirmaram. No Brit Awards, em fevereiro, ao receber o prêmio de Artista Masculino Internacional, de Neneh Cherry, ele aparece com “slave” no rosto de novo. Tão memorável quanto, porém, é seu discurso:

“Prince, melhor?

The gold experience: Melhor ainda.

No show: Perfeitamente livre.

No disco: Escravo.”

Sua busca por controle absoluto se torna um pouco confusa para o público — e para seus funcionários.

Seu diretor de figurino teria dito: “Ele fala de si mesmo sendo escravo a Warner. Oi? Vou bater na sua porta. Nós não trabalhamos de graça.”

1996:

Prince lança Emancipation, álbum tripo. O título é uma referência clara ao fim do relacionamento de 18 anos entre Prince e Warner. O disco chega pela NPG e EMI, e anuncia um período em que, para além da NPG, Prince pula de um selo pra outro, lançando The Rainbow Children, em 2001, com a Best Buy´s Redline Entertainment; Musicology, com a Columbia, em 2006; 3121, com a Universal Music Group, em 2006 e Planet Earth, em 2007, com a Columbia de novo.

1998:

Prince lança Crystal Ball, um disco triplo de material “anteriormente pirateado”, mais The Truth, um quarto disco de músicas inéditas e acústicas. Saiu somente pela NPG, e foi distribuído primeiramente em pré-venda via telefone (1–800-NEW-FUNK) ou seu site, Love 4 One Another.

Quem comprava pela pré-venda também recebia um quinto disco, instrumental, da NPG Orchestra, chamado Kamasutra. Prince disponibiliza os agradecimentos e títulos das canções em seu site, ilustrando seu precursor abraço à internet, em sua generosidade bagunçada.

1999:

Prince lança seu novo disco, Rave UN2 the Joy Fantastic, via NPG e Arista.

Fevereiro de 2001:

Prince abre a NPG Music Club, um serviço de assinatura mensal que oferece conteúdo exclusivo como seu álbum de 2003, Xpectation. A ideia é um presságio da abordagem direto-pro-fã que artistas como Radiohead viriam a adotar, assim como dos discos exclusivos lançados nos serviços de streaming, como Tidal e Apple Music, atualmente.

Novembro de 2001:

Prince lança seu novo álbum The Rainbow Children, via NPG e Best Buy´s Redline Entertainment.

2004:

Prince distribui cópias de seu novo álbum, Musicology, com ingressos da turnê que transcorria. Isso colabora com que este seja o disco mais vendido de Prince, desde Diamonds and Pearls, em 1991, chegando ao terceiro lugar da Billboard 200. (Billboard e SoundScan, depois disso, mudaram seus métodos de cálculo de vendas futuras de um álbum para incluir venda de ingressos).

Julho de 2006:

NPG Music Club é fechado.

2007:

Muito antes de Jay Z dar seu disco Magna Carta Holy Grail, em 2013, via Samsung, Prince concede os direitos exclusivos de distribuição de Planet Earth ao The Daily Mail, de graça para cerca de três milhões de leitores do tablóide do Reino Unido. “É marketing direto”, diz, no anúncio do acordo. “E eu não preciso me envolver na especulação dos negócios da indústria do disco, que está passando por um período muito tumultuoso agora.” A gravadora de Prince na Inglaterra, Sony BMG, decide não lançar o disco lá de qualquer forma.

Fevereiro de 2007:

Prince faz um show inesquecível no intervalo do SuperBowl. Enquanto isso, a usuária do YouTube Stephanie Lenz posta um vídeo caseiro de seus filhos correndo pela casa ao som de Let´s Go Crazy. A Universal manda ao YouTube uma notificação de remoção para o vídeo de Stephanie.

Segue um processo, chamado Caso Dancing Baby, que avança pelos tribunais por anos.

Setembro de 2007:

Prince intensifica medidas para bloquear o uso não autorizado de sua música no YouTube e outros sites. Uma declaração de setembro de 2007, em seu nome, diz: “Prince acredita firmemente que os artistas, enquanto criadores e proprietários de sua obra, precisam reivindicar sua arte”. É por isso que temos que velar Prince sem acesso à maioria de seus discos no YouTube ou plataforma similar.

Janeiro de 2009:

Prince lança um site novo, Lotusflow3r. Fãs podem pagar 77 dólares por uma assinatura anual que incluía três discos novos, mais conteúdo exclusivo.

Abril de 2010:

Lotusfrow3r é desligado.

Julho de 2010:

Quando Prince lança um novo disco, 20Ten, de graça e exclusivamente para jornais e revistas europeias, ele diz ao The Daily Mirror: “A internet acabou completamente. Eu não vejo porque deveria dar minha música para o ITunes ou outro. Eles não me pagam um adiantamento e aí ficam bravos quando não conseguem. A internet é como a MTV. Numa hora a MTV era um sucesso e de repente, ficou ultrapassada. Eles te enchem a cabeça com números e isso pode não ser bom para você.” Seus comentários são recebidos com escárnio — onde mais? — na internet.

Agosto de 2013:

Prince começa a usar o Twitter. Ele compartilha a capa de seu novo single, Breakfast Can Wait.

A capa mostra Dave Chappelle fazendo sua imitação de Prince.

Janeiro de 2014:

Prince processa 22 usuários de internet por um total de 22 milhões de dólares por supostamente postarem bootlegs de seus shows.

Abril de 2014:

Prince anuncia um novo acordo com a Warner, a gravadora que o lançou aos 18 anos e com a qual ele brigou nos anos 90. Em um comunicado, ele diz, “um novo disco de estúdio está a caminho, e tanto a Warner quanto a Eye estão bastante satisfeitas com os resultados das negociações e esperam ter um relacionamento de trabalho produtivo.” Os dois lados tinham percorrido um longo caminho desde as suas acusações de escravidão.

Junho de 2014:

Prince revela que seu novo disco incluirá “This Could Be Us”, uma música inspirada por um popular meme de Twitter, que envolvia uma foto dele e Apollonia andando de moto em Purple Rain. Assim como na foto de Chappelle para “Breakfast Can Wait”, o reconhecimento ilustra que Prince é mais atento ao online do que aqueles que mal-interpretaram seu discurso “a internet acabou completamente” podiam imaginar.

Julho de 2014:

Prince é a atração principal do Essence Festival, em New Orleans, para promover YesWeCode, uma organização sem fins lucrativos para diminuir a disparidade racial na indústria tecnológica.

Setembro de 2014:

Prince lança dois discos, Art Official Age e 3rEyedGirl’s Plectrum Electrum, ao mesmo tempo. São disponibilizados para streaming no Spotify.

Novembro de 2014:

Prince deleta suas contas de Twitter e Facebook, e tira mais músicas suas do YouTube.

Janeiro de 2015:

Prince compartilha o vídeo de Marz, sua nova colaboração com a 3rdEyeGirl…no YouTube.

Primeiro de julho de 2015:

Prince remove sua discografia de todos os serviços de streaming, exceto do Tidal.

30 de julho de 2015:

Prince lança um novo single, Stare, no Spotify.

Maio de 2015:

Prince faz um show beneficente em Baltimore, chamado Rally 4 Peace. O áudio do show pode ser ouvido de graça no Tidal. Mais tarde, Prince também disponibiliza o áudio no SoundCloud.

Agosto de 2015:

Prince anuncia seus planos de lançar seu novo disco, HITNRUN, exclusivamente via Tidal. Em um comunicado, ele explica que “Jay Z e a equipe que ele reuniu em Tidal reconhecem e aplaudem o esforço que os verdadeiros músicos colocam no seu trabalho para alcançar o melhor possível nessa época única da indústria musical”.

Setembro de 2015:

Um tribunal de justiça fica do lado do bebê dançante, alegando que detentores de direitos autorais devem considerar possíveis usos inofensivos antes de solicitar a remoção.

Outubro de 2015:

Prince entra pro Instagram. Seu nome, brilhantemente, é Princestagram. Como Prince é Prince, a conta ficou ativa por um curto período de tempo em 2014, com pouca repercussão.

Novembro de 2015:

Prince esclarece sua declaração de que “a internet acabou completamente.” Em uma entrevista ao Guardian, ele diz: “O que eu quis dizer foi que a internet acabou para aqueles que querem ser pagos, e eu estava certo. Me diz um músico que ficou rico com vendas digitais. Mas a Apple está indo muito bem, né?

Abril de 2016:

Prince.org, um fórum não oficial usado por fãs, sai do ar brevemente entre a torrente de informações que emergem sobre a morte de Prince. Law 360 afirma que peritos legais acreditam que o controle de Prince sobre sua propriedade intelectual poderia ser questionado depois de sua morte.

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