Petróleo que arde

No calor das chamas: Os perigos vividos na zona de sacrifício de uma refinaria

Os resíduos do refino do petróleo são vistos como problemas distantes e sutis por grande parte da população. Já as pessoas que passam a vida ao redor de uma refinaria não têm a opção de serem indiferentes

João Antonio da Silva
9 min readMay 24, 2023
Flares da Refinaria Alberto Pasqualini expelindo os excessos de gás produzido na unidade. Foto: Teresinha Bobsin / Divulgação.

Não é apenas o amor que arde sem se ver. A população dos bairros Esperança, São José e Olímpica, em Esteio, entendem a sensação. O cheiro característico do gás de cozinha (GLP) avisa que em questão de tempo a ardência nos olhos ou no nariz poderá começar, o que também acontece nas proximidades do bairro da Brigadeira, em Canoas. O gás liquefeito do petróleo é um entre os vários subprodutos dos processos executados pela Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP). No entanto, o cheiro pode disfarçar aquilo que de fato está sendo respirado há décadas por eles.

Esteio, enquanto substantivo, refere-se a uma peça que serve para segurar algo, assim como suporte ou sustentáculo. A cidade da região metropolitana de Porto Alegre tem esse nome graças as madeiras que alicerçam as antigas linhas férreas da cidade. Considerada jovem em comparação à grande parte dos vizinhos, Esteio também é vista como uma cidade dormitório para Porto Alegre, já que não há empregos suficientes disponíveis no município. A partir desta escassez de oportunidades, os moradores começaram a cultivar uma relação de admiração com as empresas que foram se instalando na cidade, como foi o caso da refinaria e — como ainda ocorre — com as multinacionais, por serem vistas como grandes geradoras de emprego. Porém, nem tudo é tão transparente quanto o dióxido de enxofre (SO2) emitido pela REFAP.

Onde e o porquê dói

O SO2 é um dos subprodutos do refino do petróleo, que, por sua vez, é um composto gerado a partir das substâncias provenientes da decomposição dos restos mortais de animais e plantas de milhões de anos atrás. No fim, é um processo de envelhecimento de materiais pesados de eras antes da nossa.

Ardência nos olhos e nariz, enjoo e ânsia de vômito são as reclamações mais comuns dos habitantes da região mais próxima à Refinaria Alberto Pasqualini. O cheiro, por estes mesmos relatos, tem ficado mais intenso, mas ainda assim acaba sendo percebido por grande parte da população apenas dessa forma: como um cheiro que faz parte do processo industrial. Só não faz parte do que o corpo humano deve receber.

De acordo com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), o excesso de dióxido de enxofre na respiração causa ardência no nariz (como grande parte dos moradores relata), agravamento de condições respiratórias pré-existentes, como bronquite e asma, e, de forma mais difícil de ser detectada, chiado nos pulmões.

O petróleo não é uma substância homogênea em todo mundo, podendo ter diferentes proporções na sua composição. A Bacia de Campos é um dos poços de exploração de petróleo pesado no Brasil, sendo localizado próximo à Macaé (RJ). O material colhido para refino na região tem uma quantidade maior de metano do que em outras extrações, por exemplo. Já no pré-sal, é extraído o petróleo leve. Esse tipo de particularidade torna mais difícil definir quais compostos poderão ser descarregados no ar que as comunidades ao redor das refinarias estão expostas. Da mesma forma que a composição da matéria-prima muda conforme a região, quem fiscaliza também.

Sem dados, não existe problema

A propriedade da REFAP faz parte da cidade de Canoas, porém a distância das moradias é muito menor para os esteienses. Já a parte burocrática, como licenciamento ambiental, não é feita por uma entidade de nenhuma das duas cidades. A Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luís Roessler (FEPAM) é a responsável por vistoriar a refinaria e garantir que a emissão de resíduos (sejam eles no ar, água ou solo) estejam dentro do que é permitido por lei. A entidade fica abaixo apenas da secretária de meio ambiente do estado.

No infográfico abaixo é possível ver as refinarias estatais em terra firme, a distância das moradias mais próximas e a entidade responsável pelo licenciamento.

A assessoria geral da Petrobras, em resposta a um contato realizado por e-mail (assinado por Marcos Rogério Crivellaro, coordenador de comunicação da região Sul do Brasil), indicou que existem três canais para comunicação de problemas na entidade para serem utilizados pela população, porém, nenhum deles tem foco restrito ao meio ambiente, podendo receber denúncias de diversos tipos de infrações, inclusive crimes fiscais. Os portais de Fale Conosco, Ouvidoria e Canal Denúncia ficam localizados na parte inferior do site geral da Petrobras, ou seja, são plataformas que podem receber denúncias regionais, mas que são recebidas pela entidade junto das reclamações de todo Brasil.

Thièrs Willberger, biólogo e paleobotânico, nasceu junto das refinarias de Macaé (que já não são mais estatais, tendo sido vendidas para investidores estrangeiros) e viveu grande parte de sua vida por lá, entre idas e vindas para aprofundar suas pesquisas. Retornou em definitivo em 2017 e tem trabalhado com ONGs para preservação e restauração ambiental. A cidade carioca, que já foi conhecida como princesinha do Atlântico e hoje carrega o título de capital do petróleo e gás, teve sua população multiplicada em, pelo menos, cinco vezes desde a instalação dos parques de exploração petrolífera. Em entrevista, o biólogo compara a situação de Macaé com o que ocorre em Esteio e Canoas: “Apesar da proporção ser diferente, os problemas que as cidades enfrentam são os mesmos”.

Willberger comenta também que um dos padrões mais preocupantes e difíceis de combater é a falta de dados concretos sobre a influência das refinarias na vida da população, mas que isso não é por acaso. “Vou te dar o exemplo que temos aqui na região. Pesquisas afirmam que a inalação de dióxido de enxofre, além de acentuar problemas pré-existentes, pode causar câncer de pulmão e estômago. É de se imaginar que o governo deveria investir em um hospital preparado e especializado para tratar isso aqui em Macaé, certo? Mas não foi bem o que fizeram. A unidade hospitalar mais próxima daqui que se encaixa nessas coisas fica em Campos dos Goytacazes, quase 100km daqui”, comenta. “Se os dados existissem e fossem mensurados aqui, poderiam relacionar com a presença das usinas de exploração, o que abalaria as estruturas de poder na política da região”.

Dadas as proporções, o mesmo ocorre com a REFAP. Foi realizado o contato com a Secretaria Municipal de Saúde, mas não houve retorno até o momento do fechamento da reportagem, da mesma forma os postos de saúde não se pronunciaram. Por telefone, os funcionários dos postos deixaram explícito que existem diversos casos de pacientes que chegam às unidades básicas de saúde (UBS) com os sintomas de inalação de SO2, mas que não estavam autorizados (e nem confortáveis) para prestarem depoimentos sobre o assunto. Como Willberger destaca “Se não existem dados, não tem como responsabilizar ninguém”.

Quebrando o (ecos)sistema

Os paralelos entre as duas cidades seguem nos mais diversos âmbitos. O número de moradores cresceu em ritmos diferentes, mas a injustiça ambiental seguiu da mesma forma. A discriminação, que pode ser vista facilmente na formação de favelas nas zonas de mais difícil acesso das cidades, também ocorre na relação da população com áreas consideradas nocivas para a saúde.

O bairro São José, um dos bairros mais próximos da REFAP, tem imóveis à venda por um valor três vezes menor que outros com as mesmas características localizados no bairro Tamandaré, no outro extremo da cidade. Nesse caso, apesar da importância histórica para a cidade, os moradores sentem a necessidade de se afastar cada vez mais da refinaria, o que desvaloriza os bairros, deixando-os propensos à especulação imobiliária e ocupações. Não por acaso, os condomínios com valores mais da acessíveis e com maior número de vagas disponíveis ficam próximos da refinaria, o que aumenta a densidade populacional da área.

Para Willberger, no caso de Macaé, o aumento populacional não ocorreu somente pelo desamparo das políticas públicas, mas também por um êxodo de mão de obra vindo de outras regiões do Brasil. As plantas petrolíferas necessitavam de força de trabalho num patamar que a cidade não era capaz de oferecer, precisando buscar em outros lugares. O biólogo se aprofundou no debate: “Você acha que esses problemas ficaram para trás? Eu digo que não. Com essa reforma trabalhista, essa onda de terceirização, a Petrobrás se aproveitou e usa cada vez mais pessoas nesse modelo de contrato. Começou com atividades como limpeza, segurança e foi aumentando o quanto conseguiu”. Isso também se reflete no caso gaúcho: na REFAP, em fevereiro deste ano (2023), ocorreram greves de terceirizados solicitando direitos básicos, como EPIs, que não estavam sendo disponibilizados pela contratante.

Greve dos terceirizados da REFAP por melhores condições de trabalho e segurança. Registro de uma assembléia ocorrida no portão leste da planta petrolífera. Foto: Divulgação / STICC.

Quando é realizada uma intervenção em algum ambiente mais preservado, haverá uma região que será afetada de forma mais grave e direta que as demais, colocando em risco quem por ali ficar. Para definir essa região, existe o termo Zona de sacrifício.

Dentro do site da FEPAM existe uma aba referente aos indicadores de qualidade do ar, indicando pelo índice IQAr, e seus efeitos para os humanos expostos a longo prazo. Abaixo temos uma tabela que indica quais sintomas costumam ser apresentados para cada nível de qualidade do ar, assim como a nomenclatura adotada pela entidade

No entanto, não é algo ligado apenas aos seres humanos, se estendendo a todos os componentes do ecossistema. No portal disponibilizado e indicado pela assessoria no site da FEPAM com as medições diárias do nível de emissão, caso sejam analisados os dados medidos ao longo do primeiro trimestre de 2023, a medição da estação de Esteio transita entre o nível bom e regular, da mesma forma que a unidade de medição em Canoas. A distância é semelhante entre ambos medidores e a refinaria, sendo 2.2km para Esteio e 2.5km para Canoas.

No gráfico abaixo, é possível verificar os níveis de emissão no primeiro trimestre de 2023.

No portal constam apenas os dados levantados quanto à qualidade do ar, sem avaliar o nível toxicidade de água e se o solo está ficando inerte devido à absorção de enxofre nesses últimos 50 anos.

É tudo pra ontem

Do petróleo trabalhado na REFAP, podem ser retirados alguns subprodutos, como GLP, gasolina, querosene, diesel, lubrificante, óleo combustível e asfalto. A nafta, que pode ser usada na fabricação de plásticos, é pouco produzida por aqui. Então a nossa dependência das refinarias se dá pela busca de recursos energéticos? Não é bem assim.

“Grande parte do que é refinado aqui (RJ) vai ser exportado, tanto que muitas refinarias daqui são privadas. Além de vendermos barato um produto que pode retornar mais caro para nós, estamos destruindo nossa terra fazendo isso”, explica o biólogo macaense. Também não é sempre que tudo coletado é vendido. “Em Macaé tem ocorrido um lobby muito grande para reabertura e instalação de termelétricas, mas para vender a energia produzida para regiões. Se engana quem pensa que todos aqui têm acesso à energia. Eles apenas estão priorizando quem não está aqui”.

Para o pesquisador, assim como para diversos outros militantes da causa ambiental, e pelos dados coletados globalmente, “estamos chegando no limite”. “Para além de quebrar essa ilusão de extrema dependência energética e acharmos alternativas menos agressivas, como a energia solar, é necessário darmos dignidade energética para todos usando esses meios. Já que para nós é normal, não conseguimos dimensionar muito o quanto tomar um banho quente pode fazer a diferença na vida de uma pessoa”.

Nas terras que já presenciaram a luta de José Lutzenberger e Flávio Lewgoy, ambientalistas símbolos do RS, contra a Riocell Celulose, que levou ao menos 10 anos para trazer o mínimo de dignidade para o meio ambiente porto-alegrense, precisamos nos mobilizar e sermos resilientes. Afinal, como Willberger comentou com leveza durante a entrevista: Essa fase de ter medo deles já acabou.

** Os relatos dos moradores não foram feitos de forma nominal para que sua identidade e privacidade seja preservada.

--

--