(3) OBSCURANTISMO CONSPIRATÓRIO — FakeZil 2018

Juão Rodriguez Kyntyno
53 min readAug 16, 2022

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Brasil ‘vendeu’ a Copa do Mundo de 98? l Teorias da Conspiração

As teorias da conspiração são hipóteses especulativas onde duas ou mais pessoas, ou mesmo uma organização, supostamente têm tramado um plano para controlar ou causar um evento prejudicial à uma sociedade. Essas teorias são bem mais difundidas do que se pensa e vivem em contraste direto com à ciência, principalmente nas redes sociais. Conspirações partem de situações onde não há uma causa aparente ou uma solução clara para algum problema, de forma a preencher um vácuo de conhecimento com uma informação fraudulenta ostentada enquanto poder sobre aqueles que nela acreditam (NERDOLOGIA, 2016, s/p.).

Em 2014, metade da população dos Estados Unidos apoiou pelo menos uma teoria da conspiração. (D’ANCONA, 2018, p. 64). No Reino Unido, a maioria dos britânicos endossou uma entre cinco teorias “que variavam da existência de um grupo secreto que controlava eventos mundiais ao contato com extraterrestres” (TILEY, 2019, s/p.) A startup de tecnologia de publicidade, Sotryzy, “encontrou mais de 600 anúncios de marcas em sites que promoviam teorias da conspiração e outras informações enganosas.” (WARDLE, 2018, p. 49).

No Facebook, teorias conspiratórias são mais compartilhadas e recomendadas do que postagens científicas (BESSI et al., 2015, s/p.). No Brasil a situação é mais grave com a academia, pesquisa da UNICAMP mostrou que o 61% dos brasileiros gostam de ciência, mas 87% não soube apontar uma instituição científica no país. 95% não soube apontar o nome de um cientista brasileiro (MORAES; CAIRES, 2017, s/p.).

São evidentes os motivos por que o homem conhece melhor os políticos do que os cientistas: não quer que lhe recordem que é, no fundo, um animal. […] O chamado homem civilizado transformou-se num ser rude, mecânico, sem espontaneidade, isto é, transformou-se numa máquina cerebral[1]. […] O homem substituiu a inteligência natural autorreguladora do plasma por um duende no cérebro […] [com] características simultaneamente metafísicas e mecânicas. (REICH, 2015, p. 317–321).

Com fatos em constante alteração, os que defendem a leitura empírica da realidade objetiva são os primeiros a serem perseguidos diante das conspirações. Por isso que na pós-verdade jornalistas, cientistas e professores estigmatizados — e muitas vezes de fato reclusos em seus edifícios de conhecimento complexo ou tedioso — são caçados pelo senso comum ideologizado.

Aliás, nada mais tentador do que pular os dados técnicos, os detalhes e as incertezas de um problema real com uma boa opinião de conjunto, ainda mais se ela for sancionada pela “razão universal”, que limpa o terreno e nos dispensa de considerar certos ângulos adicionais e excessivos na matéria. Assim vamos comprando a ideia de que existem coisas científicas e coisas “opinativas” ou digamos “políticas” (DUNKER et al., 2017, p. 39–40).

É possível também obter benefício político com conspirações no momento em que a ideologia é levada ao seu lado mais extremo e “as mentiras dos mentirosos que gostamos são compreensíveis, e aquelas dos mentirosos que não gostamos são desprezíveis.” (KEYES, 2018, p. 129).

A conhecida observação de Daniel Patrick Moynihan de que “todo mundo tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos” é mais oportuna do que nunca: a polarização se tornou tão extrema que os eleitores têm dificuldade em chegar a um acordo sobre os mesmos fatos. Isso foi acelerado exponencialmente pela mídia social (KAKUTANI, 2018, s/p.)[2]

Trump, ao exclamar na Casa Branca “eu não vou te deixar fazer uma pergunta porque você publica notícias falsas. Quieto!” (THE DAILY BEAST, 2017, s/p.) a um dos repórteres da CNN — veículo que ele chamou de fake news — mostrou qual caminho deveria ser seguido pelo obscurantismo conspiratório que o rege: o que retira a autoridade da ditadura dos dados que a ciência e o jornalismo supostamente pregam, conferindo empoderamento às opiniões do senso comum[3].

Se a tecnologia digital é o hardware, a pós-verdade provou ser um software poderoso. Ela reduz o discurso político a um videogame em que o jogo interminável, em múltiplo níveis, é o único ponto de exercício. Quando Trump twittou que a “Mídia fake news” era a “inimiga do povo”, ele não estava apenas se apropriando do léxico da autocracia. Ele estava recomendando que os cidadãos norte-americanos se comportassem como jogadores, pegassem seus consoles e mirassem nos vilões que carregavam caderninhos de anotação. É tudo uma questão de escolha de times, intensidade de sentimentos e escalada dos insultos. É a política do puro espetáculo (D’ANCONA, 2018, p. 58–9).

As teorias conspiratórias não só desafiam os defensores dos fatos e das evidências, elas são capazes de aglutinar diversas fake news com narrativas mistas, trazendo o tempero de realidade necessária para justificar posicionamentos ideológicos extremados na política.

Ao contrário da crença popular, o típico teórico da conspiração não é um homem de meia-idade que vive no porão da casa da mãe usando um chapéu de papel alumínio (que protegeria contra o controle mental realizado por satélites do governo e extraterrestres). “Quando você realmente olha para os dados demográficos, a crença em conspirações transpõe classes sociais, gênero e idade”, afirma o professor Chris French, psicólogo da Universidade Goldsmiths, em Londres (TILEY, 2019, s/p.).

Para quem acredita em fake news e conspirações, a guerra de narrativas pressupõe uma verdade de batalha que “não pode ser captada em uma planilha ou em um conjunto de gráficos. Assim, como o caso da permanência britânica na União Europeia não podia ser reduzido a uma série de estatísticas” (D’ANCONA, 2018, p. 110). Exemplo assim foi observado no contexto da criação da Tobacco Industry Research Committee[4], uma companhia projetada para sabotar a confiança do público e estabelecer uma falsa equivalência entre as pesquisas científicas que apontaram a relação entre o uso do tabaco e o câncer de pulmão. Com o objetivo de obter não uma vitória acadêmica, mas uma confusão popular, instalando a conveniência ou tolerância na população, as empresas de tabaco garantiram por anos o status quo lucrativo. Esse modelo semelhante é observado também em negacionistas das mudanças climáticas (D’ANCONA, 2017, p. 46).

Arron Banks, o empresário que financiou a campanha Leave.EU, em favor da saída da União europeia, estava correto em sua análise do resultado do referendo: “A campanha pela permanência na União Europeia apresentou fatos, fatos, fatos, fatos. Não funciona. Você tem que se ligar emocionalmente com as pessoas. Esse é o sucesso de Trump” (D’ANCONA, 2018, p.27).

Conforme revela o jornalista Matthew D’Ancona, a hostilidade à economia globalizada mudou das margens para o centro do discurso político porque de 2008 para frente, quando a economia mundial foi salva pelos imensos e dolorosos resgates financeiros dos próprios bancos responsáveis pela crise — a popularidade de um sistema econômico globalizado e promissor ruiu diante dos caprichos de sua elite operacional (D’ANCONA, 2018, p. 43). Esse sentimento de traição, que habitava o imaginário dos 99% que tiveram seu padrão de vida estagnado, foi capturado por uma nova elite política em direção à identidades nacionalistas: nos EUA, Donald Trump — que direcionou esse ódio à nacionalidade de Obama, o terrorismo e à expansão da economia chinesa; na Grã-Bretanha, por Boris Johnson e Nigel Farage — que direcionaram esse ódio aos refugiados e à União Europeia.

Os populistas aproveitaram essa gama de ressentimentos. Eles zombam das elites, mesmo que eles próprios sejam ricos e poderosos; eles prosperam e nutrem raiva e divisão. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump disse a quatro congressistas progressistas para “voltarem … aos lugares destruídos e infestados de crimes de onde vieram”. Em Israel, Binyamin Netanyahu, um membro consumado, retrata investigações oficiais sobre sua suposta corrupção como parte de uma conspiração do establishment contra sua liderança (THE ECONOMIST, 2019, s/p.).

Neste início de século XXI, a mentalidade conspiratória também é uma resposta a um mundo de mudanças disruptivas, a “globalização e seus descontentes, a mobilidade populacional sem precedentes, a revolução digital, as formas em rápida mutação do extremismo e do terrorismo, as possibilidades estonteantes da biotecnologia.” (D’ANCONA, 2018, p. 79). Numa época de imprevistos e ansiedades, os cultos místicos[5] e suas respostas prontas ganham força diante da laboriosa ciência, e desta forma “é fácil explorar as suspeitas existentes e preencher lacunas de informação com notícias inventadas e estatísticas distorcidas. Nesse caldeirão de fatores, as identidades e visões culturais também se misturam à narrativa” (EBNER, 2019, s/p.).

A batalha de narrativas que dá credibilidade às conspirações depende de sofrimentos e crises para ganhar adeptos. Em situações ruins, o cérebro humano busca justificativas para explicar o que está passando, pois ver uma causa ou finalidade em algum fato torna mais fácil superá-lo, aqui, as conspirações dão um plano maior ao que está acontecendo, alguém poderoso por trás do que se passou, sempre por meio de explicações simples. “Quando alguém não se sente no controle da própria vida, durante momentos de estresse ou perturbação, teorias conspiratórias parecem mais plausíveis” (BBC NEWS BRASIL, 2019, s/p.). Elas “são realmente tranquilizadoras. Sugerem que há uma explicação, que as ações humanas são poderosas e que há ordem, em vez de caos” (D’ANCONA, 2018, p. 64).

Nós, seres humanos, não gostamos do acaso. Sentimentos de acaso, bagunça e caos são sentimentos aversivos. Sentimentos assim incomodam o nosso sistema cognitivo. O ser humano está o tempo todo (desde criança) buscando compreender e estabelecer relações causais entre as coisas que acontecem. Dizer que A ou B acontecem por acaso não satisfaz nossa cognição. Mas esses sentimentos existem. E como seres adaptativos, estamos sempre buscando lidar com eles (SOUZA, 2010, s/p.).

Por não gostar do acaso, o ser humano possui grande facilidade de associar fatos e acontecimentos, também é extremamente propenso a aceitar verdades e procurar por relações de causa e efeito nelas. Há outro aspecto interessante no favorecimento da desinformação: as predisposições psicológicas que tendem a levar a desvios sistemáticos de lógica e a decisões irracionais — os chamados vieses cognitivos.

Há razões psicológicas e sociais para a vulnerabilidade humana [à desinformação] […]. Como indivíduos temos um realismo ingênuo (do inglês, naïve realism), por meio do qual acreditamos que a percepção da realidade é o único ponto de vista correto, enquanto quem discorda de nós é visto como desinformado, irracional ou enviesado. E temos um viés de confirmação[6] (do inglês, confirmation bias), pelo qual preferimos informações que corroboram com nossa visão atual (RAIS, 2018, p. 63).

Os vieses cognitivos permitem que o conhecimento não-científico se acomode mais facilmente na mente humana pois são mais simples de associarem-se a causas e efeitos definitivos e imediatos, também não exigem a assimilação de verdades transitórias em constante revisão, características essas da ciência. O efeito acaba estimulando a manipulação de memórias num efeito de verossimilhança.

“As primeiras impressões são difíceis de serem descartadas, porque há um instinto primitivo de defender o próprio território, porque as pessoas tendem a produzir respostas emocionais em vez de intelectuais ao serem questionadas e são avessas a examinar cuidadosamente as evidências”. Além disso, as fake news se fundamentam na verossimilhança e não na verdade. A verdade são os fatos concretos, a realidade. A verossimilhança é “aquilo que se constitui a partir de sua própria lógica. Daí a necessidade para se construir o ‘efeito de verdade’” (ANTONINI, 2019, s/p.).

A memória é vital para constituir o efeito de verdade na compreensão do mundo e de si. É importante dizer, memórias não são gravações em alta definição. Estão mais para apresentações ao vivo, criadas com contribuições de diversas áreas do cérebro no tempo presente. Em um ano, somos capazes de esquecer até 50% do conteúdo de nossas memórias por causa da sua degradação natural (VOX, 2019, s/p.). Por não lembrarmos de cada memória especificamente, usamos conhecimentos pré-existentes como lembranças semântica ou fatos sabidos, assim como tendências e crenças prévias para preencher as lacunas de alguma memória. Isso foi confirmado em um estudo que induziu mais de 70% dos entrevistados a narrar memórias completamente inventadas sobre crimes que cometeram (SHAW; PORTER, 2015 , p.1), provando que é possível confirmar uma crença em uma memória falsa confirmando-a ou repetindo várias vezes por meio de seu teor emotivo.

Isso porque a narrativa é importante para formar as recordações humanas e, quando uma é contada, seu impacto emocional e descritivo pode ser utilizado para manipular recordações, pela riqueza em detalhes emotivos dentro da narrativa, satisfazendo assim explicações deixadas pelas lacunas do fato. Na discussão política das redes sociais, “eleitores podem desenvolver falsas memórias depois de verem notícias fabricadas, principalmente se elas estão alinhadas com suas crenças políticas” (ROSA, 2019, s/p.).

Nas plataformas onde a maioria dos usuários se informam, por exemplo, o que se observa, é a história de 1984 de Orwell: são várias memórias desconexas, em estado de eterno presente[7], com saberes inertes, desconectados e inconsequentes entre si, sem possibilidade de ordená-los em uma interpretação coerente.

Cada vez mais lemos a mensagem que o outro nos envia em pacotes de informação, compostos por imagens e textos, que se apresentam como um “todo de uma vez”[8]. Isso degrada a narrativa de viagem a um percurso sem memória. A resposta antecipada para uma determinada imagem coordena nossos códigos de comunicação e de produção de desejo, de tal forma que é preciso rapidamente acolher ou descartar, inibir ou estimular o progresso da comunicação com o outro. É o que alguns teóricos da linguagem chamam de cultura do connect e cut, na qual há igual facilidade de acesso e de desligamento no contato com o outro (DUNKER et al., 2017, p. 28–30).

Sentir a pressão de produzir constantemente conteúdo para compartilhar com os outros desvaloriza o tempo que há para o próprio usuário praticar o lazer ou abrir-se para outras possibilidades de distração no mundo analógico, até mesmo para ouvir alguém com visão diferente — nessa distração viciante das redes sociais não há como apreciar emocionalmente todos os momentos, muito menos registrar algo na memória.

Ao usar o Snapchat, os participantes viram-se num maior prejuízo de memória do que ao tirar fotos sozinho, potencialmente por causa de maiores distrações, como filtros, efeitos ou adições de texto na interface do aplicativo. Com esse entendimento recém-descoberto e as descobertas anteriores de McGaugh[9] sobre a conexão entre a excitação emocional e a memória, de repente fica claro como a adição de histórias em uma plataforma como o Instagram pode impactar profundamente a capacidade de toda uma geração de permanecer presente e engajada — e, por sua vez, afeta formação de memória pessoal também. […] “Você está se afastando do momento presente, e é isso que está causando o desengajamento. Você literalmente colocou uma tela entre você e o evento que você está tentando gravar. E parece que levaria um pouco de tempo para se recuperar desse desligamento de atenção, para voltar ao modo de ‘OK, estou vivendo a experiência presente. Estou presente”, Soares elaborou. […] Momentos de interrupção são, em última análise, o cerne do efeito de deficiência de memória que acompanha o uso da mídia social (YU, 2019, s/p.)[10].

Com a memória em degradação no ambiente online, as fake news e as teorias da conspiração florescem como complemento às lacunas das lembranças e, quando levada para a ideologia reacionária, essas tendências cognitivas tornam a lembrança das nossas experiências no passado mais agradáveis ou mais felizes do que elas realmente foram. Esse viés cognitivo é chamado de retrospectiva idílica (BURTON, 2014, s/p.), e explica por exemplo, porque jovens na Rússia e em outros países ex-URSS têm defendido os tempos de chumbo da União Soviética ao lado de pessoas mais velhas que viveram o período, em um cúmulo de pós-verdade chauvinista também incentivado pelo presidente Vladimir Putin (TAYLOR, 2016, s/p.) e por outros líderes demagogos no mundo.

O Brexit, que promove uma volta ao passado, conclama por uma nostalgia delirante de um país que não quer deixar para trás seus dias de império. Nesse sentido, assemelha-se ao bordão trumpista “Torne a América grande novamente”. Esse sentimento resvala na ideia, propagada por aqui, de que “bom mesmo era no tempo da ditadura” (GAMA; VILICIC; MARTHE, 2019, p. 61).

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A tendência de manipularmos nossas memórias é descrita pelo jornalista George Orwell como fundamental para a subserviência ideológica. Em 1984, ser capaz de duplipensar[11] — conviver com crenças contraditórias e em constante revisão de acordo com as palavras do líder Big Brother — é alterar a memória ativamente, um autoengano que evita pôr em risco a infalibilidade da ideologia. Quando se nota a tendência cognitiva para evitar a dissonância e enxergar apenas o que se quer ver, as mentiras digitais na pós-verdade viram libertação.

Em um experimento clássico de 1999, os psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons mostraram às pessoas um vídeo de jogadores de basquete, alguns vestindo camisas brancas, alguns usando roupas pretas, e pediram que contassem quantas vezes os jogadores de branco passavam pela bola. Na metade do filme, uma mulher vestida de gorila adentra a cena, encara a plateia, batia no peito e ia embora. Extraordinariamente, mais da metade dos súditos de Chabris e Simons estavam tão atentos a ver a bola sendo lançada que não conseguiram ver o gorila. O experimento coloca questões importantes sobre a dependência de relatos de testemunhas oculares. Isso também influencia a forma como acessamos informações, incluindo notícias. […] Muitas vezes vemos o que esperamos ou queremos ver (MALIK, 2019, s/p.)[12]

É comum observar os usuários no ambiente online se sentirem seguros para arriscar posicionamentos como exaltar um período ditatorial ou alguma figura guerrilheira histórica. A compensação de risco (WILDE, 200?, s/p.), fenômeno onde as pessoas em uma sensação de proteção se colocam em episódios perigosos, vira um fator determinante para incentivar esse posicionamento radical na internet. Quem vive em uma democracia, possui direitos de expressão e sente-se seguro o suficiente para defender uma opinião impopular ou autoritária, muitas vezes por não ter a noção do perigo de sua fala ou por saber que pode se expressar livremente. Já o inverso, justamente não ocorre em ditaduras. Para o filósofo e historiador israelense Yuval Noah Harari, esse mesmo autoengano que permite a distorção de memórias que é capaz de reescrever a história de um povo, é o mesmo que estimula o ataque ao progresso que o método científico trouxe ao mundo contemporâneo com vacinas, pesquisas e o pensamento crítico.

A ciência está sob ataque por diversos motivos. Primeiro, porque as pessoas mensosprezam as enormes conquistas que ela trouxe […] As pessoas se esqueceram de como as coisas eram ruins em épocas passadas, e então deixaram de dar valor a essas conquistas. Um segundo fator é que os líderes populistas estão em alta e eles são inimigos costumazes da ciência. Os populistas buscam ampliar seu poder incitando o ódio contra imigrantes e minorias, e rotulando de traidores o que se opõe a eles. Ao chegarem ao poder, têm como foco destruir todos os contrapesos que limitam a imposição de suas vontades, atacando a imprensa, as instituições e as universidades. A ciência é vista como ameaça pelos populistas porque ela expõe verdades que vão contra seus comandos (GAMA; VILICIC; MARTHE, 2019, p. 60).

A desinformação e as conspirações não só afetam as relações sociais e a memória, também impactam o autorreconhecimento. Cientistas cognitivos acreditam que na mente humana, quando perdem-se as relações com a memória e o passado, a capacidade de vislumbrar o futuro e enxergar a própria identidade é afetada. Uma explicação é que o mesmo maquinário que reúne todas as peças para relembrar o passado pode reunir algumas dessas peças junto com outras para simular futuros. Essa espécie de ‘máquina do tempo cerebral’ permite que seja possível prever erros futuros, como as coisa podem se desenrolar, possíveis obstáculos no caminho e formas de superá-los. As recordações criam um senso de prevenção, individualidade e identidade entre simulações de memórias do passado com sonhos para o futuro. Quando perde-se a memória recente e as lições do passado, não só se esquece do futuro, mas também do próprio eu (VOX, 2019, s/p.), tornando-se mais fácil ser colonizado por uma identidade segregatória, ideologia populista ou por mais informações fraudulentas.

Sem identidade e memória, as dimensões simples que pensamentos populistas trazem são perfeitos para atribuir causas e efeitos. Surgem atiçadores que buscam lucrar com os ataques aos métodos científicos e a demanda conspiratória emotiva e sensacionalista da pós-verdade, num mercado onde ganha quem apresentar a ideia mais palatável ou redentora, “onde as ideias viram mercadorias do mesmo modo que um pastor em uma igreja vende o seu peixe e ganha seu dízimo” (DUNKER et al., 2017, p. 100–101). Personagens conspiradores como militantes anti-vacina também podem lucrar ao viver sobre seus vieses cognitivos vendendo suas ideias em cursos online, palestras ou programas de auditório: é o saber alternativo a um toque de distância. Para uma dessas ativistas, não é necessária a pesquisa científica ou formação acadêmica, “tirei meu diploma na Universidade do Google” (D’ANCONA, 2018, p. 70).

Para Marc Morano, ex-assessor republicano que dirige o site ClimateDepot.com “[O engarrafamento de trânsito é] o maior amigo do cético do aquecimento global, porque isso é tudo o que realmente se quer […] Somos a força negativa. Estamos apenas tentando parar coisas”. Morano admitiu que ser um leigo orientado ideologicamente é muitas vezes uma vantagem diante de um acadêmico: “A maioria dos cientistas que enfrentamos vai ficar em seu próprio mundo especializado ou área de expertise […] muito hermético, muito difícil de entender, difícil de explicar e muito chato” (D’ANCONA, 2018, p. 47).

A estratégia do conspiracionismo dentro do ambiente online passa justamente por simplificar ideias e criar narrativas de fácil digestão, que possam dar leveza à sua remixagem, sem precisar apelar para números ou dados complexos, e que consiga ser reproduzido e repetido diversas vezes para se confirmar e gerar verossimilhança. Perpassa o que pode ser chamado de memecracia (VERSIGNASSI, 2019, p. 9), onde por meio de memes[13], piadas, difamações ou conteúdos imagéticos mentirosos, o líder ideológico espalha desinformações, ou trollagens, de forma rápida, descontraída, estilística e simples para sua militância, com conteúdo que possa mobilizar suas bases em torno de um consenso fabricado no debate político, de forma que ele sempre se retroalimenta na remixagem de conteúdo.

Na política, os memes são estratégia de convencimento, ferramentas de engajamento e a sátira dos próprio universo dos candidatos. “Por difundirem suas mensagens de forma simplificada e veloz, os memes contribuem para que o debate político ganhe impulso e amplie seu alcance”. […] Os usuários das mídias sociais é que transformam efetivamente a experiência em um meme, já que ao compartilhar seus relatos e depoimentos, mimetizam a proposta original. Há, ainda, […] [a função] de satirizar a política e os políticos, de deslocá-los do lugar que ocupam, como intocáveis, para a posição de alvos de crítica popular. Essas […] funções assumidas pelos memes os tornam um recurso ou um dispositivo político e, portanto, constituem estratégias políticas, ora assumidas pelos políticos em si, ora pela militância ou pelos movimentos sociais, ora pelas audiências em larga escala (ROSA, 2018, s/p.).

Exemplo da memecracia foi visto na campanha de Trump, que acusou sua adversária Hillary Clinton de ser corrupta usando o slogan “Crooked Hillary”, em inglês Hillary desonesta, com algemas em sua diagramação, dando a impressão de que a adversária era uma criminosa (WANSHEL, 2018, s/p.). O meme se espalhou rápido pela internet e teve efeitos na vida analógica. Em um discurso do republicano, partidários de Trump puxaram gritos de “Look her up”, “prendam-na”, em inglês (STEVENSON, 2016, s/p.).

“Nós apenas colocamos informações [falsas] na corrente sanguínea da internet e depois observamos o crescimento, damos um pequeno empurrão de vez em quando para assistir a tomar forma […] E assim, esse material se infiltra na comunidade on-line, mas sem marca, por isso é irrestrito e não rastreável”. […] Hillary Clinton disse: “Havia um novo tipo de campanha que estava sendo executada do outro lado, que ninguém jamais havia enfrentado antes. Porque não era tudo sobre mim. Foi sobre como suprimir os eleitores que estavam dispostos a votar em mim … um esforço maciço de propaganda para impedir as pessoas de pensarem direito porque elas estão sendo inundadas com informações falsas” (GRAHAM-HARRISON; CADWALLADR, 2018, s/p.).

3.1 PÓS-VERDADE ON DEMAND

Para entender como os memes se fundiram ao radicalismo ideológico conspiratório no ambiente digital é preciso analisar como a desinformação embarcou em algoritmos e padrões psico-políticos, com apoio das plataformas de redes sociais que auxiliaram no desenvolvimento de uma nova forma de propaganda eleitoral personalizada, em formato de demanda. Em outras palavras, a tecnologia aprendeu “a hackear nosso cérebro” (RAUCH, 2019, s/p.), uma vez que dados coletados e algoritmos sofisticados permitem que mensagens e imagens sejam imediatamente identificadas e enviadas com microtargeting[14].

Após os acontecimentos envolvendo o WikiLeaks, popularizou-se a expressão de que os “dados são o petróleo do século XXI” (MOROZOV, 2019, p.8). Apesar do chavão, a expressão é condizente em alguns pontos, basta lembrar que a história da exploração de petróleo acompanhou o uso de violência, guerras e derrubadas de regimes democráticos, e “o fluxo de petróleo decide quem é dominante, quem é invadido e quem é excluído da comunidade global” (ASSANGE et al., 2013, p. 20). De fato, coletar informações dos usuários se tornou bem mais fácil e lucrativo para as potências digitais como EUA e Rússia, com a utilização de Big Data[15], pois “nos dias de hoje, é considerado muito mais eficiente dizer: ‘Vamos pegar tudo e esmiuçar depois’ [os dados]” (ASSANGE et al., 2013, p. 57).

As notícias falsas, que existem desde que existem notícias, agora circulam mais em meio digital porque se adequam muito bem aos modelos de negócio baseados em cliques que foram aperfeiçoados pelos gigantes extrativistas de dados. […] Essas notícias falsas se difundem com tanta rapidez porque é assim que o Facebook e o Twitter ganham dinheiro: uma notícia compartilhada só por algumas pessoas pode até custar dinheiro ao Facebook. Elas somente são lucrativas para empresas se forem amplamente compartilhadas. (MOROZOV, 2019, p. 169)

Assange alertava em 2012 que o próximo grande salto na vigilância online seria não mais a captação de informações, mas “a eficiência da interpretação e da resposta ao que já está sendo interceptado e armazenado” (ASSANGE et al., 2013, p. 58).

É fato que “as fake news circulam com mais força nas extremidades do espectro político, em que a decisão de voto já está tomada” (BERGAMASCO; BRONZATTO; GONÇALVES, 2018, p. 51), no entanto, há também a estratégia de conversão do eleitorado indeciso por propaganda mentirosa. Essa artimanha foi traçada inicialmente em 2013, quando o futuro estrategista político de Donald Trump, Steve Bannon, se aliou ao magnata Robert Mercer para criar uma plataforma de psicometria política, aproveitando-se das predisposições à pós-verdade no ambiente digital, e valendo-se dos modelos de propaganda digital e extração de dados.

As ideias de Bannon, ex-editor do site conspiracionista Breitbart News, encontrou o apoio e estrutura da família Mercer[16] e fundiu-se à SCL Eleições — uma empresa privada britânica de pesquisa comportamental e comunicação estratégica, fazendo nascer a Cambridge Analytica (KUTNER, 2016, s/p.). Bannon e Mercer encontraram no discurso conservador o conteúdo necessário para a nova forma de debate online que eles viriam popularizar, “o uso da rede e da internet para a manipulação social, […] com a psicometria eleitoral que usa tecnologias analytics” (RAIS, 2018, p. 82).

A Cambridge Analytica inaugurou uma nova estratégia de marketing político digital, apesar de usar técnicas conhecidas de propaganda psyops[17], investindo na doutrinação digital em todos os espectros, pautando-se na busca por focos emotivos que pudessem despertar insatisfação entre o eleitorado, e usando a linguagem estética de memes para criar respostas simples e preconceituosas para questões complexas e convencê-los a mudar de opinião.

Com seus vários experts em ciência de dados, a Cambridge Analytica mapeou perfis psicológicos em massa no ambiente online por meio dos dados coletados dos usuários e iam atrás dos que poderiam ser persuadidos, bombardeando-os com propaganda eleitoral pró-Trump. Desde blogs e fake news até anúncios, vídeos e montagens no Facebook confirmando seus preconceitos, brincando com suas inseguranças, ampliando e distorcendo suas memórias, seus medos e ódios (BRADSHAW, 2019, s/p.), principalmente usando a questão dos refugiados como trampolim de ódio.

A viralização das teorias da conspiração sobre a UE e o establishment político oferece um espaço fértil para os partidos populistas. Os adeptos do QAnon[18] se organizam em aplicativos criptografados como Discord e Telegram, ligando a teoria da conspiração centrada nos americanos aos contextos locais. Campanhas emocionalmente manipuladoras e firmemente organizadas permitiram que eles reunissem dezenas de milhares de apoiadores em toda a Europa. Eles produzem vídeos, bancos de dados de desinformação e realizam treinamentos sobre criação de memes e guerra psicológica. A QAnon até adotou sua própria moeda, chamada “Initiative Q”, que seus fundadores querem transformar no “próximo bitcoin”. […] Em toda a Europa, teorias de conspiração que misturam antigos grupos anti-semitas com novos que demonizam migrantes e muçulmanos, ganhando enorme força desde a crise dos refugiados em 2015. (EBNER, 2019, s/p.).[19]

Em 2016 a empresa já tinha experiência em eleições de países como Trinidad e Tobago, Quênia e Nigéria (CADWALLADR, 2018, s/p.), e havia conseguido coletar dados de diversos usuários desde a criação de sua matriz nos anos 90 — a SCL Group, totalizando mais de 200 eleições.

Em uma série de vídeos gravados secretamente pela TV britânica Channel 4 […], o diretor gerente para Política Global da consultoria, Mark Turnbull, se gaba de ter feito campanhas na Austrália, na Malásia e no México. Nos vídeos, gravados entre dezembro e janeiro último [de 2017 para 2018], Turnbull afirma que estava vindo atuar no Brasil (O GLOBO E AGÊNCIAS INTERNACIONAIS, 2018, s/p.).

A empresa de Mercer foi denunciada pelos jornais New York Times e The Guardian como a grande responsável por administrar a campanha do Brexit usando a mesma plataforma psicológica com dados do Facebook. As informações foram coletadas por um aplicativo, thisisyourdigitallife, “que pagou a centenas de milhares de usuários pequenas quantias para que eles fizessem um teste de personalidade e concordassem em ter seus dados coletados para uso acadêmico” (BBC NEWS BRASIL, 2018, s/p.). No pleito de Donald Trump foram interceptados e-mails, mensagens de voz e até mesmo contratos e transferências bancárias de mais de 50 milhões de perfis no Facebook de eleitores dos Estados Unidos[20] (CADWALLADR, 2018, s/p.). No Brasil, dados pessoais de mais de 443 mil brasileiros foram coletados indevidamente pela Cambridge Analytica (RONCOLATO, 2018, s/p.).

Concordar ou não com essas políticas [de privacidade] e contratos é uma opção que, na verdade, você não tem. Ao entrar no Facebook, eu concordo realmente com todas as políticas? Muitas vezes eu não tenho opção real. O consentimento é dado como um cheque em branco, sem que se tenha a opção verdadeira de não consentir. O efeito rede é um pouco perverso nesse sentido, porque favorece aqueles que já têm um grande acervo de usuários e faz com que seja muito fácil a elas impor padrões de comportamento à revelia do que as pessoas efetivamente querem (RONCOLATO, 2018, s/p.).

Agora, com o uso refinado do novo petróleo do século XXI, era possível penetrar nas mais diferentes bolhas sociais nas redes explorando a carência emocional urgente de cada grupo para conseguir poder político, perfeita no contexto de vida em formato de demanda.

É preciso saber, e de preferência de modo não ambíguo e rápido, o que o Outro quer de nós em determinada situação. É o que se poderia chamar de vida em formato de demanda. Onde há um encontro é preciso decidir rápida e iconicamente o que os envolvidos querem, e a negociação tende a ser curta, porque variáveis de contexto se impõem dramaticamente. Se você está no site de restaurantes, já decidiu que quer comida (…) Ele “pratica sua fantasia” de forma generalizada e a céu aberto, como se ele não preocupasse muito em “ser entendido” ou “se fazer compreender” (DUNKER et al., p. 30, 2017).

Nas palavras de um dos delatores[21] sobre das campanhas que a Cambridge Analytica desenvolveu, o cientista de dados Christopher Wylie, tratava-se não de uma empresa de dados, e sim uma máquina de serviço completo de propaganda política, que canalizava todos o fluxo de informações sobre seus adversários de campanha coletando dados do Facebook. “Brincamos com a psicologia de um país inteiro, sem o seu consentimento, em um contexto democrático” (GRAHAM-HARRISON; CADWALLADR, 2018, s/p.). Em depoimento ao parlamento, o delator afirmou que aquilo era uma trapaça em países desenvolvidos e uma forma moderna de colonialismo em países com democracias em desenvolvimento (BBC NEWS, 2018, s/p.). Em 2018, os principais administradores da Cambridge Analytica foram filmados confessando parte de suas estratégias que foram empregadas durante o pleito de Trump:

“Nós fizemos toda a pesquisa, todos os dados, todas as análises, toda a segmentação. Corremos toda a campanha digital, a campanha televisiva e os nossos dados informaram toda a estratégia”. […] A marca foi ‘Defeat Crooked Hillary’ [Derrote a desonesta Hillary, em português]. Você se lembra disso, é claro?”, Ele disse ao repórter disfarçado. “Os zeros, os OO de torto eram um par de algemas … Criamos centenas de tipos diferentes de campanha criativa e as colocamos on-line.” Turnbull disse que a empresa às vezes usava “organizações proxy”, incluindo instituições de caridade e grupos ativistas, para ajudar a disseminar as mensagens — e manter o envolvimento da empresa em segundo plano (GRAHAM-HARRISON; CADWALLADR, 2018, s/p.).[22]

Seria ingenuidade acreditar que todo esse sistema teria dado certo sem a mínima conveniência dos donos das redes sociais no Vale do Silício, que forneceram esses dados, e a própria conveniência em relação à presença de desinformação massiva e manipuladora em suas plataformas.

Entender as redes sociais e seu sistema de lucro é imprescindível para compreender a pós-verdade e sua dinâmica impulsionadora de fake news. Para fazer a leitura de como os perfis são regulados hoje e como essa regulação nos é experimentada justamente como liberdade, é preciso entender o contexto da espionagem e suas relações que foram destacadas no começo da segunda década do século por integrantes do movimento cypherpunk.

O Facebook lucra “reduzindo a distinção dessa linha entre privacidade, amigos e publicidade. E eles também armazenam dados que você acredita serem restritos aos seus amigos” (ASSANGE et al., 2013, p. 72). Jacob Appelbaum, defensor e pesquisador do Tor Project[23], apontou como ‘maluquice’ a entrega passiva de dados dessas empresas que “se transformaram basicamente em uma polícia secreta privatizada” (ASSANGE et al., 2013, p. 75). Andy Müller-Maguhn, co-fundador da European Digital Rights (Edri) — ONG que defende a garantia dos direitos humanos na era digital — traçou o modelo econômico das mídias digitais: “o usuário do Facebook é o produto, e os verdadeiros clientes são as empresas anunciantes. Essa é a explicação menos paranoica e mais inocente do que está acontecendo” (ASSANGE et al., 2013, p. 75). Em 2019, depois da apuração a respeito da desinformação digital da Cambridge Analytica, o Facebook foi classificado pelo Parlamento Britânico como portador de um comportamento de “gângster digital” (CADWALLADR, 2019, s/p.).

“As plataformas da Internet aproveitaram-se de 50 anos de confiança e boa vontade construída pelos seus antecessores”, escreve McNamee[24] no seu livro. “Aproveitaram-se da vantagem da confiança [dos utilizadores] para espionar todas as nossas ações online e fazer dinheiro a partir dos nossos dados pessoais. No processo, fomentaram o discurso de ódio, teorias da conspiração e desinformação e permitiram interferência eleitoral. As empresas escolheram inflacionar os seus lucros artificialmente ao diminuírem a responsabilidade cívica. As plataformas têm prejudicado a saúde pública, enfraquecido a democracia, violado a privacidade dos utilizadores e, no caso do Facebook e do Google, ganhado poder monopolístico. Tudo em nome do lucro. E ninguém a trabalhar do lado de dentro das plataformas da Internet contestou estes efeitos o suficiente para tomar uma posição pública contra.” […] McNamee estava particularmente alarmado com relatos sobre suspeitas de interferência russa nas eleições. Questionava-se se a Rússia estava entre os agentes a usar o Facebook para espalhar notícias falsas e semear a divisão[25]. […] “O problema com o Facebook e com o Google está no modelo de negócio que os obriga a manipular a atenção.” McNamee olha-me directamente nos olhos: “E para manipular atenção precisam de dados, o que os obriga a estar no negócio da espionagem. […] A linha entre a manipulação de atenção e a manipulação do comportamento é muito ténue. Não acredito que o Facebook ou o Google estejam conscientemente a tentar manipular o nosso comportamento. O que acredito é que criaram plataformas que permitem aos anunciantes fazer isso” […] Sem o Facebook, argumenta McNamee, “não há sequer uma hipótese de tanto o ‘Brexit’, como o resultado das eleições em 2016 [vitória de Trump] terem acontecido” (HOYLE; THE TIMES; ATLÂNTICO PRESS, 2019, s/p.).

A mentira online foi incentivada pela indústria sensacionalista de monopólios de redes sociais que lucram com o grande controle de fluxo digital de desinformação — e os altos acessos na web pelas mentiras. Não à toa, a atitude dessas plataformas foi quase sempre de “docilidade em relação a autocracias como a chinesa e a russa” (FILHO, 2018, p. 43).

Essas novas plataformas estão restabelecendo nossa “confiança” forçada nas informações, mais uma vez restabelecendo o papel de guardiões em determinar o que nos é permitido ver e dizer e silenciar toda a dissensão. Em testemunho do poder da informação, esses novos governos estão exercendo seu poder crescente sobre a sociedade humana, não através da força física das armas, mas simplesmente através do controle absoluto sobre o fluxo da informação global, como muitas ditaduras aprenderam ao longo da história. […] No entanto, essas novas ditaduras já estão levantando preocupações sobre sua capacidade de minar o ideal sagrado da democracia de um governo representativo e seu lucro sobre o bem da sociedade (LEETARU, 2019, s/p.).[26]

Além disso “nenhuma dessas organizações tem compromisso ou interesse de sustentar a liberdade de expressão, nem sequer a expertise necessária para discernir entre jornalismo de qualidade melhor ou pior” (FILHO, 2018, p. 43), dessa forma fez-se “das redes sociais uma usina de produção e de distribuição de notícias fraudulentas numa escala que não tem nenhum precedente. Uma sucuri de silício” (BUCCI, 2018, p. 30).

A fórmula de fabricação de valor na indústria do imaginário implementada por empresas como Facebook e Twitter é tão genial quanto devastadora. Nelas, os usuários entram no jogo como mão de obra (gratuita e, logo, escrava), como matéria-prima (também gratuita) e, por fim, como mercadoria. Graças a esse modelo originalíssimo, o Facebook não precisa gastar um centavo para “gerar conteúdo” (no jargão horroroso da indústria), pois seus usuários atuam como digitadores, fotógrafos, locutores, atores, sonoplastas, escritores e tudo o mais. Os usuários são os operários que confeccionam ou extraem a matéria-prima, da qual são também os beneficiadores e empacotadores. E, embora se vejam como “clientes” de um “serviço” que imaginam gratuito, esses usuários são também a mercadoria final. São seus olhos que são vendidos aos anunciantes, o que parece alegrá-los enormemente (BUCCI, 2018, p. 29).

Steve Bannon e a Cambridge Analytica aproveitaram o fato de que a internet não se realizou como utopia de conexão mundial em aldeia global, “em vez disso, acabamos em um domínio feudal, nitidamente partilhado entre as empresas de tecnologia e os serviços de inteligência” (MOROZOV, 2019, p. 15). A disponibilidade de informação não garantiu uma sociedade informada, e a busca por atenção e dados dos usuários rompeu barreiras de privacidade (LEITE, 2016, s/p.)[27]. Foi assim que o monopólio que se construiu em torno das plataformas do Vale do Silício enquanto internet matou a concorrência e pluralidade no acesso à rede, “dominando completamente a nossa maneira de pensar sobre tecnologia e a subversão” (MOROZOV, 2019, p. 16).

Mais informações deveriam significar mais liberdade para enfrentar os poderosos, mas também deram novas e poderosas maneiras de esmagar e silenciar a dissensão. Mais informações deveriam significar um debate mais informado, mas parecemos menos capazes de questionar do que nunca. Mais informações deveriam significar entendimento mútuo através das fronteiras, mas também tornaram possíveis novas e mais sutis formas de subversão (POMERANTSEV, 2019, s/p.).[28]

O pensamento de Bannon e suas táticas de campanha ainda expandiram-se para outros países, chegando na Europa continental e achando voz na insatisfação de grupos nacionalistas contra o bloco Europeu e as políticas de refugiados. Depois de sair da casa branca, Bannon fundou o “The Movement”, alinhada à alt-right, “com o qual se identificam nacionalistas brancos, grupos homofóbicos e anti-imigrantes” (BILENKY, 2019, s/p.). O movimento segue a cartilha da pós-verdade e esteve articulado no compartilhamento de fake news até mesmo para as eleições de 2019 para o parlamento europeu com mais de 500 milhões de visualizações (DW, 2019, s/p.).

A política que coloca a IA (Inteligência Artificial) no centro de suas operações nos promete perfeição e racionalidade. Ao fazer isso, contudo ela aplaina a imensa complexidade das relações humanas, simplificando narrativas complexas em regras algorítmicas concisas e explicações monocausais. Enquanto a nossa experiência fenomenológica do mundo não se conformar com modelos simplistas por trás da maioria dos sistemas de IA, não deveríamos nos surpreender ao ver mais e mais pessoas caindo nas narrativas conspiratórias das fake news (MOROZOV, 2019, p. 142–143).

Bannon desferiu novo golpe contra a mídia tradicional, abrindo caminho para pseudo-teorias institucionalizadas e expandidas pelo público em partidos de extrema-direita[29] na Polônia e na Alemanha, e em políticos reacionários como Marine Le Pen na França (FRANCESE PRESSE, 2019, s/p.), Nigel Farage na Inglaterra, Geert Wilders na Holanda, Matteo Salvini na Itália, (DW, 2018,s/p.), e na Espanha, o partido Vox[30]. O chamado “globalismo”, ideia principal de Bannon, é uma “suposta ação planejada das elites internacionais para conduzir a globalização de acordo com valores liberais” (CHARLEAUX, 2019, s/p.), pregando a destruição dos valores nacionais. Para ser convincente em cada país, foram necessárias versões adaptadas de acordo com cada sociedade e suas histórias, mesclando antigos e novos medos às subjetividades de cada povo. Steve Bannon continua em contato com os maiores movimentos populistas do planeta, teve conexões com políticos da América Latina (MILLS, 2019, s/p.) e até com o novo ministro britânico pró-Brexit, Boris Johnson (CADWALLADR, 2019, s/p.).

O “populismo” que é assim criado não é um sinal de “o povo” se unindo em uma grande onda de unidade, mas é na verdade uma consequência do povo estar mais fraturado do que nunca, um quase inexistente sentimento de nação. Quando as pessoas têm menos em comum do que antes, você precisa criar uma nova versão do “povo” para cada eleição. Como muitas políticas concretas e ideologias coerentes arriscariam alienar partes, essas ‘pessoas pop-up’ precisam estar unidas em torno da personalidade de um líder e de um sentimento vago, como “retomar o controle” ou “otimismo”. Os fatos são um obstáculo em vez de uma ajuda: você não está tentando ganhar um debate racional com eleitores flutuantes; você quer dizer o que chamar mais atenção em grupos de mídia social em bolhas, em que quanto mais escandaloso você for, mais curtidas você terá. De fato, há uma certa pressa em jogar o dedo do meio nos fatos, expulsar a realidade triste. Trump e Johnson são ambos produtos desse ambiente. […] Nas palavras do relatório provisório do comitê parlamentar do Reino Unido sobre notícias falsas, os novos jogos de informação “reduzem o consenso sobre qual debate fundamentado, baseado em fatos objetivos, pode acontecer… o próprio tecido de nossa democracia está ameaçada.”[31] (POMERANTSEV, 2019, s/p.)

3.2 HOOLIGANISMO POLÍTICO

Assim como as verdades unem as pessoas, as mentiras dividem. É assim que as fake news, teorias conspiratórias e o discurso de ódio embarcam no humor difamatório e nas fraudes que mantém o debate acalorado fluindo, alimentando uma noção de urgência em todos os espectros com familiaridade e emocional sempre acionados. Para os partidários da memecracia, a ideia é que enquanto o mundo estiver sendo controlado por uma entidade implacável que manipula a todos e os impede de ver a verdade, os militantes são obrigados a se engajar e se polarizar, em suma espalhar a palavra, motivando ainda mais o comportamento extremista que visa anular ou censurar o outro.

Essa nova forma de polarização que se retroalimenta e radicaliza é um fenômeno global, nascido do crescimento das redes sociais, cujo uso cívico, embora importante, não conseguiu ainda se impor como via principal do debate político digital. Ela está ainda dominada pelo discurso de ódio[32] e de difamação, seja por indivíduos raivosos ou por milícias digitais[33]. (ABRANCHES et al., 2019, p. 19).

No âmbito do debate político online, a polarização ideológica já citada criou o que o cientista político Sérgio Abranches chamou de hooliganismo político, “um espírito violento de time radicalizado projetado na política” (ABRANCHES, 2019, p. 24). Nessa polarização, há a presença de um vocabulário limitado, sem apresentação de um contexto fiel ao fatos objetivos, com palavras de ordem utilizadas pelos líderes ideológicos para apertar em seus fiéis um “botão de pânico na mente, detonando neles o hooligan interno” (ABRANCHES et al., 2019, p. 31).

O hooliganismo político foi observado além do Reino Unido, EUA e Brasil, também em países que tiveram recentemente uma interrupção em suas democracias, como na Turquia de Recep Tayyip Erdogan; na Polônia de Andrzej Duda; na Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro e também na Hungria de Viktor Orbán. Essa estratégia de alimentação de radicalismo é uma saída fácil para o próprio líder se legitimar, no que o cientista político Conrado Hübner Mendes chama de ‘política do pânico e circo’.

Uma das formas de um líder autoritário driblar instituições e, sem necessidade de lei ou qualquer ato formal, impactar o status quo e desestabilizar políticas públicas é a instilação do “pânico e circo” nos seus seguidores. O pânico coletivo brota quando sentimos nossa segurança física, patrimonial, de orientação sexual ou status social ameaçados. Pode ser espontâneo, diante de situações objetivas de crise, ou fabricado. O circo é um espaço de alheamento para o qual o seguidores alimentados pela intensa provisão de descrições falsas ou adulteradas dos fatos se deixam levar. Ao contrário da esfera pública, em que versões e argumentos podem ser testados, o circo é um espaço blindado contra o contraditório. O sentimento é canalizado contra um corpo-estranho, tido como encarnação do mal. Esse corpo pode ser uma pessoa, um grupo, uma identidade ou mesmo uma ideia (ABRANCHES et al., 2019, p. 231).

Na política do pânico e circo é necessário identificar o problema causador da angústia social, apresentar um diagnóstico distorcido, com falsas atribuições e facilidade de digestão entre os partidários, inoculando medo e raiva contra um inimigo, um bode expiatório causador de todos os males. O efeito observado é de uma democracia com déficit de atenção, uma guerra forjada que reproduz a violência “como recurso legítimo, símbolo e ato” (ABRANCHES et al., 2019, p. 55), e que estimula a interpretação discriminadora da lei de acordo com a ideologia[34].

A troca infantilizadora, que transfere ao pai todos os poderes e a ele se submete em troca de segurança, ajusta-se ao figurino antidemocrático ao convencer o eleitor de que suas convicções morais em “bons valores” e tudo o que caracteriza as “pessoas de bem” constituem um elemento protetivo natural contra as mazelas da pobreza e da violência social. A crueldade e a violência serão aplicadas aos outros (ABRANCHES et al., 2019, p. 129).

Com o contágio de afetos em bolhas estabelecido entre as massas ideológicas, a inclusão digital ofereceu uma nova idealização para a política, com esse discurso polarizador e fatalista, os candidatos antissistema. Nele, os afetos assumem uma dinâmica segregativa a ponto de permitir “a formação e a aproximação de grupos separados espacialmente e, ao mesmo tempo a manipulação do anonimato, como observamos no funcionamento de massa” (ABRANCHES et al., 2019, p. 120).

Coletivos agrupados em torno de teorias da conspiração e grupos reunidos contra um inimigo comum[35] se tornaram tão frequentes como pequenas sociedades que gravitam em torno de uma personalidade famosa ou subcelebridade especificamente criada pela sua capacidade de reunir seguidores. […] Junto com isso triunfou uma nova estrutura de grupos familiares em aplicativos de mensagens, submetidos a um funcionamento discursivo de massa, no qual as dimensões pública e privada parecem estar em constante oscilação (ABRANCHES et al., 2019, p. 122).

Para o cientista político Yascha Mounk, a democracia enfrenta agora seu maior desafio. “As pessoas estão perdendo a fé no sistema. Passaram a eleger líderes autoritários que atacam a ordem institucional, com a desculpa de que representam a vontade popular” (FOLHA DE S. PAULO, 2019, s/p.). Para Mounk, a ideia de que liberalismo e democracia andavam de mãos dadas vem sendo atacada tanto por vozes populares insatisfeitas com a falta de participação em estruturas do poder em relação às elites, quanto por líderes populistas que conseguem ecoar essa voz para erodir as instituições. Apesar de oferecer voz aos excluídos, a política de demagogos anti-establishment, a longo prazo, destrói os mecanismos institucionais, dando brecha para a possibilidade de instaurar uma ditadura plena. Diante da possibilidade de melhorar a economia[36], a desconsideração com a primazia democrática e os direitos de liberdade são subjugados pelos cidadãos, em nome do ódio[37] e do resultado a curto prazo.

Eis um ponto que preferimos ignorar, sugere Mounk: a democracia se consolidou à custa do predomínio de um determinado grupo e da exclusão dos demais. Com a crescente reivindicação dos setores excluídos por seus direitos, o sistema chegou a uma encruzilhada. Como consequência, camadas da sociedade que se sentem ameaçadas pelas mudanças aderem a uma ampla revolta contra o pluralismo étnico e cultural (FOLHA DE S. PAULO, 2019, s/p.).

As condutas violentas no dia-dia aumentam conforme a fala de representantes do povo e líderes das instituições indica o alinhamento sistemático a essas pautas de intolerância e perseguição de opositores. Na medida que “induzir o pânico é forma de resistir a processos de mudança social e cultural” (ABRANCHES et al., 2019, p. 232), o líder ideológico se alimenta da omissão dos problemas que importam e os remédios que funcionam, ganhando popularidade no ódio sectário ao invés do progresso social.

Forma-se não só uma batalha pelos fatos, mas também as guerras culturais e de sanidade, onde o hooliganismo político não se esgota, “como se fosse necessário erradicar o inimigo” (ABRANCHES et al., 2019, p. 26), “ela não fala sobre a certeza de ‘quem somos nós’ mas da certeza de quem é o outro […] porque não somos do clube do vizinho. […] Silenciando o outro, tornando-o irracional, louco e desprezível, nós nos normalizamos” (DUNKER, 2017, p. 283). George Orwell, que viveu o hooliganismo político de perto, especificou como é possível transformar a realidade em prol de ideologias:

Se quiser governar e continuar governando, a pessoa deve ser capaz de deslocar o sentido de realidade […] Aqueles que sabem que é impossível conquistar o mundo são os que acreditam mais firmemente no projeto. […] Somente reconciliando contradições é possível exercer o poder de modo indefinido. […] Se quisermos evitar para sempre o advento da igualdade entre os homens o estado mental predominante deve ser, forçosamente, o da insanidade controlada (ORWELL, 2009, p. 254–5).

3.3 CHECAGEM NAS REDES

Era de se esperar que a resposta a tanta desinformação no ambiente político fosse surgir. Em 1991, um jornalista estadunidense, Brooks Jackson, fundou a “Ad Police”, a primeira equipe direcionada a checar propaganda eleitoral, mais tarde viriam a ser batizadas como Agências de fact-checking. A missão inicial da Ad Police era investigar o que o confronto eleitoral entre Bill Clinton e George Bush (pai).

Em 2003, estimulado pelo sucesso do trabalho na CNN, Jackson criou o primeiro site independente de fact-checking. Com a ajuda da Universidade da Pensilvânia e do Annenberg Public Policy Center, inaugurou o FactCheck.org, que está ativo até hoje. Meses depois, foi a vez do jornalista Bill Adair, do “Tampa Bay Times”, lançar uma nova seção em seu jornal, o Politifact.com (também ativo hoje) e ganhar um prêmio Pulitzer com isso. (LUPA, 2015, s/p.)

A febre do fact-checking continuou a se espalhar no mundo. Na América Latina, a primeira agência a nascer foi na Argentina em 2010, a Chequeado, também foi a primeira a fazer a checagem de fatos em debates ao vivo. A expansão do fact-checking fez necessária a criação de uma organização própria, em 2015 o Poynter Institute fundou a rede internacional de fact-checking — IFCN (POYNTER, 2019, s/p.). No mesmo ano, a primeira agência de fact-checking brasileira nasceu, a Lupa, fundada por Cristina Tardáguila e inspirada na Chequeado, e que nas eleições em 2018 checaria mais de 500 conteúdos. Logo outras reconhecidas surgiriam no Brasil como a Aos Fatos, Truco (Agência Pública) e em 2018 a Fato Ou Fake do Grupo Globo — responsável por mais de mil checagens (G1; O GLOBO; EXTRA, 2019, s/p.). Outros sites que checavam boatos já existiam, como o E-farsas, fundado em 2002, mas é em 2015 que o fact-checking se profissionalizou, ano do início do impeachment de Dilma Rousseff, quando os brasileiros já ostentavam o título de terceiro país mais tempo online no celular (FOLHA DE S.PAULO, 2015, s/p.).

Os cinco princípios fundamentais da IFCN são: “o compromisso com ser apartidário e justo; transparência da fonte de recursos e da organização; transparência na metodologia utilizada transparência das fontes e abertura às correções honestas” (MARTINS, 2017, s/p.).

Enquanto a política pública é algo mais perene por se tratar de decisões de Estado, a política governamental tem muito mais a ver com “o poder e com o que as pessoas dizem”. […] É preciso saber diferenciar uma coisa da outra para que a cobertura não perca o foco do que é o mais importante numa história, […] durante a campanha eleitoral de 2016, repórteres da revista perguntaram aos eleitores sobre quais temas eram mais importantes para eles a fim de ajustar o tom da cobertura que fariam. O papel do jornalismo na formulação de política científica baseada em evidências foi a chave das discussões. […] Em um cenário em que “fatos alternativos” têm relevância na arena pública, voltar aos fundamentos do jornalismo sério e investigativo nunca foi tão importante — em especial quando o grupo que dita as regras nem sempre entende a importância de políticas baseadas em evidências. (RODRIGUES, 2019, s/p.)

Apesar da idoneidade e esforço do jornalismo investigativo em busca de um resgate da valorização das fontes, dados e a verdadeira trajetória dos fatos, o fact-checking ainda esbarra em algumas barreiras. A primeira é que “ainda é difícil fazer com que checagens de sucesso em um país cruzem fronteiras e sirvam de aprendizado para outras nações” (TARDÁGUILA, 2019, s/p.), mostrando recursos de manipulação que transgridem as barreiras da língua; a segunda são as fake news que valem-se de manipulações cada vez mais avançadas e realistas — como as deepfakes; a terceira é justamente o oposto, as cheapfakes, “vídeos manipulados de forma tosca e sem muito cuidado, mas que, mesmo assim, viralizam e convencem as pessoas” (TARDÁGUILA, 2019, s/p.), principalmente por saber explorar o ambiente cínico de engajamento divisivo, chocante e conspiratório que as plataformas sociais estimulam (SCHWARTZ, 2019, s/p.).

Isso porque as mentiras também se tornaram institucionalizadas. Existem agora sites inteiros cuja única missão é publicar notícias on-line sensacionalistas ou fraudulentas. Páginas partidárias do Facebook entraram em ação; uma análise recente do BuzzFeed sobre as principais páginas políticas do Facebook mostrou que os sites de direita publicaram informações falsas ou enganosas 38% do tempo, e os sites de esquerdas o fizeram 20% do tempo. “Onde fraudes antes eram compartilhadas por sua tia-avó que não entendia a internet, a desinformação que circula online agora está sendo reforçada por campanhas políticas, por candidatos políticos ou por grupos amorfos de tweeters trabalhando em torno das campanhas”, disse Caitlin Dewey , um repórter do The Washington Post (MANJOO, 2016, s/p.).

O ex-presidente do grupo Estado, Silvio Genesini, apontou outras dificuldades do fact-checking, como a “clara a dificuldade em carimbar muitas afirmações taxativamente de verdadeiras e falsas” (GENESINI, 2018, p. 53) diante de diversas classificações que as agências usam, além disso, mesmo com metodologia metodicamente aplicada, é impossível administrar tempo e dinheiro para montar uma equipe extensa “em quantidade suficiente para conferir tudo o que de relevante se publica na internet” (CASTRO, 2018, p. 17), além disso, as campanhas que as redes sociais tentaram desenvolver para frear a desinformação não têm surtido muito efeito.

A batalha pelos fatos não circunscreve somente o jornalismo. Depois do escândalo da Cambridge Analytica, o Facebook chegou a lançar campanhas junto às agências de fact-checking e passou a tentar auxiliar na apuração contra fake news, sinalizando um alerta em cada conteúdo suspeito com a intenção de orientar os internautas no combate a desinformação. A campanha foi abandonada logo depois porque a plataforma considerou “que o ícone de advertência não só não é eficaz, como pode produzir o efeito contrário.” (RAIS, 2018, p. 121), a chamada dissonância cognitiva[38].

A negação nos incita a reconfirmar nossas crenças e a agir dissociativamente em relação ao que sabemos, segundo a fórmula “sei muito bem algo, mas continuo a agir como se não soubesse”, o que torna o sujeito eclético ou refratário à contradição. A reafirmação de um ponto dogmático de certeza opera de forma complementar. O procedimento consiste em fazer crescer o número de concordantes, aumentando com isso o sentimento de verdade, o que reassegura a identificação do sujeito com o grupo. (ABRANCHES et al., 2019, p. 127)

O Facebook também tomou medidas extremamente danosas no combate às fake news, por exemplo, quando anunciou que mostraria menos postagens do jornalismo profissional na plataforma — o que facilita a propagação de boatos entre perfis — e que causou, por exemplo, a saída da Folha de S. Paulo da plataforma por reforçar “a tendência do usuário a consumir cada vez mais conteúdo com o qual tem afinidade, favorecendo a criação de bolhas de opiniões e convicções, e a propagação das ‘fake news’” (FOLHA DE S. PAULO, 2018, s/p.); O Facebook também usou os preceitos de liberdade de expressão para anunciar nova política na plataforma de não deletar “nenhuma postagem de páginas oficiais de políticos. A medida vale, inclusive, para propagação de fake news e discurso de ódio” (FIORE, 2019, s/p.). Seja por as barreiras cognitivas ou algorítmicas, a desinformação persiste com larga vantagem à frente dos defensores da verdade objetiva.

Um estudo da Oxford University aponta que a rede social de Mark Zuckerberg continua sendo mais danosa do que Twitter, Instagram ou qualquer outra plataforma de mídias sociais quando se fala do compartilhamento de fake news. O número de países que começaram campanhas de desinformação aumentou de 28 para 48 entre 2017 e 2018. Em 2019, o número chegou a 70. De acordo com o relatório, o Facebook permanece como a plataforma escolhida para manipular usuários. Foram encontradas evidências de campanhas propagandísticas planejadas para o Facebook em no mínimo 56 países (FIORE, 2019, s/p.).

NOTAS

[1] O psicanalista Wilhelm Reich chama de máquina cerebral o comportamento do homem sem liberdade, que funciona de modo automático, mecanicista e que rejeita a ciência ao aliar-se ao misticismo que “encontram a sua expressão máxima na explosão da peste da ditadura: uma concepção hierárquica do Estado, uma administração mecânica da sociedade, medo de responsabilidade, um anseio de autoridade” (REICH, 2001, p. 319–320).

[2] Daniel Patrick Moynihan’s well-known observation that “Everyone is entitled to his own opinion, but not to his own facts” is more timely than ever: polarisation has grown so extreme that voters have a hard time even agreeing on the same facts. This has been exponentially accelerated by social media. (tradução livre).

[3] Parte desse empoderamento de opiniões do senso comum advém da inclusão digital cada vez mais crescente e que confrontou a autoridade vertical e os fundamentos do poder das evidências científicas. “Isso leva à tentação de considerar que outras ideias, ligadas a crenças seculares, também poderiam ser elevadas à condição de participante legítima do jogo do conhecimento” (ABRANCHES et al., 2019, p. 125).

[4]A Tobacco Industry Research Comittee foi criada por grandes empresas de cigarro em 1953 para atacar estudos científicos que apontavam o tabaco como responsável pelo grande aumento de diagnósticos de câncer de pulmão. Eles também atacaram estudos científicos, apesar de lançarem dúvidas sobre eles em vez de refutá-los.

[5] Teorias da conspiração encontram em identidades e visões culturais em comum um ambiente fértil para a instalação de um culto. Um culto é um grupo ou movimento social liderado por alguém carismático e autoritário — que exige ser adorado com uma figura divina — e que promete redenção aos seus fiéis. O segundo ponto crucial de um culto é que o grupo possua uma espécie de plano de doutrinação, uma lavagem cerebral. Por fim, há a exploração dos que aderem ao culto, seja sexual, financeira ou mesmo de militância assídua.

Os cultos surgem não para explorar seus seguidores, mas para ajudá-los a sobreviver às ameaças externas e crises sociais ou políticas: é a redenção ideológica à verdade do líder do culto em prol da salvação da própria identidade do militante. A insatisfação política é importante para trazer novos fiéis desiludidos que buscam uma comunidade. Nos EUA, a porcentagem de americanos que confiavam no governo despencou da casa dos 70% para 30% entre 1964 e 1978, quando líderes como Charles Manson, Jim Jones, Shoko Asahara e outros conspiracionistas ganharam seguidores dispostos a cometer as atrocidades mais flagrantes por seus líderes. O culto não é uma questão de um sistema de crenças, mas de comportamento de grupo e seus métodos usados para manipular as pessoas.

Existem 7 elementos que, segundo a Ciência Social, podem levar à doutrinação dos cultos:

1) quando o fiel passa por dificuldades na vida, ou alguma transição difícil que o deixa vulnerável 2) venda sútil: o flerte com a conspiração que promete redenção 3) criação de uma nova realidade por meio de um sistema de auto isolamento que vai criando dependência do líder 4) quando as relações humanas são deixadas em segundo plano em prol da ideologia e o amor pelo líder idolatrado, visto como único capaz de mostrar ‘a verdade’ e a libertação para seus seguidores 5) Criação de um inimigo externo que ligue ainda mais a dependência dos militantes com aquele líder protetor — é o estado de negação do próprio discernimento 6) Influência alheia: quando o desejo humano de ser parte de um grupo deturpam por completo as visões da realidade objetiva 7) Quando todas essas etapas servem para atender aos caprichos do líder narcisista sociopata. (EXPLAINED CULTS, 2019, s/p.)

[6]Da mesma forma que há uma tendência inata a creditar em informações que confirmem crenças já existentes, “temos uma propensão a descartar tudo o que contradiz nossa visão de mundo”. Os consumidores de notícias, ao contrário de cientistas e jornalistas, não procuram deliberadamente pontos de vista alternativos. “Eles são impulsionados pelo desejo de preservar seu ego” (BERGAMASCO; BRONZATTO; GONÇALVES, 2018, p. 50–1). Nas redes sociais, a falsa credibilidade montada sob a reputação de familiaridade com amigos e outros componentes das bolhas sociais faz com que os filtros cognitivos se enfraqueçam, pois misturam sensacionalismo de manchetes com iscas emocionais de fácil propagação (BERGAMASCO; BRONZATTO; GONÇALVES, 2018, p. 50–1).

[7] O estado de debate em eterno presente é um ataque às memórias da democracia, pois perpassa o “símbolo de uma sociedade que perdeu sua crença na história. Como se o passado, definitivamente terminado, nada mais tivesse a dizer, e que o futuro decididamente demasiado incerto, não exigisse ser construído a partir de hoje.”. Em outras palavras, é construída pela noção de que o passado e o futuro podem ser ignorados pela noção de viver sem consequências e lições. Não se trata de glorificar o passado e sim, “um olhar crítico e bifronte: olhar para o passado para melhor enxergar o presente e vislumbrar o futuro, eis a questão, eis o desafio.” (ARAÚJO, 2018, s/p.). Como defende o historiador Timothy Snyder “se queremos que a democracia funcione, precisamos assegurar que temos políticas de educação e de imprensa que mantenham as pessoas vivendo num mundo onde o tempo avança para frente”. (PESCHEL, 2019, s/p.)

Valendo-se de 1984 de George Orwell, a manipulação da memória é o ingrediente fundamental para governos totalitários — representado pelo Ministério da Verdade, que manipulava documentos e peças de entretenimento para legitimar a infalibilidade do Big Brother e do Partido. “É reescrever o passado, amoldando-o aos interesses do partido e do tirano, para tanto, apagando ‘fatos e personagens indesejáveis’, promovendo, assim, um oportuno revisionismo histórico”. (ARAÚJO, 2018, s/p.)

[8] O psicanalista Christian Dunker afirma que essa diminuição de intervalo entre informações também estabelece uma proximidade entre os ideais e os objetos, ou seja, entre o simbólico desejado e o fato em si, o que estimula “a ilusão subjetiva de que imagem e objeto se acasalam perfeitamente em ideais realizados de sucesso, felicidade ou beleza. Essa ilusão de adequação induz dolorosos efeitos de descompressão narcísica” (ABRANCHES et al., 2019, p. 122). Para Dunker, foi isso que divorciou rapidamente a opinião pública com as democracias, pois seu ideal foi rapidamente desconstruído por uma sequência de informações, falsas ou não, mas que produziram em cada bolha social uma reação de descontentamento acentuado. Na sequência, a segregação aumentou, pois quando os meios democráticos parecem muito distante do ideal, forma-se uma espécie de disputa em torno das exceções, “pois há indivíduos que parecem mais indivíduos do que outros” (ABRANCHES et al., 2019, p. 124).

[9] O neurocientista James L. McGaugh observou em seu artigo de 2013 “Making Lasting Memories: Remembering the Significant”, que aumentar a excitação emocional durante uma experiência realmente estimula sua amígdala (a parte do cérebro responsável por emoções, instintos de sobrevivência e memória) a liberar hormônios do estresse — substâncias químicas secretadas em resposta a ocasiões estressantes ou excitantes — tornando mais provável que essas experiências sejam codificadas como memórias de longo prazo.

[10] When using Snapchat, participants were found to have even greater memory impairment than in photo-taking alone, potentially because of greater distractions like filters, effects, or text additions in the app interface. With this newfound understanding and McGaugh’s previous findings on the connection between emotional arousal and memory in hand, it suddenly becomes clear how adding Stories on a platform like Instagram can profoundly impact a whole generation’s ability to stay present and engaged […] “You’re stepping back from the present moment, and that’s what’s causing that disengagement. You’ve literally put a screen between yourself and the event that you’re trying to record. And it seems like it would take a little bit of time to recover from that attentional disengagement, to get back in the mode of ‘OK, I’m living in the present experience. I’m being present,’” Soares elaborated. […] Interrupting moments is, ultimately, at the crux of the memory-impairment effect that accompanies social media use. (tradução livre).

[11] O duplipensamento é um ancestral da pós-verdade, pois permite que mesmo diante dos fatos, ou de memórias que atestem o autoengano, as pessoas possam alterar suas percepções de forma automática — por meio da má compreensão dos argumentos mais simples caso sejam antagônicos à sua ideologia, e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de levar a um pensamento herege à sua ideologia. Era pelo duplipensamento que os cidadãos do romance de Orwell viviam sob o regime do Big Brother evitando os fatos ou distorcendo-os.

[12] In a classic 1999 experiment, psychologists Christopher Chabris and Daniel Simons showed people a video of basketball players, some wearing white shirts, some wearing black, and asked them to count how many times the players in white passed the ball. Halfway through the film, a woman in a gorilla suit saunters into the scene, faces the audience, thumps her chest and walks away. Extraordinarily, more than half of Chabris’s and Simons’s subjects were so intent on watching the ball being thrown that they failed to see the gorilla. The experiment poses important questions about the reliance of eyewitness accounts. It also has a bearing on the way we access information, including news. Two stories last week illustrate how we often see what we expect, or want, to see. (tradução livre)

[13] Memes são “ideias, conceitos e valores transmitidos e perpetuados conforme a adesão das pessoas. Tudo isso porque há uma enorme repetição. Se o meme não for passado adiante, ele simplesmente morre” (ROSA, 2018, s/p.).

[14] “É uma estratégia de marketing que usa dados do consumidor e informações demográficas para criar […] segmentos de público-alvo. É possível prever o comportamento […] e influenciar esse comportamento por meio de publicidade hiper-direcionada” (AZEVEDO, 2018, s/p.)

[15] Big Data é a coleta, armazenamento e processamento do grande volume de dados produzido diariamente no ambiente digital. Nas redes sociais, o Big Data é utilizado em situações como reconhecimento facial, compartilhamento de localização, links acessados e a interconexão entre dados cruzados com outras mídias, estabelecendo preferências e padrões para oferecer uma experiência online cada vez mais customizada.

[16] Robert Mercer é grande financiador do partido republicano e herdeiro da Medallion — um fundo de investimentos que usava Big Data e que chegou a ser considerada uma máquina de fazer dinheiro (JORNAL DE NEGÓCIOS, 2016, s/p.). Steve Bannon já declarou, entre outras frases, que “a escuridão é boa. (…) Isso é poder. Isso só nos ajuda quando eles (liberais) erram. Quando eles estão cegos sobre quem somos e o que estamos fazendo” (DIAZ, 2016, s/p). Seu pensamento, é que em uma sociedade de transição como atualmente, só é possível avançar por meio da destruição dela.

[17] As chamadas operações psicológicas norte-americanas, ou psyops, foram usadas em populações muçulmanas no Iraque e no Afeganistão depois que os ataques terroristas do 11 de setembro. A intenção era converter a população a favor da intervenção dos EUA. “Procuram mudar as crenças e o pensamento político de pessoas por meio da ‘dominância informativa’, técnica que inclui rumores, desinformação e a circulação de notícias falsas” (O GLOBO E AGÊNCIAS INTERNACIONAIS, 2018, s/p.).

[18] O movimento QAnon foi criado em 2017 num fórum da deep web. Trata-se de uma conspiração que inicialmente teria como objetivo minar o governo de Donald Trump e seu eleitorado. Segundo seus adeptos, “quase todos os presidentes antes de Donald Trump eram ‘criminosos’ que faziam parte de uma organização global de pedofilia satânica” (HALL, 2018, s/p.). Ela se expandiu dos EUA para a Europa em uma velocidade imensa, “sequestrando debates políticos nas redes sociais e mesmo protestos nas ruas nas últimas semanas.” (EBNER, 2019, s/p.). Segundo especialistas, o movimento vem criando campanhas digitais sofisticadas sobre políticas nacionais, regionais e globais, e a comunidade cresceu entre militantes de extrema-direita e grupos reacionários — inclusive tendo ligações com o Brexit e em pleitos na Alemanha.

[19] The virality of conspiracy theories about the EU and the political establishment provides a fertile playground for populist parties. QAnon adherents organise themselves on encrypted apps such as Discord and Telegram, linking the American-centred conspiracy theory to local contexts. Emotionally manipulative and tightly organised campaigns have allowed them to gather tens of thousands of supporters across Europe. They produce videos, disinformation databases and run trainings on meme creation and psychological warfare. QAnon has even adopted its own currency, called “Initiative Q”, which its founders want to turn into “the next bitcoin”. […] Across Europe, conspiracy theories that mix old antisemitic tropes with new ones that demonise migrants and Muslims have gained huge traction since the refugee crisis in 2015. A recent study showed that a stunning 60% of Brits believe in at least one conspiracy theory. The ideas that a cabal of global elites run the world, that there is a plot to replace white English natives with Muslim migrants and that the authorities are covering up immigration numbers are among the most commonly held (tradução livre).

[20] Em 2018 Christopher Wylie, ex-funcionário e um dos delatores do esquema da Cambridge Analytica, informou que depois da eleição dos EUA, quando a empresa ganhou contratos com o Pentágono, a Cambridge possuía perfis psicológicos de mais de 230 milhões de norte-americanos (CADWALLADR, 2018, s/p.). Outra ex-funcionária da Cambridge Analytica, Brittany Kaiser, entregou evidências de que mais de 80 milhões de perfis no Facebook tiveram seus dados comprometidos (HERN, 2018, s/p.).

[21] Autora das reportagens das confissões de Christopher e de um trabalho de dois anos denunciando o envolvimento da Cambridge Analytica no Brexit e na eleição de Donald Trump, Carole Cadwalladr, do The Guardian, foi indicada como finalista ao prêmio Pulitzer de reportagem nacional.

[22] “We did all the research, all the data, all the analytics, all the targeting. We ran all the digital campaign, the digital campaign, the television campaign and our data informed all the strategy,”. […] The company’s head of data, Alex Tayler, added: “When you think about the fact that Donald Trump lost the popular vote by 3m votes but won the electoral college vote that’s down to the data and the research. “You did your rallies in the right locations, you moved more people out in those key swing states on election day. That’s how he won the election.” […] “The brand was ‘Defeat Crooked Hillary’. You’ll remember this of course?” he told the undercover reporter. “The zeros, the OO of crooked were a pair of handcuffs … We made hundreds of different kinds of creative, and we put it online.” Turnbull said the company sometimes used “proxy organisations”, including charities and activist groups, to help disseminate the messages — and keep the company’s involvement in the background. (tradução livre)

[23] Sistema on-line que possibilita às pessoas o acesso à internet pelo anonimato.

[24] Roger McNamee é investidor do Vale do Silício há mais de 35 anos e virou mentor de Mark Zuckerberg quando o Facebook tinha apenas 2 anos. Esteve em contato com o fundador do Facebook até 2009, ajudando na contratação da número 2 da empresa, Sheryl Sandberg.

[25] A Rússia foi suspeita de ter mantido contatos com figuras do Brexit (CADWALLADR, 2018, s/p.) (HARDING, 2018, s/p.) e com Donald Trump em táticas de desinformação massiva online. Depois de 22 meses investigando a interferência russa nas eleições dos EUA em 2016, o procurador-especial Robert Mueller chegou à conclusão de que não houve conluio por parte de Trump com os russos, mas houve interferência por parte de hacking russo de computadores democratas e uso massivo de notícias falsas nas redes sociais (G1 MUNDO, 2019, s/p.). Em depoimento ao Congresso dos EUA em julho de 2019, o procurador declarou não ter absolvido o presidente, que ainda pode ser processado depois de deixar o cargo (G1 MUNDO, 2019, s/p.).

[26] These new platforms are reestablishing our forced “trust” in information by once again reestablishing the role of gatekeeper in determining what we are permitted to see and say and silencing all dissent. In testament to the power of information, these new governments are wielding their ever-growing power over human society not through physical force of arms but merely through absolute control over the flow of global information, much as all dictatorships have learned through history. Putting this all together, to understand the path forward towards combatting misinformation, we must recognize that what we think of as “truth” was merely the byproduct of enforced information scarcity by our traditionally orderly information ecosystem ruled by gatekeepers that ensured political and economic stability through the creation of artificially limited information constructs designed to perpetuate the narratives of the state and business leaders. […] Yet, these new dictatorships are already raising concerns over their ability to undermine democracy’s sacred ideal of a representative government and their placement of profit over the good of society. (tradução livre).

[27] A política de privacidade adequada, além de estar bem explicitada nos termos de privacidade, deve englobar questões como, “saber precisamente que tipo de dados a empresa precisa armazenar no site, determinar as políticas através das legislações aplicáveis ao tipo de site que se pretende ter, informar explicitamente como usará as informações fornecidas por aqueles que acessam” (LEITE, 2016, s/p.).

[28] More information was supposed to mean more freedom to stand up to the powerful, but has also given the powerful new ways to crush and silence dissent. More information was supposed to mean a more informed debate, but we seem less capable of deliberation than ever. More information was supposed to mean mutual understanding across borders, but it has also made possible new and more subtle forms of subversion (tradução livre).

[29] Como extrema-direita, o historiador italiano Emilio Gentile, classifica qualquer movimento que “se oponha aos princípios da Revolução Francesa de igualdade e liberdade, que afirma a primazia da nação, mas sem necessariamente ter uma organização totalitária ou uma ambição de expansão imperialista.” (ATTANASIO, 2019, s/p.)

[30] Para George Lakoff, professor de Linguística na Universidade da Califórnia, o partido de extrema-direita na Espanha, o Vox, é alinhado com as estratégias de comunicação trumpista nas redes sociais (APPLEBAUM, 2019, s/p.). São as ‘bolhas reforçadas’, que não se limitam ao compartilhamento de notícias fraudulentas como também no controle total do fluxo de informações para se vitimizar pelas seguintes etapas: “o enquadramento preventivo (ser o primeiro a enquadrar uma ideia), a distração (desviar a atenção dos assuntos reais), mudar de assunto (atacar o mensageiro) e o balão de ensaio (testar a reação pública)” (HANCOCK, 2019, s/p.).

[31] The “populism” that is thus created is not a sign of “the people” coming together in a great groundswell of unity, but is actually a consequence of the people being more fractured than ever, of their barely existing as one nation. When people have less in common than before, you have to create a new version of “the people” for every election. As too many concrete policies and coherent ideologies would risk alienating parts, these pop-up people need to be united around a leader’s personality and a vague feeling, such as “take back control” or “optimism”. Facts are a hindrance rather than a help: you are not trying to win a rational debate with floating voters; you want to say whatever gets more attention in fragmented social media groups, where the more outrageous you are the more likes you’ll get. Indeed there is something of a rush in throwing a middle finger up to facts, farting at glum reality. Trump and Johnson are both products of this environment. […] In the words of the interim report of the UK parliamentary committee on fake news, the new information games “reduce the common ground on which reasoned debate, based on objective facts, can take place … the very fabric of our democracy is threatened.” (tradução livre)

[32] Como sustenta Judith Butler, a linguagem opressora do discurso de ódio não é mera representação de uma ideia odiosa. “Ela é em si mesma uma conduta violenta, que visa submeter o outro, desconstruindo sua própria condição de sujeito, arrancando-o do seu contexto e colocando-o em outro onde paira a ameaça de uma violência real a ser cometida — uma verdadeira ameaça, por certo” (RIBEIRO, 2018, p. 65).

[33] A tática das milícias digitais, ou a fazenda de trolls (LEE, 2018, s/p.), é uma estratégia política que busca fabricar divisões e consensos na internet por meio da repetição de notícias fraudulentas, memes preconceituosos e discurso de ódio (BENNER; MAZZETTI; HUBBARD; ISAAC, 2018, s/p.). São várias contas anônimas, fabricadas ou controladas por um usuário, uma empresa ou um grupo político que plantam desinformação e buscam segregar grupos pela trollagem em torno de uma pauta ou defendendo um político a todo custo, por meio de intimidações massivas a outros usuários e valendo-se do princípio de repetição de falsidades na internet para gerar credibilidade (CHEN, 2015, s/p.). Em pelo menos 30 países os governos empregam exércitos de formadores de opinião ou destruidores de dissensão “para difundir suas ideias, impulsionar suas agendas e rebater as críticas nas redes sociais, segundo um relatório publicado na semana passada pela instituição Freedom House” (SALAS, 2017, s/p.).

[34] Contaminada pelas ideologias extremistas, as instituições acabam por ‘tomar um lado’, e no caso do hooliganismo político, o apoio popular é fundamental para o apoio de uma lei em estado de exceção para alguns em detrimento do projeto de poder de outros: uma lei pessoalizada. “Amam a lei que os protege, mas odeiam a que os restringe e limita […] Surge então uma figura paterna, a quem devemos incondicionalmente obedecer em troca de segurança; caso contrário a lei se inverterá de modo punitivo ou persecutório” (ABRANCHES et al., 2019, p. 128).

[35] Christian Dunker afirma que a busca por um inimigo em comum acompanha a inadequação com as democracias liberais no mundo, na medida em que a expressão de um mito do indivíduo comum ascende na opinião pública, “a expansão da democracia cria um empuxo ao herói, como lugar de excepcionalidade, induzindo a idealização de líderes de um lado e o sentimento de inadequação e fracasso de outro” (ABRANCHES et al., 2019, p. 124). Analisando o que Tocqueville havia observado a respeito da revolução americana de 1776, Dunker afirma que o progresso democrático deixa a comunidade e as tradições que a tornaram possível no passado, produzindo não só um conflito imaginário entre heróis e ninguéns, como também “um efeito de individualismo, egoísmo e indiferença” (ABRANCHES et al., 2019, p. 125)

[36]Mounk afirma que a democracia não é mais o único caminho para a prosperidade econômica. No século 21 de China, Rússia, Turquia e Arábia Saudita, consolidou-se o fenômeno do capitalismo autoritário, representado por regimes que desrespeitam direitos individuais, mas preservam relativa liberdade de mercado. “Segundo projeções do FMI citadas no artigo, nos próximos anos o PIB somado de países classificados como “não livres” irá superar a junção de democracias como Estados Unidos, Alemanha, França e Japão.” (FOLHA DE S. PAULO, 2019, s/p.)

[37] Outro aspecto para fomentar o autoritarismo de populistas é o medo com mudanças sociais e étnicas. “A imigração em massa e os movimentos de minorias que alteraram a configuração das identidades nacionais são alguns exemplos.” (FOLHA DE S. PAULO, 2019, s/p.)

[38] A dissonância cognitiva ocorre quando as pessoas percebem que enganadas frente aos dados ou informações que confrontam suas visões de mundo, procuram a negação ou estabelecem falsas conexões para obter conforto cognitivo e manter sua narrativa ou coesão de grupo. (FERNANDEZ; FERNANDEZ, 2014, s/p.) Esse conflito de duas ou mais crenças contraditórias habitando a mente humana foi apontada pelo escritor Thomas Pynchon como o ‘duplipensamento’ de George Orwell em 1984 (ORWELL, 2009, p. 400).

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