“Foi um blindado, mãe, ele não me viu com a roupa de escola?” a cidadania frágil de pessoas negras.

João Víctor Martins Saraiva
6 min readJun 24, 2018

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Sim, Marcos. Era para o seu uniforme ter sido sua proteção.

Há vidas frágeis. Outras que não importam. A de Marcos foi uma delas.

A mais forte dose de angústia e tristeza transpassa a quem lê a pergunta de Marcos Vinícius antes de partir. Não é uma tristeza que nos abate gratuitamente. Há algo nessa angústia que diz muito sobre o dia-a-dia da maior parte da população brasileira. Para Marcos Vinicius e para pessoas negras, a roupa de escola é o que garantiria sua possibilidade de ser visto como um cidadão. A angústia de sua pergunta vem mergulhada na dúvida sobre essa sociedade que não seguiu a sua parte nesse nosso pacto social que o deixaria ir à escola mesmo vivendo numa sociedade marcada pela violência.

Marcos, que não conseguiu chegar até o ensino médio, sabia muito mais de sociologia do que muitos professores. No fundo ele sabia que a leitura social de sua aparência física poderia marca-lo como alguém que a sociedade vê que pode ser eliminado. A promessa da sociedade de não atacar se seguir na linha não foi cumprida. Mas é porque não te viram por completo, Marcos. Não viram sua roupa de escola. Não viram sua família. Não conheciam os motivos pelos quais você sorria. Eles costumam não ver. Dizem que não veem cor de pele, mas também não veem que era só uma pipoca ou uma garrafa de Pinho Sol, ou se era um macaco hidráulico.

Eles têm falhado em seguir o pacto social que garante nossa cidadania, Marcos. Pessoas negras sabem o que é, desde a pré-adolescência,andar sempre com a identidade por conta de uma possível abordagem policial. “Até para ir ali na farmácia”, diria minha mãe. Sabem o que era não ficar fora de casa até tarde não simplesmente por medo de bandidos, mas para não ser confundido com eles. Sabem o que é não olhar demais para as pessoas para não ameaçá-las. Sabem que não é para responder ou ser mal-educado porque as pessoas já esperariam o pior de você. Sabem que é sempre melhor preferir não ter razão do que discutir e correr risco de ser prejudicado lá na frente. Sabem que é melhor ser sempre mais educado que os demais, só para não ser visto como errado. Sabem que não pode andar com pessoas que fazem bagunça demais porque você já tem certeza de quem vai colher as consequências. Sabem que entre a casa e a escola, entre a escola e a casa, o caminho a percorrer pode ter muito mais nuances, e que é sempre hora de estar preparado para elas. Sabem que não é para fazer movimentos bruscos no ônibus ou na rua. Sabem que devem andar bem vestidos e com cabelo bem cortado para não ser confundido. “Bandido não carrega mochila”, disse sua mãe. Era só seguir isso que o pacto social manteria-se da mesma maneira. O erro não foi seu, Marcos.

É, Marcos… era para o uniforme ter sido sua fortaleza. Era para ele te permitir andar de casa até a escola. Era para te deixar ser alguém à quem o mundo devota alguma consideração. A sociedade não te viu por completo, Marcos. Não viu que você era mais uma criança da periferia que só de ir à escola já é resistência. A gente tem falhado Marcos. A gente tem de falar mais, tem de gritar, tem de abalar toda e qualquer estrutura que permite que essa seja a maneira pela qual ainda sejamos lidos. Tá muito difícil, Marcos, e não somos poucos querendo mudar. É que é forte demais.

Ônibus queimado em protesto pela morte de Marcos. Foto: Marcos de Paula

O racismo brasileiro é cruel. Se esconde à plena vista. O racismo no Brasil tem muita concretude na maneira pela qual ela atravessa a vida de pessoas negras, mas é muito fluido na maneira pela qual as instituições e a sociedade afirmam não conhecê-lo. Ele dói mais por ser muito óbvio àqueles que o sofrem, que o sentem, que o identificam como se fosse uma companhia diária dessas e desses. Entretanto, ele é muito evasivo para aqueles que por ele não sofrem. Evasivo ao ponto de ser cotidianamente praticado, mas nunca nem mesmo ser identificado por quem o põe o pratica. Evasivo ao ponto de se diluir e deixar essência em falas, comportamentos, olhares, mas parecer nunca estar lá. O racismo no Brasil é como admitir que você não vê problema em bater violentamente com a mão fechada em alguém repetidamente, mas abominar com toda a força uma pessoa que profere um soco em outra. É assim , passivo-agressivo em sua essência, mesmo quando se trata da violência direta.

Não tem como largar esse peso. Não é algo que se escolhe ser em um dia e em outro não ser. Não é algo que se deixar de falar, ele vai deixar de acontecer. Nas nossas terras, o racismo tem essa característica de o governo nunca ter nos deixado falar sobre ele. E é assim que ele continua existindo e atravessando vidas, sonhos e instituições.

Malditas pessoas que só enxergaram em você a periferia e a cor da pele. Malditas pessoas que dizem não ver ou que não é necessário ver a cor da pele. A culpa é também de quem se entrega ao privilégio de não se indignar. De achar que a raça é só coincidência, mesmo que seja tão óbvio, tão na cara, né, Marcos? As pessoas escolhem não ver porque para muitas delas não faz diferença. A polícia não está sozinha na sociedade. A polícia age se molda por ela. A polícia enxergou Marcos da mesma forma que pessoas que atravessariam para o outro lado ao o verem na rua, enxergam. Não é só a polícia, Marcos.

Marcos Vinícus.

Por isso que é uma sociologia que só quem vive, sabe. É aquilo que dizemos sobre o genocídio da população negra e periférica que nos diz que existem 73% mais negros vitimados por homicídios do que brancos. Que em relação aos jovens, o índice sobe para 168,6%. Que, a cada assassinato de um jovem branco, morrem 2,7 jovens negros. Desses dados eu acho que você não sabia porque normalmente preferem ignorar, mas o cotidiano já havia te contado. Tudo que é visto nas periferias mostram que na realidade esses números pouco importa. É só ver pra perceber. Números só atraem os adultos, né? Mas só os números das vidas que são vistas como importantes.

São vidas que, mesmo ceifadas, buscam difamar e encontrar motivos para o erro deles. Foi assim com Marcos. Foi assim com Marielle. Foi assim com Amarildo.

Para todas e todos que lutam conosco, a importância nunca deixou de existir. Será sempre memória. Memória Eternizada. Vai com Deus, Marcos.

Fotografia: Marcos de Paula

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João Víctor Martins Saraiva

Mestre em Relações Internacionais (PUC-MG). Instagram: @joaovmsaraiva /@intelectualidade negra Facebook: https://www.facebook.com/joaovmsaraiva