A sociologia política de Giovanni Gentile — Parte 1: o indivíduo e a liberdade

Joao F. D. Eigen
18 min readJul 11, 2023

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Giovanni Gentile (1875–1944)

Giovanni Gentile, oriundo da pequena cidade siciliana de Castelvetrano, é, sem dúvida, a figura mais destacada e reconhecida do fascismo italiano depois de Benito Mussolini, e sua contribuição filosófica é crucial para a síntese da ideologia fascista. Autointitulado como o “filósofo do fascismo”, Gentile já havia se tornado famoso, tanto na Itália quanto internacionalmente, antes do surgimento do fascismo, tendo sido, junto a Benedetto Croce, um dos principais representantes do novo idealismo italiano da virada do século por meio do jornal La Critica, fundado por ambos. Para compreender como e o porquê de Gentile ter se juntado ao fascismo e tê-lo defendido como uma vertente democrática mais pura do que a democracia liberal, um breve esboço biográfico se faz necessário.

Desde o início das suas atividades pedagógicas e filosóficas, Gentile começou a refletir sobre a decadência italiana a partir das desastrosas campanhas militares do recém-criado Estado unificado. As derrotas em Custoza e Lissa em 1866, e especialmente as de Dogali, em 1897, e Aduá, em 1896, onde os italianos foram derrotados pelos etíopes, foram um choque para a nação, pois pela primeira vez um exército europeu foi derrotado por tropas africanas. Gentile tinha doze anos na época de Dogali e vinte na época de Aduá e, juntamente a seus contemporâneos, ficou abalado com esses acontecimentos. Para Gentile, a degeneração do Estado italiano deveu-se ao Risorgimento ser conduzido por uma elite que, tanto por incapacidade como por recusa, não representava as aspirações e desejos do povo italiano, acabando por engendrar uma daninha alienação social e política por baixo dos frágeis pilares do edifício republicano. Igualmente, a Itália do parlamentarismo liberal que surgiu como consequência foi incapaz de engendrar qualquer semblante de uma sólida consciência nacional, desta vez aprofundando a milenar alienação sob um sistema político que se julgava plenamente representativo de toda a nação. Não é nenhum exagero afirmar que, diante do quadro lúgubre que o circundava, Gentile buscou completar a missão do Risorgimento e unificar o povo italiano com a sua pátria depois de mais de milênio de alienação. Escrevendo décadas após o Risorgimento, Gentile julgava a “nova Itália” liberal oriunda da unificação um fracasso político e social, uma presa fácil das nações plutocráticas e capitalistas mais fortes, um “fator indiferente em um mundo de potências hegemônicas, sem poder, vida e realidade”, o que o levou a analisar mais atentamente as raízes do problema[1].

Tornando-se um filósofo especializado na história da filosofia com ênfase na filosofia italiana, Gentile sentia especial ojeriza daqueles intelectuais decadentes que não comungavam e nem praticavam uma moral cívica na intenção de elevar os padrões intelectuais da nação, mas se limitavam a representar a frívola cultura burguesa do fin de siécle. A corrupção e a impotência política eram reflexos de uma ruptura mais profunda na história da Itália, uma ruptura que somente poderia ser desanuviada e compreendida por meio de um esforço de interpretação histórica conduzida por um intelectual responsável e consciente de sua responsabilidade para com sua pátria. Contra a decadente cultura materialista, cientificista e positivista que reinava nos círculos intelectuais e acadêmicos europeus, Gentile empunhou o estandarte do idealismo filosófico na ideia de realizar um “renascimento do idealismo” italiano na esteira de figuras como Bertrando Spaventa e de seu mentor Donato Jaja — cuja titularidade da cadeira de filosofia na Universidade de Palermo Gentile herdou em 1906 –, e nesse sentido a filosofia de Hegel se mostrou essencial para o desenvolvimento filosófico de Gentile[2].

Desde o seu primeiro trabalho acadêmico sério, sua dissertação de graduação acerca do pensamento de Antonio Rosmini e Vincenzo Gioberti, Gentile buscou completar a missão do Risorgimento e unificar o povo italiano com a sua pátria depois de mais de milênio de alienação. Embora o Risorgimento tenha unificado politicamente a península italiana, o governo democrático e parlamentar que surgiu para governar a pátria se mostrou, para Gentile, apenas uma fachada para uma nação ainda desintegrada e marcada pelas diferenças regionais agora representadas nos diversos grupos de interesse que se utilizavam do poder para avançar seus próprios interesses às custas da verdadeira unidade nacional, um simulacro de democracia onde o voto era um ritual temporário e sem sentido. Não à toa, Gentile foi chamado de a “última voz importante do nosso Risorgimento” e sua dedicação à unificação política e espiritual da nação italiana o levou diretamente ao encontro do fascismo[3].

Em outubro de 1922, logo após a Marcha sobre Roma e o começo da ascensão do fascismo ao poder, Gentile foi pessoalmente convidado por Mussolini para servir como seu ministro da Instrução Pública, cargo aceito e que ele manteve até julho de 1924; no mesmo período, Gentile também se tornou um membro oficial do Partito Nazionale Fascista (PNF). A partir daí, a vida e a obra de Gentile se mesclaram com a ascensão e a queda do fascismo como experimento político totalitário, e o próprio Gentile se tornou uma figura simbólica do regime, representando a “consciência” e a “maturidade” filosófica do fascismo — embora tal posto não tenha sido aceito de forma unânime dentro do PNF. Durante a maior parte da vida do regime, Gentile ocupou diversos cargos, a maioria honoríficos e de teor intelectual, como o editor do jornal L’eudcazione politica, mais tarde tornado o jornal oficial do Instituto Nazionale Fascista di Cultura, o Civilità Fascista, mas o cargo de mais destaque e longevidade foi o de supervisor da Enciclopedia Italiana, cargo que Gentile manteve de 1925 a 1944, e foi sob tal capacidade que Mussolini lhe requisitou a elaboração da primeira parte da Dottrina del fascismo, publicada no volume XIV da Enciclopedia Italiana, em junho de 1931[4].

Não houve qualquer coincidência na decisão de Mussolini em chamar Gentile para servir o regime, em 1922, visto que, embora até então Gentile tenha se mantido longe da militância esquadrista do fasci italiani di combattimento mussoliniano, a filosofia e as opiniões pessoais de Gentile durante e Primeira Guerra Mundial se mostraram muito similares aos posicionamentos dos fascistas. Não foi o fascismo que fez Gentile, mas, sim, Gentile, já uma figura famosa na Itália e até mesmo no exterior, que ajudou a sintetizar e formalizar, junto com o sindicalismo e o nacionalismo, os aspectos fundamentais da mais completa tentativa de tornar o fascismo uma filosofia política a fim de justificar o regime ditatorial do PNF.

Benito Mussolini e Giovanni Gentile: os autores da Dottrina del Fascismo.

Para compreender a sociologia de Gentile, deve-se fazer um esboço geral da sua filosofia pessoal, o attualismo — ou actual idealism. Pode-se defini-la como uma evolução do idealismo alemão de Fichte e Hegel, notabilizando-se por ser o extremo subjetivo dessa tradição através de uma purificação do idealismo alemão prescindindo de qualquer resquício de uma objetividade fora do próprio Ego e o seu cosmogônico ato de pensar. O subject e o object, na filosofia de Gentile, encontram-se fundidos dentro do ato de pensar que, superando as limitações de seu mestre Hegel, torna-se a única coisa real que pode conceder validade ontológica a tudo o mais que existe; a realidade, nesse sentido, é uma construção do ato de pensar humano, uma inescapável volição que não concede — e não pode conceder — o status de real para qualquer fenômeno exterior ao ato de pensar. O ciclo dialético que começa com o pensiero pensante e procede para o pensiero pensato, e por independer de qualquer outro fator ou força externa, se torna um ato completamente livre para se desenvolver a níveis intelectuais e morais cada vez mais altos, motivo pelo qual Gentile defendia que a vida possui um sentido eminentemente moral, isto é, é necessariamente movida por um ato volitivo que implica sempre a escolha e a renúncia; a obrigação moral se impõe à vida por sua própria natureza. Gentile, com essa intrincada operação, julgou ter concluído o lento processo de libertação do pensamento humano, não mais restrito e condicionado à ideia de que existe um mundo objetivo e natural fora da mente, mas que somente o próprio ato de pensar poderia ser o ponto de partida lógico para a validação ontológica da realidade, a coroação de séculos de pensamento idealista.

O parágrafo anterior foi um esboço grosseiro mas necessário do principal argumento da filosofia idealista de Gentile, que dificilmente pode ser encontrado de maneira tão direta em um ou dois livros do autor; pelo contrário, a frenética produção intelectual do filósofo até o fim da Primeira Guerra Mundial expeliu numerosos volumes que, além da pedagogia, se centram na evolução do seu argumento idealista, muitas vezes empregando um vocabulário complexo e idiossincrático que amiúde repele os diletantes curiosos e dificulta o trabalho de seus intérpretes. Assumidamente, a transição da pura filosofia do atualismo para as concepções sociológicas e políticas é a parte mais árdua e confusa de todo empreendimento sistematizador do pensamento do filósofo do fascismo, e parte do problema reside com o próprio Gentile, visto que não há um volume ou artigo que opera essa transição de uma maneira cristalina; pelo contrário, o que há é uma gigantesca produção literária de quase meio século na qual a filosofia, a sociologia, a política, a história e as opiniões pessoais do autor se misturam às contingências do momento. É somente no seu último livro, o Genesi e struttura della società de 1944, escrito às pressas e apenas meses antes de ser assassinado, que Gentile tentou explicar como a sua filosofia atualista serve de sustentáculo para suas concepções sociais e políticas, e até hoje não há um consenso se o autor realmente foi exitoso na empreitada. Isso fica claro ao se analisar o teor dos debates acerca da relação entre o atualismo e o fascismo que vem se alastrando há décadas, onde se pode encontrar, por exemplo, a opinião de Genaro Sasso, no seu Le due Italie di Giovanni Gentile, que alega que os princípios do atualismo são fundamentalmente incompatíveis com a prática política fascista, impossibilitando uma interpretação unificada da obra gentiliana. Outro luminar, Alessandro Amato, conclui que o Gentile fascista não necessariamente contrariou o Gentile atualista, mas o primeiro se utilizou das ambiguidades e imprecisões do segundo para avançar sua defesa do fascismo[5].

De qualquer forma, embora seja indiscutível que a relação de Giovanni Gentile com o fascismo tenha se dado mais no plano da justificativa sociológica e política do que propriamente epistemológica ou metafísica, justamente porque suas concepções sociopolíticas iam ao encontro dos pressupostos avançados pelo fascismo, não se pode negligenciar as origens dessas concepções nas elucubrações da filosofia atualista[6]. Com efeito, é somente por este motivo que foi necessário fazer a breve exposição do âmago filosófico do atualismo, possibilitando que se proceda com o esforço interpretativo de esclarecer os conceitos sociológicos de “indivíduo” e “liberdade” a partir de suas origens atualistas. Deve-se ainda dizer que a presente interpretação não intenciona seguir uma linha cronológica do desenvolvimento da sociopolítica de Gentile, mas toma como ponto de partida toda a sua obra para trazer à tona algumas categorias chaves do edifício político do filósofo.

Para Gentile, o indivíduo é, antes de tudo, um animal político e ético que encontra sua razão de ser por meio de suas relações sociais. É por meio da imanência de leis e categorias sociais que o indivíduo evolui e expressa toda a sua potencialidade 43 racional e ética que o caracteriza como um animal político: “O indivíduo humano não é um átomo. Imanente no conceito de indivíduo está o conceito de sociedade […] que faz do homem um ‘animal político”[7]. Gentile utiliza o termo “società in interiore homine” para designar esse “conceito de sociedade que está imanente no conceito de indivíduo”: é interiore homine porque se encontra dentro de todo indivíduo como, ao mesmo tempo, potencialidade e o pressuposto necessário para o que homem se torne um indivíduo racional, ético e atuante. Pode-se traçar as origens dessas posições na filosofia do atualismo. Em um artigo intitulado Concetti fondamentali dell’attualismo, destinado a esclarecer os mais básicos conceitos de sua filosofia ao público alemão, Gentile se volta para a natureza do indivíduo, que, segundo o filósofo, é “transcendente”, isto é, “o indivíduo não é concebível fora da relação em que o objeto da experiência está indissoluvelmente ligado ao sujeito da experiência”[8]. No atualismo, o Ego pensante não pode ser separado do objeto pensado, tornando-se apenas uma continuação de sua atividade no tempo, o que implica, na complicada transição da metafísica para a sociologia política, que o indivíduo empírico não pode ser considerado como uma individualidade absolutamente autônoma, mas apenas uma pequena fração de toda a experiência do real que, numa escala ampliada, engloba a sociedade e o Estado.

Ao se utilizar do expediente in interiore homine, Gentile está querendo afirmar que existe uma relação íntima e inquebrantável entre a individualidade e a universalidade da experiência da vida social, não sendo possível reduzi-la a qualquer um dos extremos da equação indivíduo versus sociedade/Estado. O peculiar idealismo atualista, que nega validade ontológica a uma realidade exterior ao Ego pensante, inevitavelmente implica uma imanência de tudo o que existe à sua origem comum no ato de pensar do próprio Ego. Como corolário desse raciocínio, todos os aspectos da vida social devem, necessariamente, ser considerados como expressões de uma mesma experiência cuja validade se encontra na sua imanente harmonia. James Wakefield, numa rota de pé e comentando uma intuição de A. G. Pesce, faz um relato que ajuda a esclarecer a intrincada transição do atualismo para o conceito sociológico de indivíduo:

Antonio Giovanni Pesce observou que no Sommario di pedagogia, Gentile identifica “duas maneiras distintas (ou aparentemente distintas) em que podemos entender o indivíduo”: como um indivíduo particular e um indivíduo universal. Que existem apenas aparentemente dois desses indivíduos não deve ser esquecido, no entanto. Ambos são um no ato de pensar. É essa ideia intrigante da relação entre meu pensamento (particular) e um mundo que persiste independentemente dele que mais tarde levaria Gentile ao conceito de diálogo interno ou “transcendental”, no qual esses dois elementos do indivíduo entram em jogo como o pensador constrói uma realidade que não é meramente o vacilar efêmero de uma consciência individual, autocontida, mas a interação da consciência com o mundo[9].

A distinção entre o “indivíduo particular” e o “indivíduo universal” não é uma diferenciação de natureza, mas apenas uma esquematização para melhor especificar a relação entre o indivíduo empírico e o resto do mundo social que o engloba. Por ser interiore homine, o indivíduo universal é imanente no indivíduo particular, residindo como potencialidade que, ao mesmo tempo, se expressa pela obediência às regras sociais, justificando a ligação que Gentile alcunha de transcendental.

Gentile e outros filósofos atualistas frequentemente se utilizavam de uma analogia com a linguagem para melhor explicar a relação do indivíduo particular com o indivíduo universal que resulta no caráter interiore homine da vida social. O ato de pensar e se expressar — com todos os seus pormenores como a avaliação, a confirmação, o julgamento e a conclusão — somente pode ser feito por meio da linguagem, que se caracteriza por ser um patrimônio cultural público e antiquíssimo que é desenvolvido e passado adiante de geração em geração, não existindo linguagens “privadas”. A comunicação bem-sucedida implica o uso comum da linguagem entre os agentes envolvidos, demonstrando o caráter intersubjetivo e coletivo dos critérios que governam as relações sociais, concluindo-se que, assim como a linguagem, as próprias opiniões dos indivíduos não poderiam ser autônomas e prescindíveis de um vasto arranjo de regras e prescrições normativas. A liberdade de expressão, nesse sentido, somente pode ser alcançada pela prévia absorção, compreensão e execução das regras da linguagem que pertencem à cultura histórica que se desenvolveu no seio da comunidade, tornando-as normas que residem no interior dos indivíduos, capazes de render “compreensíveis as formulações que de outra forma seriam arbitrárias e ininteligíveis”. Ao obedecer às regras que residem no seu interior, o “indivíduo teria alcançado uma liberdade de expressão significativa porque ele teria se ‘identificado’, se ‘tornado um’, com os padrões coletivos herdados que governam a fala efetiva”[10].

O patrimônio público da linguagem: a fala e o debate como pressupostos para a realização do “Eu” individual.

Tomando o exemplo da linguagem, Gentile deixa claro que, qualquer que seja realmente o sentido de ser um indivíduo, ele tem que necessariamente levar em consideração as regras sociais que residem no seu interior e, quer consciente ou inconscientemente, o impelem a evoluir suas faculdades intelectuais e morais. O verdadeiro indivíduo, portanto, não se limita ao átomo do indivíduo singular e empírico, mas à uma conjugação deste com as regras sociais que lhe possibilita, em última instância, se portar como um agente moral e racional. O indivíduo particular e o indivíduo universal, este encarnado nas regras sociais, se fundem para render possível a existência do verdadeiro indivíduo que, por ser um produto dessa equação, se caracteriza como um animal político no sentido de representar, nos seus atos individuais, a universalidade do mundo social que jaz in interiore homine.

Com essa concepção de indivíduo, Gentile prontamente se coloca contrário ao indivíduo da tradição liberal, que não passa de uma “ficção da imaginação baseada em uma analogia com compostos materiais cujas partes existem antes de sua composição”[11]. Do mesmo modo, a ideia de que possa ter havido um indivíduo completamente livre no estado de natureza anterior à constituição da sociedade civil é igualmente insensata; fora da sociedade o homem é inevitavelmente brutalizado e diminuído a condição de besta incapaz de desenvolver suas faculdades racionais e sociais mais básicas, ficando impossibilitado de potencializar seu valor maior como membro da comunidade transcendental que jaz no seu interior. O indivíduo não é um átomo isolado, mas um “agente espiritual […] essencialmente social que encontra a liberdade apenas ao se integrar com outros homens em um sistema governado por leis”[12]. Para Gentile não faz sentido falar de um indivíduo que seja incapaz de executar suas capacidades racionais e criativas, que só podem ser concebidas e concretizadas por meio da educação socializada realizada no seio da sociedade, e só podem ser concretizadas porque jazem dentro do próprio indivíduo devido a sua condição única de agente espiritual: é in interiore homine. Não há indivíduo separado da sociedade porque, para se tornar um indivíduo, deve-se herdar e desenvolver as características mais básicas do homem que só podem ser fornecidas por meio da própria sociedade. Consequentemente, a relação que fundamenta a sociedade é espiritual e transcendental no sentido que se manifesta como a essência da possibilidade de cada indivíduo se tornar um animal político, e não uma relação puramente material e de interesses pessoais: “Todos os homens são, no que diz respeito ao seu ser espiritual, um só homem, que tem um só interesse, em constante crescimento e desenvolvimento: o patrimônio da humanidade”[13].

Note-se que, na visão de Gentile, existe sim uma força inata ao indivíduo que, ao ser revelada e potencializada, possibilita o florescimento da verdadeira 46 humanidade, mas essa força não é nenhum direito natural inerente ao indivíduo per se, mas um patrimônio público de todos os indivíduos de todos os tempos da existência histórica da comunidade. O indivíduo, como Gentile frequentemente afirmava, não é um átomo em nenhum sentido significativo, quer socialmente, ontologicamente ou historicamente, mas o resultado de um complexo encadeamento histórico cujo conteúdo reside interiore homine e precisa ser potencializado pela educação socializada. Pode-se melhor compreender por que, para idealistas como Gentile, a ideia de um contrato social é tão insensata: é inconcebível a ideia de que, em algum momento histórico, os indivíduos decidiram sair do estado natureza através de um pacto no qual resultou a comunidade porque, para fazerem isso, eles necessitariam de uma linguagem refinada capaz de articular todos os pormenores éticos, práticos, políticos e econômicos de um inaudito arranjo social, atributo que, paradoxalmente, apenas foi desenvolvido justamente no seio da comunidade histórica.

Assim, o Eu verdadeiro do indivíduo não se encontra na sua esfera de interesses individuais, mas na realização das potencialidades interiore homine que possibilitam a vida social e que somente podem ser concretizadas por meio da conduta regulada pela lei. A sociedade transcendental é:

espiritual, não material (como quer o liberalismo clássico), porque não depende de indivíduos isolados, mas de “indivíduos universais” que se relacionam reciprocamente, numa síntese contínua de oposição e identidade. […] A sociedade não é o lugar da desordem sem sentido, da negação determinada ou do trabalho material, mas o lugar da supressão do particular em favor da construção de uma cooperação entre os indivíduos entendida como união do particular e do universal[14].

A referência à “supressão do particular” como aspecto essencial da sociedade revela o sentido que Gentile dá a sua concepção de liberdade. Como apenas é possível se tornar um indivíduo no seio da sociedade, somente é possível falar de liberdade dentro da própria sociedade. Aquela clássica concepção hobbesiana que trata a liberdade simplesmente como “ausência de interferência” e que se tornou “artigo de fé” [15], é, para Gentile, um completo absurdo, tão absurdo quanto conceber a entrada do indivíduo na sociedade civil por meio do contrato social como uma limitação ou resignação de sua liberdade. É no seio da sociedade que a liberdade pode ser construída, uma liberdade que supera a brutalidade e as limitações do estado de natureza como a violência e a dependência dos instintos mais animalescos. Nesse sentido, Rousseau já falava que a sociedade civil “permite ao homem ser verdadeiramente senhor de si mesmo; pois o impulso do mero apetite é escravidão, enquanto a obediência a uma lei autoprescrita é liberdade”[16] resultando que o verdadeiro Eu do indivíduo apenas surge por meio da sua “obediência a uma lei auto- prescrita”, que aos olhos de Gentile é interpretada como a sociedade interiore homine que reside como potencialidade dentro de cada indivíduo.

Para Gentile, a clássica teoria liberal da perda da liberdade após a figurada assinatura do contrato social é uma ficção sem sentido. A verdadeira liberdade começa apenas com o ingresso do indivíduo na sociedade.

Não é possível para Gentile conceber qualquer tipo de liberdade dita “negativa”, que se expressa pela sua ausência e inação, baseada em algum direito natural que coloca o indivíduo singular como um autônomo absoluto e inexpugnável; a liberdade é positiva no sentido que se realiza por meio de uma ação consciente e que se destina à evolução das potencialidades que residem interiore homine. Nas palavras do próprio Gentile, as ações do indivíduo verdadeiramente livre são aquelas capazes de levá-lo a “resistir e escapar à força passional avassaladora”, possibilitando-o entrar “para aquele mundo superior que é o mundo moral”[17]. As raízes atualistas dessa concepção de liberdade têm origem no princípio cosmogônico do ato de pensar do Ego: como no atualismo não há nenhuma realidade fora do pensiero pensante, é o ato de pensar que concede validade ontológica a tudo o mais, isto é, um ato é uma ação consciente que se caracteriza por, necessariamente, importar uma escolha entre possibilidades. Ao se transmutar para a seara volitiva do indivíduo, a vida se torna uma constante escolha entre afundar no limitado mundo míope dos interesses materiais imediatos ou elevar-se a padrões morais de conduta que potencializam as possibilidades interiore homine e, consequentemente, realizam aquela profunda ligação intersubjetiva que caracteriza a transcendentalidade da sociedade.

Na transposição do atualismo para a sociologia política, Gentile, na condução do seu argumento, impõem a interpretação de que o verdadeiro Eu do indivíduo não se confunde com o aspecto empírico dos interesses materiais que, embora relevantes na limitada medida das satisfações econômicas mais básicas, não podem satisfazer as exigências mais elevadas da existência em sociedade. O Eu real do indivíduo se encontra na condução harmoniosa de suas atividades conforme a lei moral intrínseca em seu ser, refletindo, no nível das atividades sociais, a comunhão da individualidade do indivíduo com a universalidade transcendente das relações intersubjetivas da sociedade. Um indivíduo que assim atua se encontra livre, pois não há como ser livre contra ou a despeito da sociedade sem incorrer na brutal limitação de suas capacidades racionais e morais ou até mesmo de sua vida. Essa concepção sintética entre os conceitos de indivíduo e liberdade é a base de toda a construção política de Gentile, como ele mesmo confirma: “Espero que a importância desse conceito não escape a ninguém, pois em minha opinião ele é a pedra angular do grande edifício da sociedade humana”[18].

Sendo a pedra angular da sociedade humana, o próximo passo é a transposição dos supracitados conceitos de indivíduo e liberdade para a função de legitimar as instituições sociais mais complexas como a sociedade civil e o Estado. Longe de se perder em abstrações, Gentile deixa claro que a união da individualidade com a universalidade se realiza na história dos povos, de modo que a “humanidade constitui um sistema de esferas concêntricas (família, escola, igreja, cidade, nação) onde a formação do homem passa pelos vínculos que ele estabelece, e a humanidade só adquire valor real dentro desse sistema”[19]. Assim, é essencial compreender que as instituições mais complexas encontram sua legitimação no processo dialético da individualidade com a universalidade, processo revelador da natureza absolutamente social do espírito humano que, se analisado apenas pelo aspecto empírico, resulta em partes atomizadas e estanques em conflitos esporádicos na busca dos seus interesses individuais. A afirmação de Gentile é mais categórica: “E a oposição perene e sempre renascida de interesses e aspirações e, em suma, de vontades, que nutre e mantém viva a unidade dialética e dinâmica de cada instituição social”[20]. A oposição dialética das vontades tende a ser resolvida na consubstanciação do princípio legitimador do Estado como representante máximo da universalidade: o Estado ético.

Continua na parte 2.

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REFERÊNCIAS:

[1] GREGOR, A. James. Giovanni Gentile: Philosopher of fascism. New Brunswick, Transaction Publishers, 2001, p. 1.

[2] Ibid.

[3] GREGOR, A. James. Giovanni Gentile and thought of Giuseppe Mazzini. In: CAVALLERA, Hervé A. Eventi e Studi: Scritti in onore di Hervé A. Cavallera, tomo II. [S. l.]: Pensa MultiMedia Editore, 2017, p. 60.

[4] GREGOR, 2001, p. 2–3.

[5] WAKEFIELD, James & HADDOCK, Bruce. Thinking thought: The philosophy of Giovanni Gentile. Cardiff, Bradley Society & Collingwood Society, 2015.

[6] GREGOR, A. J. L’ideologia del Fascismo. Il fondamento razionale del totalitarismo. Roma, Lulu, 2013, p. 258–259.

[7] GENTILE, Giovanni. Genesis and structure of society. Translated by H. S. Harris. University of Illinois press, Urbana and London, 1966, p. 98–103.

[8]GENTILE, Giovanni. Concetti fondamentali dell’attualismo em Introduzione alla filosofia. Firenze, Sansoni, 1952, p. 19.

[9] WAKEFIELD, 2015, p. 93.

[10] GREGOR, A. James. Mussolini Intellectuals. Fascist social and political thought. Princeton University Press, 2005, p. 115.

[11] GENTILE, 1966, p. 81.

[12] GREGOR, 2013, p. 262.

[13] GENTILE, Giovanni. I fondamenti della filosofia del diritto. Firenze, Sansoni Editrice, 1961, p. 75–76.

[14] ALTINI, Carlo. Gentile e lo Stato etico corporativo. Em Croce e Gentile. La cultura italiana e l’Europa. Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 2016, p. 564.

[15] SKINNER, Quentin. Hobbes and republican liberty. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 213.

[16] ROUSSEAU, Jean-Jacques. The social contract and the first and second discourses. New Haven, Yale University Press, 2002, p. 167.

[17] GENTILE, Giovanni. The reform of education. Authorized translation by Dino Bigongiari. New York, Harcourt, Brace and Company, 1922, p. 43–44.

[18] GENTILE, 1966, p. 103–104.

[19] MESSINA, Antonio. Il fondamento filosofico della teoria politica fascista. UNICUSANO — Università degli Studi Niccolo Cusano. Facoltà di scienze politiche e delle relazione internazionali, 2018, p. 36.

[20] GENTILE, 1961, p. 74.

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