Oferendas

Janayna Bianchi Pin
5 min readFeb 21, 2019

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A taverneira pousou o banquinho no chão com um bufar. Puxou as saias e o avental para cima e subiu.

— Acaé, traga-me o fogo.

A velha criatura com rosto de curumim puxou para si uma das lamparinas da mesa mais próxima. Mais por exibicionismo do que por necessidade, Acaé-Mureru aninhou um ramo do fogo em suas mãos em concha e cruzou a taverna com passos cuidadosos, grunhindo palavras de dominação em sua língua natal para mantê-lo sob controle.

A taverneira estendeu a enorme peça de cera azul na direção de Acaé e fez um sinal afirmativo. Nos olhos negros sem pupila do ser da floresta, os reflexos das chamas bruxuleavam em desacordo com as labaredas originais, centelhas de uma vida quente aprisionada em um corpo de criança afogada. Com cuidado, Acaé abriu as mãos pálidas e o fogo escorreu para o pavio em um único movimento fluido.

A taverneira sorriu para a menina de cabelos negro-esverdeados e pousou a vela no altar. Aninhou as mãos rechonchudas na frente do corpo e admirou seu repositório de tantos símbolos.

— Lina! Lina! — chamou Acaé, depois de alguns instantes, com a entonação pouco natural de quem usa a voz que não foi sempre sua.

Lina despertou de seu devaneio e olhou ao redor. Acaé-Mureru alternava o olhar apreensivo entre a taverneira e os clientes, que já interrompiam comilança e bebedeira à espera do pronunciamento da matrona rechonchuda.

— Boa noite, senhoras e senhores.

Vozes, grunhidos, sussurros, rosnados, assovios e ondas telepáticas de todos os tipos responderam ao cumprimento.

Lina sorriu. Caminhando lentamente, a taverneira adentrou a área reservada do bar, sentou-se em sua banqueta alta e espalmou as duas mãos sobre o balcão. Acaé, como era de costume, sentou-se de cócoras no chão, bem a seu lado.

— Como sabem, o mundo está morrendo.

Houve um burburinho geral, misto de concordância e discordância. Lina, experiente em reboliços de taverna e manifestações em geral, apenas aguardou. Logo, os protestos cessaram.

A taverneira pigarreou antes de continuar.

— Os ventos sopram na direção do ponto cardeal que bem entendem. Animais tentam acasalar com pares que não são seus e corpos mortos se recusam a repousar nas piras, poços e pirâmides. O ano não se divide mais em quatro estações de mesma duração. Se os boatos forem verdadeiros, choveu de baixo para cima em Aríete, no último dia do último verão.

Murmúrios brotaram, menos veementes.

— O mundo está morrendo — sentenciou a taverneira.

Acaé ainda não sabia controlar muito bem as reações daquela menina, por isso riu. Notando a falta de reciprocidade, pôs-se a choramingar, resmungar, xingar e, enfim, soluçar, testando as reações que obtinham melhor recepção. Lina estendeu a mão para baixo, acalmando-a. A garota enlaçou sua mãozinha na dela e se calou.

— Há deuses que criam mundos através do sopro. Há deuses que destroem o que criaram com dilúvios vermelhos. Há deuses que vivem no fundo do mar, há deuses que vivem no breu e deuses do trovão que vivem além deste mundo, encarrapitados em árvores celestiais. — O céu da tarde não parecia anunciar chuva, mas a palhoça foi iluminada por um instante pela luz de um relâmpago sem trovão. — Há deuses que se vestem de animais, deuses que pregam o amor livre e deuses que enxergam através das árvores. Há deuses de pele escura que já foram homens, mas que hoje vivem às beiras do rio eterno que corre em um círculo sem início ou fim. Há deuses caídos, deuses esquecidos, deuses da lama e deuses do caos.

Lina apontou para seu altar. A luz que emanava a vela azul iluminava igualmente criaturas de cerâmica sentadas em flores que nunca morriam, patuás de madeira, esculturas feitas com ligas de metais estelares caídos do céu, espigas de milho marcadas com runas, imagens de barro e de madeira de sacerdotes esquecidos, bonecos de pano espetados por alfinetes, recipientes de vidro com líquidos que se agitavam com vida própria e outros amuletos de fés.

— E existem os deuses que constroem mundos. Alcovas férteis para que novos deuses possam prosperar.

Mais protestos, dessa vez um pouco mais inflamados.

— O fato é que estes deuses estão negligenciados, e isso não é bom. Vejam bem: é com o substrato de outras histórias que sustentam estes nossos universos… Como esperar prosperidade se, há tempos, ninguém os alimenta direito?

Acaé batucou uma marchinha de carnaval no assoalho de madeira. Além dele, ninguém se manifestou, em ritmo algum.

— E é por isso que vocês estão aqui. Por isso que convoquei os melhores entre os melhores contadores de histórias de cada uma das tribos, bandos, legiões, academias, impérios, milícias e alcateias desta capitania ultramarina.

— Vamos sacrificar e ofertar os que contarem histórias ruins? — gritou uma guerreira do oeste, balançando a pulseira cheia de relíquias de inimigos canibalizados.

Alguns riram, outros arrotaram, alguns ainda argumentaram, inflamados. A taverneira apenas revirou os olhos.

— As histórias serão as oferendas, Aika. — Ela suspirou. — Preciso de vocês.

No recinto, fez-se a terceira parte do silêncio. Finalmente, alguém deu um tapa no tampo da mesa.

— Apoiada — respondeu o bardo negro.

— Apoiada — endossou a viajante no tempo.

— Apoiada — acrescentou o filósofo centenário.

— Apoiada — grunhiu o velho selvagem.

— Apoiada — cantarolou a fada colorida.

Acaé se levantou e pôs-se a correr pela taverna, batendo palminhas.

Lina sorriu.

— Pois bem. Quem se habilita a começar?

Em algum ponto no fundo da taverna, uma caneca caiu com estardalhaço. Mãos rápidas enxugaram a mesa com um fino lenço de linho, mas houve quem viu o líquido se esparramar até formar a silhueta de um homem alado, a sombra de um antigo guerreiro caído.

Um instante depois, uma rajada de vento forte abriu a porta, derrubou chapéus, varreu a poeira, levantou saias e apagou as velas.

A chama do círio azul, no altar, foi a única a resistir.

Com um sorriso no rosto, o primeiro contador de histórias se levantou, fez uma reverência na direção da vela e, sem sequer abrir a boca, pôs-se a falar.

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Janayna Bianchi Pin

Escritora, engenheira, viajante e passeadora de lobisomens. Autora de Lobo de Rua (bit.ly/lobojana).