Mortalidade em tempos de COVID-19: a que contamos, mas também a que não contamos

Um olhar para o excesso de mortalidade em Espanha, Itália e Portugal

Jorge Félix Cardoso
10 min readMar 29, 2020

Sumário: revisão dos números a acompanhar durante um surto e suas vantagens e desvantagens; o excesso de mortalidade em Espanha e Itália; os dados da mortalidade para Portugal. O excesso de mortalidade no mês de março é claro.

Texto escrito por: Jorge Félix Cardoso, Henrique Vasconcelos, Ricardo Cruz Correia, Pedro Pereira Rodrigues, Cláudia Camila Dias, Cristina Costa Santos, docentes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadores do CINTESIS. Membros do grupo COVIDcids.

O SARS-CoV2 não é o único problema que tem assolado o mundo sem poupar exceções. A qualidade dos dados durante esta pandemia tem deixado a desejar e limita a capacidade de agir atempadamente e com maior efetividade no combate à COVID-19. Assim, importa aproveitar todas as fontes de dados existentes que nos permitam aferir impactos e prever que medidas melhor os corrigiriam.

A maior parte das análises que podem encontrar-se baseia-se no número de casos confirmados e nos óbitos atribuídos diretamente à COVID-19. Portugal não é exceção, e os dois números mais procurados no boletim diário libertado pela Direção-Geral da Saúde são esses mesmos. No entanto, estes números têm problemas, como tem vindo a ser salientado por muitos especialistas nos últimos dias.

Vejamos primeiro os casos. O número de casos na população é um número ideal para perceber o comportamento dos surtos, mas infelizmente não é possível sabê-lo com exatidão. O que sabemos são os casos confirmados, isto é, os casos que foram testados e deram positivo. Esse número, uma vez que não é possível testar toda a população (e os próprios testes não são infalíveis, mas podemos ignorar essa questão por agora), fica sempre abaixo do número real de casos — quanto abaixo é a grande questão.

No caso português, até ao dia 26 de março só eram testados os doentes com sintomas compatíveis com a COVID-19 e que tivessem ligação epidemiológica a casos confirmados, ou então que estivessem internados por pneumonia vírica de causa desconhecida. Uma vez que se suspeita que já houvesse transmissão comunitária ativa, sem que se conheça exatamente a ligação de todos os casos confirmados a outro caso que lhe tenha transmitido a doença, é muito provável que todos os dias tenham escapado casos.

Assim, o número de casos confirmados em Portugal é uma subestimação não negligenciável do número real de infetados por COVID-19.

Outros números que podem ser úteis são a mortalidade e a letalidade. O que as distingue? Simplificando, mortalidade por COVID-19 representa a quantidade de mortes por COVID19 em toda a população portuguesa; letalidade da COVID-19 é a quantidade de mortes dentro de todos os infetados. Temos já estimativas internacionais acerca da letalidade da COVID-19 que a situam em torno dos 1%. Assim, sabendo o ritmo e a dimensão dos óbitos, podemos tentar extrapolar o ritmo e a dimensão do surto, ainda que com cerca de 15 dias de atraso.

Mas mesmo estes números têm os seus problemas. Duas coisas podem acontecer, ambas com consequências contrárias. Por um lado, se não testarmos todos aqueles que morrem, podemos deixar escapar alguns casos de COVID-19 não diagnosticada. Por outro lado, há pessoas em situação de enorme fragilidade que não morrem exatamente devido à COVID-19, já que a sua morte aconteceria independentemente da infeção pelo SARS-CoV2.

Para além de tudo isto, existe ainda uma componente indireta da COVID-19, provocada pelo desvio de grande quantidade dos recursos da sociedade para o seu combate. É provável que os cuidados para outras doenças e situações urgentes saiam prejudicados, e é provável que a situação de profunda crise económica e social causem também mortes por pobreza e todas as suas características atrozes.

É claro que as medidas tomadas para combater a COVID-19 também provocam alterações na mortalidade, mas em vários sentidos. Menos carros na estrada, menos acidentes desportivos ou de trabalho, menos criminalidade, tudo isto poderá ter levado a uma diminuição da mortalidade, também como causa indireta da doença. Em contraponto, ter-se menos acesso necessário às urgências por medo de contágio pode levar a que uma série de casos agudos possa apresentar mais mortalidade do que normalmente se verificaria.

Em alguns países, existe um acompanhamento de todas as mortes no país em tempo real, e isso pode ajudar-nos a ter uma ideia melhor daquilo que está a acontecer. É este o tal terceiro indicador que poderá ser útil para perceber, quer os efeitos diretos da COVID-19, quer os efeitos indiretos. A sua análise é extremamente complexa e tirar conclusões, sobretudo no curto prazo, é um exercício difícil, talvez até demasiado ambicioso. Não significa isso que não devamos vigiar as tendências.

Comecemos por dois exemplos internacionais.

Em Espanha, o Instituto Carlos III olhou para os dados da mortalidade diária, num relatório com data de 26 e março, e encontrou hipóteses que sugerem que a mortalidade está bem acima dos últimos anos, e não apenas pela margem indicada na contagem oficial de mortes do COVID-19. Para os dias entre 21 e 25 de março, o excesso de mortalidade está na ordem dos 17%, o que corresponde a quase mil mortes adicionais, com o grosso desse excesso a verificar-se nos indivíduos acima dos 74 anos — e isto num contexto em que o reporte de mortalidade está assumidamente atrasado e incompleto para os últimos dias. Os autores afirmam que continuarão a monitorizar a mortalidade. Deixamos abaixo alguns dos gráficos deste relatório, que nos parecem bastante esclarecedores.

Gráfico do Instituto Carlos III
Gráfico do Instituto Carlos III
Gráfico do Instituto Carlos III

No entanto, nem estes dados são completamente fiáveis, e convém esperar alguns dias para olhar para estas datas tão próximas de nós. Citamos o Observador:

O cenário de Madrid é dos mais surpreendentes porque, depois de ter sido detetado este excesso de mortalidade até ao dia 16, os valores voltaram a níveis normais. Isto precisamente na altura em que houve um aumento maior no número de mortes causadas pelo vírus.

“É um enorme problema de qualidade dos dados. O sistema, também nos registos, está sobrecarregado. O mais importante deste estudo é que revela pela primeira vez os aumentos reais da mortalidade nas zonas e nas datas em que a qualidade dos dados é boa. E em todas elas os aumentos são devastadores”, indicam ao El País fontes conhecedoras do sistema de monitorização diário de mortalidade em Espanha.

Gráfico do Instituto Carlos III

Em Itália, o Presidente de Câmara de Nembro e o CEO do Centro Medico Santagostino olharam também para dados equivalentes, e o excesso de mortalidade é ainda maior. Nembro é o município italiano mais afetado, e foi para aí que olharam inicialmente. A média de mortes entre Janeiro e Março para o intervalo 2015–2019 era 35. Este ano, Nembro regista já 158 mortes, o que significa um excesso de 123 mortes. As mortes atribuídas à COVID-19 são 31, ficando por explicar as restantes mortes em excesso. O rácio entre a mortalidade em excesso e as mortes oficiais por covid é de 4, ou seja, as mortes em excesso são 4 vezes o número oficial de mortes por COVID-19. Os autores assumem que o excesso é explicado também por COVID-19, em doentes que morreram em casa e não foram testados. Seguindo o raciocínio, supõem ainda que toda a população de Nembro foi infetada, e calculam uma letalidade de 1%, tal como a que resultou em alguns dos estudos feitos noutros contextos.

Gráfico do Corriere Della Sera

Ampliando a sua análise a outras regiões, estes dois autores encontram rácios entre mortalidade em excesso e morte por COVID-19 de 6,1 em Cernusco sul Naviglio (Mi) e em Pesaro, e de 10,4 nas Comune di Bergamo. O artigo acaba com um pedido para que todos se esforcem a colher melhores dados sobre a COVID-19.

E em Portugal?

Portugal tem dados disponíveis para aferir a mortalidade diária (normalmente o atraso no reporte é de 48h). Por isso, fomos olhar os dados e traçar alguns gráficos.

Começamos pela comparação da mortalidade com os dois anos anteriores, 2018 e 2019. Como podemos ver abaixo, a mortalidade em 2020 começou por ser semelhante a 2018, tendo depois descido ao longo de todo o mês de fevereiro, e voltando a subir mais recentemente, estando agora acima dos dois anos anteriores.

O fenómeno que agora vemos poderia ser simplesmente uma “compensação” por um fevereiro com menos mortes, mas a tendência ascendente nesta fase do ano não é normal. Abaixo pode ver-se um outro gráfico, que compara a mortalidade em 2020 com a média dos últimos 10 anos. Como se vê, é normal que a mortalidade desça a partir do final de fevereiro, mas este ano temos um movimento diferente. Concretamente, a subida da mortalidade parece ter um ponto claro no tempo: o fim de semana de 7 e 8 de março, o primeiro fim de semana em que o país verdadeiramente discutiu a COVID-19 como preocupação nacional.

Coincidências? É possível. Mas também é possível que seja já o reflexo de um conjunto de fatores na mortalidade — desde a ação direta da COVID-19 às suas consequências indiretas.

Para tirar isso a limpo, desenhámos as tendências da mortalidade nos meses de fevereiro e de março (até dia 27) para todos os anos entre 2009 e 2020.

Em fevereiro, devido às habituais épocas gripais, é esperado que a mortalidade possa manter-se elevada, incluindo até uma tendência de aumento. De facto, a média nos 11 anos anteriores apresenta um declive praticamente nulo. No entanto, este ano tivemos uma época ligeira, pelo que a mortalidade foi baixa quando comparada com anos anteriores. Nota-se, assim, uma tendência bastante acentuada de diminuição, declive apenas comparável aos anos de 2011 e 2017, acompanhados de perto por 2009 e 2019.

Seria de esperar que, em Março, ainda considerando um natural ajuste de mortalidade para acomodar variações aleatórias de baixa mortalidade em fevereiro, as tendências de diminuição se mantivessem ou acentuassem; de facto, a média dos 11 anos anteriores apresenta em março uma tendência negativa. Em anos de baixa mortalidade em fevereiro (2011 e 2017), onde se poderia esperar um ajuste de subida em março, verifica-se que a tendência desacelera, de facto, ficando quase constante. Anos de declive negativo em fevereiro mas com mortalidade alta (2009 e 2019), mantêm a tendência em março.

Mas os dados de mortalidade diária em março de 2020 não podiam ser mais excepcionais. Único ano dos últimos 12 com tendência de aumento (declive 2,197, restantes todos negativos, lista completa no final), contraria todas as tendências de diminuição dos últimos anos, elevando a mortalidade para o valor mais alto, neste período. Mais ainda, considerando que o aumento de mortalidade se começa a verificar apenas no fim-de-semana de 8 de março, o declive destas últimas três semanas é ainda mais acentuado — e mais excecional — do que o que aqui apresentamos.

Se usarmos a média dos primeiros 7 dias de março (aproximadamente 300 óbitos) como valor de referência para o resto do mês (corresponde a um declive de zero), então o número total de óbitos esperados até ao dia 27 seria de 8100 (300 mortes por dia durante 27 dias). Neste momento temos um total de 8700 óbitos, o que corresponde a aproximadamente 600 mortes acima dessa expectativa, ou cerca de 7% de excesso de mortalidade. Destas 600 mortes, 100 encontram-se associadas à COVID19 (segundo o Relatório de Situação Nº 26, emitido a 28 de março pela DGS, e que traz todos os dados até às 24h de dia 27 de março), ficando 500 óbitos por justificar. Estes 500 deverão ser divididos, pelo menos, em quatro tipos de situações: óbitos por COVID19 não diagnosticados; óbitos que, tendo sido evitados em fevereiro, vieram a verificar-se em março (explicado anteriormente); óbitos por outras condições que, fruto da situação atual, acabam por não ser evitadas; ou simplesmente óbitos que já iriam acontecer nesta altura e que são imprevisíveis. Não temos nem conhecemos dados que permitam prever de que forma o excesso de mortalidade calculado se divide entre estas categorias.

Infelizmente, a informação em tempo real devia contemplar divisão por regiões, mas parece que a plataforma evm.min-saude.pt parou de atualizar esses dados a 19 de fevereiro. Esses dados permitiriam fazer uma análise mais detalhada, à semelhança daquilo que fizeram os exemplos espanhol e italiano que aqui deixamos.

Os valores que aqui se encontram baseiam-se exclusivamente em dados já disponíveis. Optamos por não fazer previsões devido à grande incerteza que a situação encerra. Reforçamos que as hipóteses aqui avançadas não devem ser divulgadas como certezas, mas devem ser atentamente estudadas em maior detalhe.

Nos próximos dias continuaremos a acompanhar a mortalidade e a atualizar estes gráficos. Esperamos também apresentar contas mais robustas relativamente ao excesso de mortalidade.

Agradecemos comentários e críticas a esta análise e contributos futuros, que podem chegar através de jfelixcardoso@med.up.pt

Anexo 1 — valor do declive da tendência da mortalidade no mês de março, 2009–2020

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