“Moonlight: Sob a Luz do Luar” e o retrato da masculinidade do homem negro

João Alves
8 min readNov 7, 2017

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“Moonlight” é um filme muitas vezes desarmante, às vezes insuportavelmente pessoal e de fato um documento social. Se apresenta como um olhar duro sobre a realidade norte-americana e um espetáculo intimista escrito em luz, música e rostos expressivos.

(Atenção este texto contém detalhes da trama)

“ À luz do luar, negrinhos ficam azuis. “

Analisar o jeito como homens negros experimentam sua masculinidade não é uma das tarefas mais simplórias. O tema ainda é tabu. A questão foi e ainda é motivo de diversos estudos e ainda não foi completamente destrinchada. Apesar disso, Barry Jenkins resolve encarar esta empreitada, ao dirigir e roteirizar o filme Moonlight (2016). E esta não é a única questão abordada por Jenkins em sua obra. Homossexualidade, status social, entrega às drogas, criminalidade, preconceito e bullying. Todos esses fatores são abordados durante o decorrer do filme. Tantos aspectos complexos reunidos numa única película podem torná-la fadada ao fracasso devido ao alto nível de dificuldade em realizar um filme deste porte. No entanto, o diretor pode ser considerado bem-sucedido, visto que a obra foi aclamada pelo público e pela academia, chegando a ser premiada com o Oscar de melhor filme.

Moonlight é um longa-metragem que nos apresenta, em três atos, a vida de seu protagonista e a jornada em busca por sua identidade. Em cada um deles, nos é apresentado um trecho de diferentes fases da vida do personagem. Começamos pela infância, quando o tímido garoto que é conhecido como Little (Alex R. Hibbert) nos é mostrado, seguimos para a fase da adolescência quando passa a exigir ser chamado pelo seu nome real, Chiron (Ashton Sanders) e, finalmente, como um adulto que passa a atender pelo nome Black (Trevante Rhodes)

É interessante observar o trabalho da excelente fotografia de James Laxton. O design do filme adota cores, temperaturas e texturas diferentes em cada um dos três atos do filme. E neles, onde trechos da vida do personagem são mostrados, um padrão foi escolhido para retratar visualmente algo que se aproxime do turbilhão de sensações sentidos por Chiron.

Fato curioso que vale menção é que grande parte das filmagens foi realizada pelo próprio James (afirmação feita pelo mesmo em entrevista ao site Lens Culture) e segundo ele, esta proximidade com os atores foi fator fundamental para que ele juntamente com a câmera entrassem em sintonia com o filme.

Primeiro ato:

Little nos é apresentado como um menino solitário, morador do subúrbio de miami e de apenas 9 anos de idade. No entanto, sua idade não é empecilho para as diversas questões problemáticas que tem de enfrentar, como a violência que sofre pelo convívio com sua mãe usuária de drogas, Paula (Naomie Harris), a homofobia e a pobreza. Tal ambiente o tornou uma criança desconfiada e que adotou a estratégia do silêncio como forma de autopreservação.

É válido ressaltar que o diretor se utiliza de planos subjetivos (ponto de vista do personagem, primeira pessoa) para reforçar esta sensação no espectador.

Paula e o plano subjetivo partindo de Little

Outro ponto a ser ressaltado e que também é relacionado ao diretor é a questão da natureza e o significado da masculinidade do homem negro, que é uma das principais preocupações de Jenkins. Quão “machão” você deve ser? Quão cruel? Quão gentil? Quão corajoso? E como e com quem você deveria aprender? Tais questões tão importantes ao homem negro (que é negado o direito de sentir, de ser humano) não poderiam ficar de fora da composição de um personagem tão profundo.

A iniciação de Chiron a tais indagações parece ser através do medo e da confusão, pois logo no primeiro ato vemos Little fugindo de um grupo de outros meninos que visam o agredir. Vemos também, o porquê de seu apelido, sendo que o protagonista é menor que a maioria dos que o perseguem. Essa diferença (que é uma de muitas vulnerabilidades) não passa despercebida aos meninos que o rodeiam e nem ao próprio protagonista. Seu esforço para compreender essa dissemelhança — para desvendar a conexão entre a homofobia que sofre durante o recreio e seus próprios desejos confusos — é uma das faixas ao longo das quais sua crônica episódica prossegue.

Little

Após se esconder de seus agressores em uma casa abandonada, Little é encontrado e resgatado por Juan (Mahershala Ali), que, após uma tentativa de conversa fracassada, o leva para sua casa e lhe oferece alimento e abrigo provisório. Pode-se dizer que este é o começo de uma amizade improvável visto que ele é o responsável pelo tráfico de drogas da região. Ele e sua namorada Teresa (Janelle Monáe) transformam seu lar em um oásis para Little, pois percebem que apenas lá, ele conseguiria vivenciar um lar estável, coisa primordial para uma criança em formação.

Juan, demonstra ser uma pessoa que foge dos estereótipos que o espectador pode ter de um traficante e se apresenta como um surpreendentemente doce e paternal personagem. Após certo tempo, chega à se tornar uma espécie de mentor para o protagonista, visto que ele é a pessoa com quem Little consegue conversar sobre as questões que lhe atormentam (como a questão da homofobia que sofre). A relação fortalece.

Colocando-se no papel de pai, Juan lhe passa uma lição que está muito ligada à trama da película: mais cedo ou mais tarde, Little teria de decidir quem e o que quer ser. E mais uma vez fica evidente que o personagem não consegue se posicionar na realidade em que vive, e isso fica cada vez mais explícito ao decorrer da trama.

Entretanto, a “ocupação” de Juan, não deixa de ser um espinho na relação entre ele e o protagonista. Isso fica explícito na cena em que Little o pergunta se sua mãe era usuária de drogas e se Juan era quem vendia para ela. A sequencia em que vemos reação de Juan e a expressão de Little ao concluir o raciocínio é tocante.

Estes dois vídeos ajudam a esclarecer a lógica destas afirmações:

Um dos trechos marcantes desta relação se dá quando Juan ensina Little a nadar.
Trecho em que Little, Juan e Teresa conversam sobre homossexualidade e drogas

A construção dos personagens evidencia mais um traço interessante do filme de Jenkins. Raramente há uma generalização e/ou “estereotipação” dentro da composição dos personagens. Algo que acontece com filmes desta temática e poderia facilmente ter acontecido com este. Insistir em que histórias sobre grupos de pessoas pobres, oprimidas ou de outra forma marginais são sobre todos, é uma forma de negar suas particularidades. E o diretor faz justamente o contrário. Ele não generaliza. Ele simpatiza.

Segundo Ato:

Após o primeiro corte temporal, nos é apresentado um Chiron já adolescente e ainda perturbado pelos mesmos problemas, porém numa intensidade maior. O vício de sua mãe se torna mais problemático, a violência que sofre de seus agressores atinge um ponto chave e a questão acerca sua sexualidade se torna mais presente. Os acontecimentos, a partir daí, são ao mesmo tempo comoventes e assustadores e contribuem para a compreensão do terceiro ato.

Chiron

Já sem a presença reconfortante de Juan (o falecimento do personagem não é explicado), Chiron tem de enfrentar suas questões sozinho (com a ocasional ajuda de Teresa). Questões relacionadas à sua masculinidade por exemplo. Sua homossexualidade fica evidenciada na cena em que o protagonista dá seu primeiro beijo em seu amigo de infância Kevin (Jharrel Jerome).

Tal fato só torna mais dolorosa ainda a cena em que é obrigado a entrar numa luta com Kevin, apenas para o deleite dos valentões da escola.

Esta cena e a vingança do protagonista servem para demonstrar o aspecto do roteiro que é construído a partir do “empilhamento” de experiências de Chiron. A cada novo aparecimento do personagem, entendemos exatamente como ele chegou ao ponto em que está e o que cada ação significa para ele e para aqueles ao seu redor.

Sua vingança o leva à prisão e ao terceiro ato da trama.

Terceiro Ato:

Finalmente, no último ato podemos ver o desfecho de todas as vivências experienciadas por Chiron, agora conhecido como Black, e como as condições de vida o moldaram. Black, assim como Juan, é um traficante respeitado em seus círculos e bem sucedido financeiramente.

Contudo, Black também pode ser descrito como um fora-da-lei que esconde tudo o que sente atrás de seus músculos e sorriso platinado. No entanto, a insinuação do retorno daquele amor de sua juventude é capaz de desmontar toda essa armadura criada (e moldada com o tempo) para fugir daquela fragilidade e vulnerabilidade, sensações intrínsecas àquele homem desde a infância.

É interessante notar como durante todo o desenrolar da trama o personagem sempre opta pelo silencio e por se afastar dos outros, claramente uma medida adotada contra a violência que sofria por ser visto como diferente. Um diferente fraco, um diferente não positivo.

É possível traçar um paralelo entre Chiron e a realidade de diversos homens negros pelo mundo. Pois diferentemente dos brancos, não nos é permitido sentir, visto que temos de atuar de acordo com o padrão que é esperado do homem negro. Não somos o padrão de beleza, nem de racionalidade e muito menos o padrão de homem de família. O que nos resta? A idealização do negro selvagem e viril, do “negão” bom de cama entre outras bobagens. Isto nada mais é do que o resultado da hiperssexualização do corpo negro.

Questionar os padrões de masculinidade da perspectiva racial, (tal qual em Moonlight) implica em entender que homens negros são mais do que corpos, mais do que performance sexual, e sim , homens multifacetados e singulares. Segundo o psicólogo Alessandro de Oliveira Campos é preciso pensar no plural: “não há masculinidade, mas masculinidades”.

O filme “Moonlight” aborda a questão da dignidade, da beleza e da vulnerabilidade dos corpos negros, além da questão existencial e física das vidas negras. E para isso se utiliza de recortes da vida de um jovem que é, ele próprio, um recorte da sociedade. Barry concede a seu filme uma sensibilidade que toca profundamente quem assiste, não apenas por Chiron ser um personagem muito representativo em relação às opressões vividas pelos homens negros e gays, mas também por causar no espectador uma profunda empatia ao longo em que acompanhamos sua jornada e consequentemente seu triste desfecho.

Obrigado pelo seu tempo!

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