A paixão pela criação de RPGs (e pela teoria por trás destes jogos)

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
6 min readOct 23, 2014

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Quando gostamos de algo ao ponto de deixarmos de pensar só em nós próprios.

No ano passado, inspirado pela paixão do pessoal no grupo Indie RPG, escrevi lá um manifesto com 7 frases-chave. As duas primeiras são:

1. ADORO JOGAR TODO O TIPO DE JOGOS E COM TODOS ELES APRENDO ALGUMA COISA. Jogos curtos e longos, cooperativos e competitivos, com dados, cartas, marcadores, miniaturas, botões, tabuleiros, com muita ou pouca gente, na mesa, no ecrã ou na nossa imaginação. Jogo sessões de RPG numa tarde ou durante anos, com velhos ou novos amigos, a partir de livros do passado milénio ou de versões prévias de um novo PDF.

2. E EU QUERO CRIAR JOGOS. Mais do que dar conselhos, construir cenários ou partilhar as minhas experiências, eu desejo assumir a responsabilidade de criar algo para alguém. Quero escrever instruções, dar receitas, indicar passos a seguir. Não só dicas ou sugestões. Quero dar às pessoas algo que possam mesmo jogar. Quero criar RPGs.

Pensei que este sentimento fosse raro, mas este manifesto acabou por ser reconhecido por muitas pessoas e assim ficou pendurado no topo da página do grupo. Não é, no entanto, uma perspectiva comum entre roleplayers. É habitual, por exemplo, usar-se um certo tipo de jogo para se dizer mal de outro, do género “isto é um boardgame” ou, supostamente pior, “isto é um MMO”. É também comum recorrer-se à expressão “não é um RPG” para o mesmo efeito. Para erguer barreiras, no fundo, para levantar muros em volta de uma experiência pessoal que se receia estar a ser posta em causa.

Arte de Aaron McConnel para 13th Age

Da mesma maneira, também é comum alguém colar a sua identidade como roleplayer a um determinado RPG e, nesse caso, tudo o que se diga em relação a esse jogo é interpretado como um comentário dirigido à sua pessoa. Também funciona ao contrário, ou seja, qualquer ideia que não encaixe na experiência pessoal que alguém tem é refutada por frases como “nós não jogamos assim”, “depende do grupo”, “isso são maus jogadores” ou “quando eu sou DM isso não acontece”.

Mas há uma paixão pelos RPGs que não só vai para além das nossas conveniências pessoais, como para lá da própria etiqueta comercial “RPG”. Quem gosta de jogos, de tudo o que é jogo, vê os RPGs como parte de um contínuo que está sempre em evolução. Erguer barreiras é contraprodutivo, porque essas fronteiras são pontos de contacto que interessa explorar. Quem ama os RPGs não os fecha entre quatro paredes, pelo contrário, quer saber de onde é que vêm e para onde é que vão.

Quem gosta de roleplay, reconhece que o conceito existe em muitos diferentes domínios e não fecha a porta aquilo que pode aprender com eles. Negócios, psicologia, educação, teatro de improvisação, jogos de guerra, entre as mais diversas abordagens interessa estabelecer contrastes e comparações. E se gosta de RPGs também reconhece as suas questões narrativas e quer saber como é que elas são tratadas na literatura, comics, teatro, cinema ou séries de televisão. Quem tem esta paixão, também vê o RPG como um jogo e percebe que noutros jogos há desafios semelhantes e soluções que podem ser aproveitadas. É a primeira frase do manifesto.

Jogos curtos e longos, cooperativos e competitivos, com dados, cartas, marcadores, miniaturas, botões, tabuleiros, com muita ou pouca gente, na mesa, no ecrã ou na nossa imaginação.

Primeiro, o apaixonado pelos RPGs faz tudo isto para seu próprio benefício, para a sua personagem, campanha ou grupo. Depois, se esta paixão não ficar por aqui, começa a ver para lá da sua ficha, do seu escudo, da sua mesa, da sua cidade, e começa a entrar no território da segunda frase do manifesto. Não quer só dizer “nós no nosso grupo jogamos assim durante anos, peguem lá o nosso jogo”. Não quer escrever o milionésimo livro ou blogue com conselhos e dicas genéricas.

Arte de Greg & Tim Hildebrant para Mage: Sorcerer’s Crusade

Quer fazer novos RPGs para novos roleplayers, quer criar jogos como se fossem cartas de amor ao RPG. Não se resigna a que as pessoas só possam aprender a jogar com uma tradição oral que se vai perdendo nem aceita que estejamos sempre a tentar vender os mesmos livros às mesmas pessoas. Não assume que criar RPGs se reduza a fazer arte mais bonita ou ficção mais bem escrita para algo que as pessoas supostamente já sabem jogar. Também não acredita que exista o RPG perfeito, aquele que vai dar para tudo, resolver tudo e pôr fim a todas as dúvidas.

À medida que saímos do outro lado deste túnel do amor e nos tornamos menos possessivos pelo RPG, há questões que se vão levantando na nossa mente e nunca há respostas definitivas, mas as nossas perguntas vão evoluindo e ficando cada vez mais precisas, mais importantes e mais difíceis.

Por exemplo: «O que é ser um bom mestre-jogo? Bom em relação a quê? Quais são as funções que ele desempenha? Têm de ser iguais em todos os RPGs? Podem ser divididas ente várias pessoas? O que é que a distribuição dessas funções diz acerca deste ou daquele RPG? De que modo pode reforçar os seus temas ou ir contra eles? Qual é o tema mais importante neste RPG e como é que estas funções se alinham com ele?»

Outro exemplo: «Quando é que uma cena deve começar e acabar? O que é uma cena? Terá a ver com a passagem de tempo? Interessa-me simular o tempo que passa ao minuto ou será uma coisa mais narrativa? O que é que eu quero dizer por “narrativa” neste caso? Será que a passagem de tempo só se deve fazer sentir quando for interessante? Mas o que é interessante para o meu jogo? E como é que preservo a verosimilhança do tempo que é suposto passar? Poderei deixar de ter cenas e jogar num contínuo de situações? Há alguma estrutura que a sessão deva ter? Se houver, qual é a que melhor serve a este RPG em específico?”

Mais do que dar conselhos, construir cenários ou partilhar as minhas experiências, eu desejo assumir a responsabilidade de criar algo para alguém.

Não há respostas definitivas, mas naturalmente vamos estabelecendo alguns pressupostos que nos ajudam a partir para outras perguntas. Quando nos perguntamos como ou porque é que as pessoas jogam RPGs, podemos não chegar a nenhuma conclusão, mas desenvolvemos a nossa capacidade para analisar e isolar certos conceitos que depois podemos usar para pensarmos em novas perguntas. E sim, como será de esperar, de cada vez que achamos que temos uma resposta, descobrimos sempre mais perguntas. Isto é a teoria do RPG.

Neste ciclo, os jogos que criarmos não são nada mais que uma possível resposta que por sua vez levanta novas perguntas. E, apesar de nenhuma resposta ser perfeita, procuramos escolher as melhores para cada jogo consoante o seu propósito, os seus temas e os requisitos que tiver que cumprir. Os RPGs que criarmos são assim o reflexo da nossa mais ou menos profunda relação com eles, da forma como os olhamos e do que vemos através deles.

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

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