Estado fascista vs Estado nazista: quais as diferenças?

Joao F. D. Eigen
9 min readDec 27, 2023

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Benito Mussolini, o Duce do Estado fascista e Adolf Hitler, o Führer do Estado nazista.

O “nazifascismo” é uma criação pragmática oriunda da Segunda Guerra Mundial, na qual o Fascismo e o Nazismo aliaram-se numa fatídica aliança que os destruiu. No entanto, como movimento ideologicamente unificado, o nazifascismo nunca existiu. Digo isso porque, no que se refere às suas origens, justificativas e intenções, ambos os regimes se diferenciaram substancialmente e nem sequer se viam como similares de maneira significativa.

Existem duas questões centrais para ambas as ideologias: o que significa ser um cidadão na comunidade política e o papel do Estado. Veremos suas diferenças.

FASCISMO

No fascismo, regime italiano liderado por Benito Mussolini, a construção ideológica foi relativamente tardia, iniciando-se por volta de 1925 após a consolidação dos poderes ditatoriais do Duce. Em 1929, após alguns anos sendo auxiliado pelo jurista Alfredo Rocco na construção de sua ditadura personalíssima, Mussolini percebeu a necessidade de formalizar o aspecto ideológico de seu regime e solicitou ao filósofo Giovanni Gentile, responsável pelas edições da prestigiosa Enciclopédia Italiana do Instituto Treccani, a escrita da parte que viria a ser a famosa Dottrina del Fascismo.

Nesse sentido, a Dottrina é a primeira tentativa de sistematização dos aspectos ideológicos essenciais do fascismo, e eis o que o livreto diz sobre o “Estado”:

Para o fascismo, o Estado é um absoluto, perante o qual indivíduos e grupos são relativos. Indivíduos e grupos são “pensáveis” como estão no Estado. O Estado tal como o fascismo o concebe e implementa é um fato espiritual e moral […]. É o Estado que, transcendendo o breve limite das vidas individuais, representa a consciência imanente da nação[1].

Entende-se que o Estado fascista se impõe como a entidade superior de razão que abrange todos os indivíduos e quaisquer outros grupos da sociedade civil, aspirando a tornar-se um Estado totalitário. É igualmente compreensível que o indivíduo, consequentemente, seja subjugado perante o Estado, mas como se configura a ideia do “indivíduo fascista” ou do “cidadão” da comunidade fascista?

Por ter sido parcialmente escrita por Giovanni Gentile como ghostwriter, a noção de “indivíduo” na Dottrina é profundamente influenciada por sua filosofia idealista. Nesse sentido, o indivíduo é, antes de tudo, um ser político e ético que encontra sua razão de ser mediante suas relações sociais. É por meio da imanência de leis e categorias sociais que o indivíduo evolui e expressa toda a sua potencialidade racional e ética que o caracteriza como um ser político: “O indivíduo humano não é um átomo. Imanente no conceito de indivíduo está o conceito de sociedade […] que faz do homem um ‘animal político’”[2]. Para filósofos idealistas como Gentile, o indivíduo não existe como um “átomo”, isto é, um ser autônomo que prescinde da sociedade ou possui quaisquer direitos naturais, mas é uma criação social da comunidade política.

O cientista político A. James Gregor sintetiza essa ideia:

Toda a filosofia política de Gentile foi caracterizada por uma concepção de vida coletiva que entendia os indivíduos a serem fundidos em uma imanência (um “eu transcendental”) que se manifesta em uma continuidade de cultura, economia, política e história — uma consciência transcendental compartilhada. Os indivíduos empíricos eram apenas distinções transitórias dentro de uma realidade política transcendental inclusiva[3].

Consequentemente, essa concepção idealista de “indivíduo” igualmente aparece na Dottrina:

O homem do fascismo é um indivíduo que é uma nação e uma pátria, uma lei moral que une gerações de indivíduos […] com uma vontade objetiva que transcende o indivíduo particular e o eleva a um membro consciente de uma sociedade espiritual. […] o fascismo é uma concepção histórica, na qual o homem não é o que é senão em função do processo espiritual para o qual contribui, na família e no grupo social, na nação e na história, em que todas as nações colaboram[4].

O “novo homem fascista”, pronto para trabalhar e se sacrificar pela nação e o Estado.

O “homem do fascismo” é uma construção, ou seja, torna-se fascista aquele que reflete a sociedade espiritual de sua nação. Para tornar-se um fascista, é preciso reconhecer, aceitar e assimilar os aspectos morais e culturais da nação: falar a língua, conhecer a história da pátria, trabalhar e sacrificar-se por ela. Na Dottrina, há apenas uma referência à característica biológica da raça:

De todos aqueles que da natureza e da história, etnicamente, extraem a razão para formar uma nação, começaram na mesma linha de desenvolvimento e formação espiritual, como uma só consciência e uma só vontade. Não uma raça, nem uma região geograficamente individualizada, mas uma linhagem que se perpetua historicamente, uma multidão unificada por uma ideia, que é a vontade de existir e de poder: autoconsciência, personalidade[5].

Tanto Mussolini quanto Gentile deixam claro que o que caracteriza o indivíduo fascista, e seu principal aspecto como cidadão da comunidade, é o sentimento de viver conscientemente ligado às necessidades da nação e, consequentemente, do Estado. O aspecto puramente biológico da raça é rejeitado como desimportante, dando prioridade à linhagem da coletividade unida por “uma ideia, que é a vontade de existir”.

É importante ter a Dottrina como referência porque ela foi escrita entre 1929 e 1930, antes da infeliz união militar entre Fascismo e Nazismo. Mas por que isso é tão relevante? Porque, a partir de 1938, Hitler começou a pressionar Mussolini a expurgar judeus do Partido Nacional Fascista e a exigir uma doutrina racial fascista. Embora tenham surgido tais doutrinas raciais fascistas, elas nunca se alinharam completamente com os ideais fascistas promulgados até 1938, razão pela qual não são confiáveis para estabelecer com precisão as diferenças ideológicas entre os dois regimes[6].

NACIONAL SOCIALISMO

Antes de adentrarmos o aspecto do Estado e do indivíduo no Nazismo, deve-se explicar uma peculiaridade desta ideologia: ela nunca foi plenamente sistematizada. Sim, mesmo com os dois livros de Hitler, o regime, durante seus 12 anos no poder, não conseguiu esquematizar e impor uma única doutrina ideológica caracteristicamente “nazista”. Além de Hitler, houve alguns ideólogos importantes como Alfred Rosenberg, Richard Darré, Joseph Goebbels, Hans Günther, entre outros, mas suas visões eram, amiúde, conflitantes e irreconciliáveis, deixando a questão “o que é o Nazismo?” muito dificultosa de responder. Mas para os fins deste escrito, dar-se-á foco ao pensamento de Hitler e em alguns aspectos gerais da ideologia que aparentemente nutriam aceitação mais geral dentro do regime.

Primeiramente, no Mein Kampf, Hitler deixa claro que a nacionalidade nazista é baseada numa concepção racial — no “sangue” — , distanciando-se de qualquer aspecto cultural como a linguagem:

Nacionalidade, ou melhor, raça, não está na linguagem, mas no sangue. Só seria possível falar em germanização se esse processo conseguisse alterar o sangue do inferior. Mas isso é evidentemente impossível. Uma mistura de sangue poderia produzir uma mudança, mas essa mudança significaria um declínio na qualidade da raça superior[7].

Para o Nazismo, é essencial que o indivíduo da comunidade seja caracterizado por seu aspecto racial em vez do cultural, porque, continuando sua visão de mundo, Hitler afirma que:

Para resumir, as raízes mais profundas dessas visões não conseguem compreender que o verdadeiro poder que cria cultura e substância de caráter depende de elementos raciais e que a tarefa primordial do Estado é a preservação e melhoria da raça. É a raça que constitui o elemento essencial para todo desenvolvimento cultural humano[8].

O indivíduo ariano é socializado para os fins da coletividade racial.

Se, na visão nazista, é o elemento racial o responsável pela criação, manutenção e propagação da cultura superior, então a preservação da raça para seu sucesso na luta pela existência torna-se o aspecto crucial que não apenas distingue quem é membro da comunidade ariana, mas que também justifica a existência e a função do próprio Estado:

Podemos concluir que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio para um fim. O Estado é indispensável quando se trata de formar uma civilização humana superior, mas o Estado não é a causa dessa civilização superior. A civilização depende exclusivamente da existência de uma raça capaz de criar essa cultura. Pode haver centenas de estados na Terra que são excelentes modelos de governo, mas se o portador ariano da civilização desaparecesse, nenhuma cultura poderia continuar a existir, pelo menos não uma cultura que correspondesse ao nível intelectual dos povos avançados de hoje[9].

O Estado é, para Hitler e, consequentemente, uma boa parte do Nazismo, apenas um meio para o fim superior mais importante de todos: a preservação da raça — do sangue ariano. Assim, antes de qualquer aspecto cultural ou linguístico de nacionalidade, é o aspecto puramente racial que determina a entrada e permanência do indivíduo como cidadão da comunidade ariana. O Estado existe como, primeiramente, um instrumento para a sobrevivência da raça ariana.

Essas são as opiniões do Hitler dos anos 20, e nota-se que no Mein Kampf não há um esforço significativo para caracterizar o que constitui um “ariano”, ou o que o singulariza como o único criador de uma cultura e civilização. Esse problema acerca das definições das características da “raça superior” foi uma constante durante todo o período de existência do Nazismo, tanto na sua fase de movimento quanto nos seus anos no poder:

Portanto, há evidências de que, nesse período [anos 20], a teoria racial do Nacional Socialismo era mais do que um tanto vaga e indeterminada, pelo menos no que diz respeito ao problema de como se identificava a raça selecionada. Em nenhum lugar da literatura inicial do Movimento, a designação “nórdico” figura com destaque, muito menos nas declarações públicas de Hitler[10].

A noção de “ariano” foi popular durante os anos 20 justamente por causa da influência de Hitler, e mesmo com a publicação do Mito do Século XX de Rosenberg — que se diferencia bastante do aspecto puramente biológico de Hitler — , a mudança de nomenclatura apenas ocorreu no começo dos anos 30:

Mesmo no final desse primeiro período, em 1930, quando apareceu o “Mythos” de Rosenberg, seu uso da palavra “nórdico” era estritamente qualificado por esta afirmação: “…nada seria mais superficial do que medir o valor de um homem pela sua aparência física (com uma régua e índices cefálicos). Uma medida muito mais precisa de valor é o comportamento.”

Mas com o advento dos anos trinta, entramos em uma nova e altamente crítica fase de desenvolvimento teórico. Nesse momento, bastante independentemente do Movimento Nacional Socialista, as obras de Hans F.K. Günther haviam alcançado ampla circulação e popularidade na Alemanha[11].

A partir dos anos 30, a influência dos trabalhos do “Papa da Raça” — Rassenpapst — Hans Günther começou a refletir nas especulações ideológicas do Nazismo, especialmente porque Günther não utilizava o termo “ariano”, mas “nórdico”, ou “raças nórdicas”, numa perspectiva mais biologicamente “científica” do que Hitler. Na verdade, todo o período do início dos anos 30 até o estopim da guerra foi marcado por uma profusão confusa de debates e argumentos acerca da certeza científica da raça “ariana”, “nórdica” ou “superior”, termos intercambiáveis que foram utilizados na pesquisa de várias características físicas e “mentais” entre as diversas raças e etnias, sem nenhum resultado profícuo para o estabelecimento de uma ideologia nazista sistemática e plausível.

Hans F. K. Günther, o “papa da raça”.

O ponto a ser destacado é que, ao longo de toda a sua existência, o Nazismo, embora não tenha conseguido se estabelecer como uma ideologia sistemática, teve como ideia central para seus objetivos políticos a noção biológica de “raça”, cujas características supostamente comprovariam a superioridade do “ariano” ou do “nórdico”.

O indivíduo e a cidadania na comunidade Nazista estavam inextricavelmente ligados à noção biológica de raça. Consequentemente, o Estado não poderia se tornar o ente de razão que coliga as principais características da comunidade e as representa numa “vontade geral” de cunho espiritual, mas teve que se tornar um mero instrumento a serviço do importante dado racial.

CONCLUSÃO

O fascismo baseava-se na ideia de um Estado totalitário como representante da vontade geral das características “espirituais” da comunidade: a cultura, a língua, a moral, e a vontade de trabalho e sacrifício, rejeitando qualquer dado biológico como relevante para que o indivíduo pudesse se tornar um fascista.

Já o Nazismo priorizou, mesmo que de maneira confusa e inconsistente, o dado racial-biológico como a característica fundamental da cidadania da comunidade, transformando o Estado, como dizia Hitler, apenas num instrumento para a preservação da tão estimada raça “ariana”, “nórdica” ou “superior”.

Conclui-se, portanto, que o “nazifascismo”, concebido como uma única e consistente ideologia, nunca existiu.

Propaganda de guerra nazifascista: dois povos, uma guerra.

REFERÊNCIAS

[1] MUSSOLINI, Benito. Opera Omnia, Vol. XXXIV. Firenze, La Fenice, 1961, p. 129.

[2] GENTILE, Giovanni. Genesis and structure of society. Translated by H. S. Harris. Urbana and London: University of Illinois press, 1966, p. 98–103.

[3] GREGOR, A. James. Giovanni Gentile: Philosopher of fascism. New Brunswick: Transaction Publishers, 2001, p. 30.

[4] MUSSOLINI, 1961, p. 130.

[5] Ibid, p. 120.

[6] Sobre as teorias raciais do fascismo, consulte: A. James Gregor. L’Ideologia del fascismo. Il fondamento razionale del totalitarismo. Roma, Lulu, 2013. Especialmente, o capítulo VI — Ultimi sviluppi dottrinari: il razzismo.

[7] HITLER, Adolf. Mein Kampf. München, Zentralverlag der NSDAP, 1943. p. 428–429.

[8] Ibid., p. 430.

[9] Ibid., p. 431.

[10] GREGOR, A. James. National Socialism and Race. Steven Books, 2009. p. 3.

[11] Ibid.

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