RESENHA | O Veredicto (ou O Julgamento) — Franz Kafka

João Gabriel
5 min readSep 20, 2022

Inicio as resenhas de Kafka, meu escritor favorito, com um conto que li há alguns dias: O Veredicto.

Conto/novela curto(a), com poucas páginas, O Veredicto é considerado a obra que impeliu e formou o estilo de Kafka, demonstrando seu tema central de muitas obras (como Carta Ao Pai, e também interpretações de O Processo): o embate e conflito entre Pai e Filho.

A obra nos apresenta Georg Bendemann, um homem que está finalmente noivo de Frieda Brandenfeld, e que mantém uma troca de cartas no mínimo estranha com um amigo distante. Seu pai vive junto dele, na mesma casa.

Também nos é apresentado uma situação triste: a mãe de Georg faleceu relativamente a pouco tempo, e foi após esse acontecimento que seu pai também ficou adoecido, quase senil (como pensa o protagonista).

Grande parte do texto mostra uma certa dúvida e preocupação do protagonista em relação ao amigo distante. Georg possui medo de fazer inveja ao amigo, de deixá-lo em situações constrangedoras, e por isso receia avisá-lo do noivado. As duas primeiras páginas parecem ser quase um monólogo interior, um discurso e reflexão sobre essa amizade.

Essa obra é realmente muito boa, mesmo sendo um dos primeiros de Kafka. Como todo texto que li dele, possui o caráter fantástico e absurdo muito presente e, claro, o fator surpresa e “chocante.” Nunca esperamos o que acontece, de fato, nas obras de Kafka.

Nesse, particularmente, o sentimento não seria de impotência, alienação e fraqueza, como em O Processo. Mas sim de um toque chocante, um certo espanto com o final. Durante todo o texto, Kafka constrói um clima e uma narrativa que fica cada vez mais tensa e claustrofóbica, sobretudo na cena onde Georg é confrontado pela indignação e súbita raiva de seu pai. Isso culmina n’O Veredicto que o Pai proclama para o filho, que obedece como em um encanto.

É visto durante toda a novela que o Pai é uma figura imponente, como um “supremo senhor" que dita os acontecimentos da vida do filho e que rejeita a omissão. E, como sempre, a culpa incessante de viver recai sobre o filho, e a expiação é apenas uma: cessar de existir.

Em outros casos, o sofrimento é o modo de extravasar a culpa. Essa maneira de expressão kafkiana pode ser lida como, de certo modo, autobiográfica: sabemos que o pai de Kafka era uma figura nada simpática. E é justamente por isso que diversas obras dele tem um teor biográfico. Como é desse feitio, essas obras foram bem tocadas pela psicanálise. E em Kafka, é turva a linha de ultrapassagem entre o inconsciente do autor e a ficcionalidade.

Um último ponto a se abordar: o misterioso amigo distante. No texto, vimos que Georg não contou ao seu amigo sobre o noivado, e fica apreensivo ao tentar escrever uma carta reveladora. Sendo assim, pede ajuda ao seu Pai, que durante a conversa se zanga e dita o derradeiro final. O Pai diz não saber de nenhuma visita desse amigo; diz que esse tal amigo não existe, confrontando Georg. Mas, em trechos depois, diz:

“É claro que conheço seu amigo. Ele seria um filho na medida do meu coração.” KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka, pg 28, Clássicos Penguin.

Ora, aqui temos uma contradição. O Pai diz que não conhece esse amigo, mas logo depois diz que o próprio “seria um filho”. Dessa forma, tenho apenas uma interpretação: realmente não há amigo. Georg, inconsciente ou consciente, engana a todos e a si mesmo dizendo isso, quando na verdade esse amigo seria o próprio Pai. Ele esconde as informações importantes de sua vida do seu Pai; não gosta de revelar essas coisas ao ser que o intimida. Tem receio de contar, e de conversar diretamente, como o próprio narrador diz:

“Finalmente, […] do seu quarto, atravessando um pequeno corredor escuro, entrou no quarto do pai, ao qual já não ia fazia meses.”

Moravam na mesma casa, e mesmo assim Georg não entrava no quarto havia meses. A desculpa que fosse, não justificaria. Acredito ser uma boa indicação do que interpreto. Esse “amigo distante” é seu próprio Pai, pois não o visita mais. Para ele, o quarto do Pai é tão frio e escuro quanto a Rússia em que o fictício amigo vive. O comércio desse amigo, em prejuízos, é o próprio comércio d’O Pai, após a morte da esposa (e mãe) de Georg. E O Pai sabe disso, conhece seu filho.

Isso culmina no que já sabemos: a morte. O Pai, após o discurso enfurecido, condena o próprio filho por traição (mais uma vez, indícios de minha interpretação) à pena de afogamento. Então, Georg, até muito calmo, sai do prédio e anda até a ponte do outro lado da rua. Sobe na borda, e com um último brado, se joga:

“Queridos pais, eu sempre os amei! — e se deixou cair.”

E a indiferença, presente em Kafka, se mostra mais uma vez. Logo após a frase acima, o narrador descreve uma cena interiormente agonizante:

“Nesse momento, o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável.”

Nunca o mundo se importará. Não importa quantas campanhas, quantos cartazes, quantos ativistas bradem: o mundo nunca se importará. Pelo menos O Mundo, não. As pessoas transcendem isso, se importam uma com as outras (algumas). Mas a Fortuna, o Destino, o Mundo, a Vida, a Vida Real, chame do que quiser, não liga. É indiferente. Mas não pense que isso é ruim, pois não é. É o que é. Podemos seguir com Camus e nos revoltar contra esse absurdo. Ou podemos seguir com os estoicos e descobrir nosso lugar no mundo, e sermos felizes assim. Seja como for, Kafka é mestre e gênio em nos mostrar a realidade como ela mesma. Por isso é indispensável. Literatura em sua forma pura.

E é nesses trechos que o fantástico aflora e transborda sem parar, como o próprio trânsito após o suicídio (ou punição) de Georg. Um Pai tendo direito de vida e morte sobre o filho. Parece magia, mas pode ser mais que isso. Em uma interpretação breve, quase popular, podemos dizer que o filho dá essa figura ao Pai. Ele dá esse poder ao Pai sobre a própria vida por conta de sua visão dele. Encara o Pai como uma figura suprema, como elencado nessa resenha. Também aqui se mostra tênue a fronteira entre inconsciente do autor e a obra.

Resumo

Conto pungente, impactante e importante na leitura de Kafka. Sabemos todos que ele foi um gênio, e essa novela curta ilustra muito bem toda sua habilidade nesse gênero e na ficção. Recomendo a todos que leiam, e que se reflita sobre. Há possibilidades imensas nisso.

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João Gabriel

Conteúdo literário. Geralmente resenhas. Tentando quebrar a barreira da literatura clássica para o povo.