Na verdade, você entendeu errado a missão do Colégio Pedro II

J.Eller
10 min readOct 23, 2016

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Foto: Acervo Pessoal

pouco mais de dois meses o Colégio Pedro II, instituição secular sob a égide federal, está nos holofotes da sociedade brasileira em âmbito nacional em razão das medidas adotadas para contemplar a liberdade de gênero dos seus alunos. Em razão da sua excelência e visibilidade diante do cenário caótico da educação do país, o colégio se tornou um bode expiatório para a promoção do projeto Escola Sem Partido.

Em 2014, a comunidade escolar testemunhou a eclosão de uma pauta há muito defendida pelos alunos: a liberdade no uso do uniforme, que, a saber, distinguia meninos e meninas até este ano. Na ocasião, ocorreu no Campus São Cristóvão um grande ato em apoio a um aluno, identificado pelo gênero masculino, que foi fortemente repreendido pela direção do campus após comparecer às aulas de saia. No episódio conhecido como saiato, diversos alunos inverteram o uniforme: meninos pegaram saias emprestadas com as meninas, que por sua vez vestiram os uniformes masculinos.

O saiato ocorrido em 2014. (Foto: Reprodução)

Uma foto do saiato foi amplamente reproduzida nas redes e ganhou repercussão mundial — gerando, inclusive, versões fantasiosas e mentirosas sobre o que de fato ocorreu. Desde então, construiu-se nos espaços burocráticos de deliberação do colégio, a partir de uma demanda exclusiva dos alunos, a pauta pela liberdade na escolha do uniforme.

Feito isto, coube à Reitoria somente homologar a decisão amplamente debatida no colégio, o que foi feito em julho. Foi o estopim para a onda de ódio e desinformação que se instaurou nas redes sociais e na própria imprensa. As manchetes destacavam que o Colégio Pedro II havia “liberado saias para meninos”, enquanto a questão é muito mais ampla do que essa generalização canalha, para dizer o mínimo.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Seja por via da violência física, do assassinato, seja pela simbólica — como através da depressão e do suicídio. É notória a vanguarda política do Colégio Pedro II ao longo de sua história. A resistência de seus alunos na Ditadura Militar, por exemplo, é sempre destaque nos registros históricos. Não poderia ser diferente em tempos onde os direitos LGBTs enfim estão sendo pautados, ainda que de maneira sutil.

A liberdade do uniforme é um reconhecimento da existência desses alunos, invisibilizados em todas as instâncias até então. Só neste ano, atendendo a uma política nacional encaminhada ainda no Governo Dilma Rousseff, foi reconhecido o direito do nome social e, agora, da extinção da distinção de gênero no uniforme. O direito de existir ainda é amplamente negado em nosso país. O aluno trans do Colégio Pedro II terá, no mais importante ambiente de socialização e formação de conhecimentos e valores, o direito de ser chamado de acordo com sua identidade e vestir uma roupa que não lhe agride cruelmente todos os dias.

Pareceu suficiente para a sociedade idealizar a escola como um bunker produtor de crianças alienadas e uníssonas na defesa da esquerda e do socialismo. A transmissão da ingerência da liberdade do aluno para a escola em detrimento dos pais foi o grande tempero da discórdia no contexto atual — ainda que, indiretamente, a compra do uniforme esteja, a priori, sob o controle da família. Essa revolta causa enorme espanto, uma vez que o principal argumento destes mesmos responsáveis ao escolherem o colégio para seus filhos é o seu diferencial na construção do senso crítico e do caráter emancipatório da sua formação.

Quem acredita na tese doutrinária desconhece profundamente o Colégio Pedro II. Em primeiro lugar, o colégio não é o paraíso gayzista e feminazi (dois termos horrorosos e que desrespeitam o movimento LGBT e o feminista), como definiu Reinaldo Azevedo em sua coluna na revista VEJA em setembro de 2015. Nem seria possível, dada a pluralidade de opiniões dentro do colégio. Há professores de esquerda, de direita, reformistas, anarquistas, filiados a partidos ou não, apartidários, apolíticos, republicanos e monarquistas.

O Reitor que assinou a portaria dos uniformes e dos nomes sociais e que as defende com profusa ênfase, Oscar Halac, tampouco foi eleito pelos setores de esquerda da comunidade escolar (votam docentes, alunos, técnicos administrativos e responsáveis). À época, Halac era associado aos setores mais conservadores do colégio, e o campo progressista fez forte campanha para a oposição, o Professor Tarcísio Motta, hoje vereador eleito da cidade do Rio. O Reitor não fez uso da máquina da Reitoria para não homologar a vitória dos estudantes para evitar o desgaste que o colégio está sofrendo.

Os números da sua eleição foram extremamente apertados, o que comprova, por si só, uma franca divisão democrática da comunidade escolar e, por assimilação, a impossibilidade de que haja uma indústria doutrinária em funcionamento. Há, na verdade, responsabilidade social. Conforme Halac salientou em discurso durante a abertura do V FESTCOR no campus Engenho Novo, “nosso aluno não é aquele que a gente escreve ‘faça isso’ e ele faz. Essa portaria fala de respeito ao próximo. Esse processo precisa começar na escola. Se eles não crescerem acreditando no respeito, não teremos feito nossa parte”.

Ação do tempo: nossos símbolos persistem, mas o colégio se adapta às pautas urgentes (Foto: Acervo Pessoal)

A vitória dos estudantes é um alento diante de longos anos de luta dentro das instâncias onde estão representados. Engana-se, também, quem acha que o projeto é unânime dentro do colégio. No mesmo dia do discurso do Reitor, flagrei um professor em uma lanchonete próxima ao campus esbravejando falas transfóbicas. Fiquei completamente horrorizado, mas é bem verdade que há servidores preconceituosos. Como os que sempre ironizam LGBTs e não se furtam de verbalizarem comentários maldosos. Há. Como em todos os lugares. E o processo conduzido pelos alunos é também fruto dessa resistência diária, fora e dentro dos muros da escola.

É salutar lembrar que nós, alunos, também não temos voz única. Estaríamos rompendo com a história do nosso próprio colégio se fosse o caso. Ir a uma assembleia estudantil é um excelente exercício para essa percepção. E é bem verdade que há grande mobilização política dentre os petrossecundenses. Esse é o produto de uma educação que emancipa e expande horizontes para os problemas do país, preparando atores sociais engajados na transformação dessa realidade.

É neste ponto que reside a farsa do Escola Sem Partido. Não há educação sem que formemos opiniões. Faz parte da formação de um jovem a consolidação das suas convicções, que podem se redesenhar diversas vezes ao longo da vida. A ementa da escola e toda a plataforma acadêmica deu condições para a construção do meu senso crítico, sem jamais ter sido doutrinado. É natural discordar ou concordar eventualmente com professores.

Sempre enchemos a boca para falar que o nosso colégio formou diversos presidentes da república, ministros da Suprema Corte, famosos, inúmeras figuras renomadas e até mesmo indicada ao Oscar. Mas o que realmente incomoda naqueles que alimentam projetos “anti-partido” é que o Colégio Pedro II ampliou sua experiência socialmente transformadora para diversos outros segmentos através de políticas assistencialistas como as cotas, ainda que o acesso esteja longe do ideal. Fomos além dos presidentes e espalhamos soldados da ciência, como somos chamados no nosso hino, guardiões da ética e da emancipação intelectual, nos mais diversos espaços do mercado de trabalho.

Quando a educação transforma, ela assusta. Porque aprendemos a questionar. É exatamente o contrário do que propõe o paradoxal Escola Sem Partido, que visa implementar um sistema ideológico baseado na negação da política, atendendo a um projeto de educação mercadológico baseado na reprodução de conteúdos sem reflexão acompanhado do silêncio dos alunos.

Não surpreende que quando um menino não trans usa uma saia, uma menina não trans usa um uniforme lido até então como masculino, ou se alunos trans passam a optar pelo uniforme que lhes convêm aqueles que desmoralizam o colégio se escandalizem, alimentando, inclusive, boatos. Essas mesmas pessoas colaboram diretamente ou indiretamente para o derramamento de sangue LGBT nas nossas ruas. Todos têm suas mãos sujas.

Recentemente, grupos de ex-alunos (na maior parte da década de 1950 à de 1980) viraram palco de acusações vis e questionamentos hostis às iniciativas que supostamente feriam a essência do Colégio Pedro II. Onde estavam esses mesmos ex-alunos quando lutávamos pela climatização do colégio? Ou por mais democracia representativa? Silêncio.

A respeito do uso político do colégio, há apenas acusações estapafúrdias. Ao longo da História, tivemos inúmeros servidores disputando cargos políticos, de forma bem sucedida ou não (uma rápida pesquisa nos leva a nomes renomados como Silvio Romero, Henrique Dodsworth e Carl Jansen). Sem jamais infringir a isenção exigida para o cargo. Não há problema algum nisso. Na verdade, é motivo de orgulho para um colégio empenhado na escrita da História do país. O maior símbolo desse debate foi o Professor Tarcísio, que jamais precisou (e, com a licença do juízo de valor, jamais o faria) se apropriar da estrutura e da máquina do colégio para se consolidar como o segundo vereador mais votado da cidade do Rio.

A cessão do Teatro Mário Lago para um evento externo também gerou forte comoção para a polícia ideológica. Alunos e funcionários não tinham acesso ao espaço que, de fato, exaltava líderes comunistas dentre os participantes — algo totalmente permitido em termos constitucionais, discordemos da teoria comunista ou não. Um energúmeno identificado como responsável de um aluno invadiu o espaço completamente fora de si e registrou fotos, disseminando, ainda, que havia vários ônibus com integrantes do MST prestes a ocupar o colégio. O episódio fortaleceu a ideia de que existe uma forte doutrinação de esquerda no processo pedagógico, ainda que sem fundamento.

É lamentável que não tenha ocorrido a mesma comoção pelo Estado Democrático de Direito quando foi preciso lutar para retirar a antiga nomenclatura do prédio da Reitoria, em São Cristóvão, que levava até 2011 o nome do Almirante Augusto Rademaker, uma figura iminente da Ditadura Militar. O mesmo regime que perseguiu, torturou e matou vários alunos deste mesmo colégio. Mas, como sempre, houve silêncio por parte destes mesmos responsáveis.

Para nós, lutar nunca foi um crime (Foto: Tatiana Araújo/Brazil Photo Press)

Nem mesmo o coro que cantei por cinco anos escapou. Sofreu uma denúncia obtusa direcionada à Reitoria e possivelmente ao Ministério da Educação por parte de uma pessoa ainda não identificada após uma apresentação na UERJ. Nela, os integrantes apresentaram uma composição crítica ao Presidente da República, Michel Temer. O colégio vem sendo intimado há meses pelo Ministério Público Federal a coagir movimentações, sejam de alunos ou de docentes, que envolvam a narrativa de que Dilma sofreu um golpe e que Temer deve deixar a presidência. O livre pensamento deixou de constar no currículo da educação básica, ao que consta. Não é necessário que professores convençam seus alunos a exigirem a queda de Michel Temer. Esses alunos leem jornais, acompanham notícias e debates pelas redes sociais e sabem que sofrerão na carne medidas como a PEC 241. Há também dentre o alunado aqueles que defendem a gestão peemedebista e o processo de impeachment contra Dilma. O fazem sem qualquer constrangimento por parte dos supostos agentes doutrinadores.

A tentativa de constranger nacionalmente o Colégio Pedro II, em especial seu corpo docente e o setor administrativo, perpetrada por parte da grande mídia e por figuras conservadoras de certo alcance social fomentados pelo Escola Sem Partido, não é uma resposta aos inexistentes absurdos cometidos pela escola. É uma tentativa deliberada de abalar a reputação da educação pública de qualidade em um contexto onde os orçamentos são congelados e a gratuidade das universidades públicas já são alvo de questionamento.

Imbuídos de um intuito egoísta, irracional e, acima de tudo, venal, diversos responsáveis e ex-alunos caíram na história e reproduzem, como os produtos fordistas da indústria doutrinária que juram existir nas dependências do colégio, boatos e factoides que não correspondem à realidade. O objetivo final é nenhum outro além de destruir o Colégio Pedro II, que ousou até mesmo levar sua pedagogia emancipatória para a Baixada, a região de Niterói e São Gonçalo e a extrema Zona Oeste do Rio.

Essa cruzada implacável abala o emocional dos seus funcionários, estudantes e ex-alunos. Afinal, temos um legado e um futuro em jogo. Nelson Rodrigues disse em uma de suas crônicas que não havia “soturnos, merencórios e augustos dos anjos” dentre os ex-alunos. Ironicamente, é exatamente assim que me descreveria nos últimos dias, em especial por morar exatamente ao lado de um dos campi do colégio. Professores relatam a mesma situação. Ver a alegria do tipo humano do aluno do CPII, como dizia Nelson, é paradoxalmente agoniante diante do que vem sofrendo o colégio.

Contudo, a resistência e resiliência que borbulham no estômago nesse momento são três vezes maiores do que a revolta. Urge que nós, ex-alunos que de fato amam o Colégio Pedro II e juraram defender sua honra após formados, bem como os responsáveis cientes do seu papel, nos organizemos para combater o plano sistemático que visa derrubar nosso antigo colégio e tudo o que ele representa atualmente. Eu tenho a mais forte convicção de que venceremos. E com o gostinho especial de que a História estará do nosso lado. Ao Pedro II, tudo.

Johanns Eller foi aluno do Colégio Pedro II entre 2008 e 2014. Ingressou na escola através do concurso de 2007. Representou os 13 mil alunos da instituição atuando como Conselheiro titular do Conselho Superior da escola, a mais alta instância deliberativa. Também construiu o Grêmio Estudantil de seu campus, o Engenho Novo, entre 2012 e 2014 nas extintas funções de presidente e vice-presidente.

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