Por que Jô Soares é historicamente relevante?

Johan Behr
4 min readAug 15, 2022

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De vez em quando, a gente descobre que os imortais também morrem. Às vezes, um ou outro nos lembra de que a vida acaba, mas continua. Veja, existem muitas pessoas que são, sim, importantes. São sim, incríveis, estupendas, dessas que amamos do fundo do nosso ser. Mas poucas são revolucionárias. Alguns são lembrados porque eram bons no que faziam. Outras, ora, definem o que é ser bom no que se faz. Jô Soares foi um desses. Definiu os parâmetros essenciais de um programa de entrevista no Brasil. Não há um talk show nessas terras que não carregue Jô.

O talk show — meu gênero de programa televisivo favorito — já se consolidava bem nos Estados Unidos, iniciando sua existência no começo dos anos 50 com Joe Franklin. Quem carimbou o programa de entrevistas como um dos pilares do entretenimento popular foi Johnny Carson, host do “The Tonight Show Starring Johnny Carson”. Lançou os maiores comediantes de seu país com os quadros de stand-up, algo novo à época, e ficou no ar por 30 anos, de 1962 a 1992. Foi mentor de um dos maiores entrevistadores estadunidenses, David Letterman, que superou o mestre em tempo de carreira, com 33 anos hosteando programas como o “Late Night with David Letterman” e o de nome muito diferente, “Late Show with David Letterman”, de 1982 a 2015. Seu programa foi substituído pelo de Stephen Colbert, e o estilo é replicado no país por grandes apresentadores, como James Corden, Jimmy Fallon, Jimmy Kimmel e afins.

Tudo isso tem grande impacto na imagem de Jô Soares, que à época de estreia de seu primeiro programa, o “Jô Soares Onze e Meia”, já era um comediante importante no Brasil. Aqui, o gênero tem como pioneiro o artista Silveira Sampaio, com o programa de TV “Bate-Papo com Silveira Sampaio”, do início da década de 50, em que ele telefonava para políticos e mantinha conversas engraçadas. No Brasil, então, o formato nasce já da crítica política, e Jô manteve isso. Bebeu da fonte. A forma talk show de Jô se manteve o mesmo desde a estreia, em 1988, e sobreviveu a mudanças de canal e de nome, chegando ao Programa do Jô, que terminou em 2016. Pode deixar que eu te poupo o trabalho: foram 28 anos de entrevistas, completando 14.426 delas. Agora, leitor, perceba a diferença: enquanto lá em terras norte-americanas, os apresentadores mais antigos passaram por duas, três gerações até chegar à chuva de talk shows, aqui só tivemos, depois de introduzidos por Sampaio, uma geração. Uma pessoa. Até pouco antes de sua aposentadoria, não existia talk show relevante ou abrangente como o de Jô. Ele é, no Brasil, o talk show.

Não havia quem não pudesse entrevistar. Chamava todos os presidenciáveis e presidentes. Seus convidados iam do gramático ao palhaço, do político ao professor, e ele segurava tranquilamente o bom papo. Já fez entrevistas em todas as línguas que falava, poliglota que era: português, inglês, italiano, francês, espanhol e alemão. Entrevistou de Prestes a Bolsonaro, e, ainda mais relevante, admirava muitíssimo o primeiro, e debochou e discordou, com bom humor, ao vivo do segundo. A discordância para com muitos convidados, principalmente os de cunho político conservador, inclusive, não tornava a entrevista tensa ou pior. Pelo contrário. Quando não se ria da conversa, ele fazia com que se risse da pessoa, e sempre com classe.

Tatá Werneck, em homenagem do Fantástico após a morte do apresentador, disse que aprendeu com ele a se posicionar.

“Hoje em dia as pessoas querem colocar a gente em lugares assim, ‘você faz comédia, não tem que falar sobre nada, esquece sua opinião’. Eu aprendi com o Jô que somos cidadãos, acima de tudo, múltiplos, e que devemos usar a nossa arte em prol do povo.”

O entrevistador passou pelas censuras e processos da Ditadura Militar, e só foi absolvido por causa do depoimento por escrito do grande Carlos Drummond de Andrade. Escreveu, em pequeno trecho da carta:

“Considero Jô Soares um dos maiores humoristas brasileiros, sob diferentes formas de expressão. Suas criações são de molde a situá-lo entre os artistas contemporâneos de categoria internacional.” Palavras do poeta.

Essa humildade que Drummond tinha de enaltecer e ajudar os colegas, Jô também tinha. Seu programa tornou-se de tamanho peso que artistas tinham suas obras esgotadas no dia seguinte às entrevistas. Atores tinham as bilheterias estouradas, e autores já tiveram bestsellers por terem sentado naquele sofá — e não estou exagerando. Jô dava espaço e chamava aqueles que queria ver brilhar. E eles brilhavam.

E eu poderia ficar aqui escrevendo sobre seus livros, suas peças, seus quadros, suas histórias da Ditadura e sobre sua luta anticapacitista. Sobre o filho autista que perdeu e sobre como ele ajudou gigantes da TV e do cinema a se erguerem. Mas não posso. O que consigo aqui, hoje, é tentar minimamente eternizá-lo em minhas memórias. Eu sempre brinquei que uma pessoa só se tornava influente no Brasil depois de duas coisas: um selinho na Hebe e uma entrevista no Jô. Agora, duas impossibilidades. O que o artista deixa é mais que um legado. Ele se tornou a essência de todo talk show brasileiro. Atrás da mesa, de terno, não importa quem esteja, o nível de seriedade do programa ou sua finalidade. Existe um nome a se honrar. Nome pequeno, de influência imensa.

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Johan Behr

Colunista livre, Professor e Analista de Discurso. Aqui, publico críticas, análises e artigos sobre assuntos gerais.