Afinal, qual a chance do Brasil virar uma Venezuela?

Juão Rodriguez Kyntyno
10 min readOct 25, 2018

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Tem sido um ano difícil para a democracia. Na ‘celebração’ dos 30 anos da Constituição Federal já vimos execução de vereadora, facada em presidenciável e tiro em caravana de partido. No meio disso ainda temos que enfrentar a chuva de boatos que tem circulado em todos os lugares, incluindo a de que o Brasil corre risco de virar uma Venezuela.

Pra começar a necessário entender o que aconteceu e acontece com o país e suas diferenças em relação ao Brasil.

A política venezuelana passou por diversas turbulências, sua economia diferentemente daqui depende muito de um só produto: o petróleo, a Venezuela possui a maior reserva do combustível no mundo.

A crise aumentou nos anos 90 quando militares de extrema esquerda lideraram duas tentativas de golpes. Entre os autores um nome se destacou, Hugo Chávez. O paraquedista chegou a ser preso, mas depois que saiu da cadeia concorreu às eleições de 98 e ganhou. Marcado por uma política assistencialista chamada de socialismo do século XXI, Chavéz foi ganhando popularidade com suas ações e discursos populistas, ele se dizia um herdeiro de bolívar, importante revolucionário na América Latina. Sempre com o apoio majoritário do povo e de militares, Chavéz aprovou uma nova constituição e nomeou novos ministros para a suprema corte do país, aos poucos o chavismo foi dissolvendo as instituições. Ele também não perdeu tempo e aumentou a estatização da economia, garantiu sua reeleição e chegou até a sofrer um rápido golpe.

Chávez e Maduro

Quando o petróleo caia, a economia venezuelana ia junto, nesse vai-vém logo o país foi tomado pela polarização e radicalismo. Chavéz começou a mostrar seu lado mais ditatorial com demissões em massa nas estatais, censura na imprensa e de opositores, além de eleições acusadas pela oposição como fraudulentas. Com 4 pleitos ganhos em sequência, o militar acabou não cumprindo seu último mandato e morreu em 2012. Nicolás Maduro, o aprendiz sindicalista de Chávez, concorreu e assumiu por magra vantagem um país ainda mais dividido e carente. Maduro respondeu no chumbo o povo que foi às ruas protestando pela volta das garantias sociais. Com militares caçando opositores, diversos jornalistas e magistrados tiveram de se exilar, organizações de direitos humanos acusam o governo de desaparições, tortura e execuções de dissidentes.

Entenda mais sobre a crise da Venezuela nesse vídeo do Nexo ou nessa matéria da BBC

O Brasil tá longe disso, né?

Amigos

Como já falei sobre o fascismo, ataques a imprensa e ao judiciário podem ser sinais de que não estamos tão seguros assim e podemos sofrer sim uma guinada totalitária, ainda que seja bem difícil de dizer ao certo.

O que se sabe é que o Brasil enfrenta o maior risco a sua democracia desde 1985. E não, não associo esse risco estritamente ao PT e sim aos ataques à instituições e outras formas de pensar, principalmente por Fake News. Obviamente a posição não consensual dentro do partido dos trabalhadores a respeito da cleptocracia venezuelana e de ditaduras na Nicarágua e Cuba sugere uma hipocrisia em apoiar “ditaduras do bem”.

A autocrítica de Haddad: faltou combinar com 'russos' como Dirceu

Fake News e PT

A forma como o PT tratou a nomeação para cargos no judiciário diz muito sobre sua conduta democrática

Ainda que não haja essa autocrítica no partido de forma homogênea, é errado acusar o PT de chavismo quando se leva em conta que em 13 anos de administração no país o partido nunca censurou a mídia, perseguiu opositores ou impediu o judiciário de fazer o seu trabalho. Quando o PT perdeu no jogo, tentou sair por meio dele. Não me convence o argumento de que tentaria fazer isso agora sem apoio militar e frente a um congresso mais conservador e tão antipetista. Os petistas nomearam juízes que foram de encontro a seus interesses, Barbosa, Janot, Barroso e Fachin são exemplos de juristas que não passaram pano para o partido e foram nomeados na gestão de Lula e Dilma. Desde então a democracia seguiu o seu fortalecimento de gestões anteriores de FHC, diferentemente da tumultuada história venezuelana.

Por questão ideológica, o PT pode ter associado alguns de seus integrantes ao chavismo com algumas declarações preocupantes na política externa, apesar de nunca ter sinalizado fazer o mesmo aqui.

Foro de São Paulo e URSAL

Ciro não entendeu nada

Criado nos anos 90, essa espécie de conselho que envolvia os líderes latino-americanos se opunha a medidas neoliberais radicais e ao imperialismo que a região enfrentou antes e durante a guerra fria. Depois da queda de governos populistas de Evo Morales, Lula e Chávez a assembleia perdeu muita importância e serve hoje como um porta-voz do PT, muita fala e pouca prática.

A polêmica que se criou foi que a assembleia serviria para ‘montar uma união de ditadores’, a União das Repúblicas Socialistas da América Latina (URSAL), o que era justamente o oposto da ideia inicial do movimento, como você pode ler abaixo.

“Nós, organizações políticas reunidas em São Paulo, encontramos um grande alento no surgimento e desenvolvimento de vastas forças sociais, democráticas e populares no Continente que se opõem aos mandados do imperialismo e do capitalismo neoliberal, e à sua sequela de sofrimento, miséria, atraso e opressão antidemocrática
Declaração da primeira assembleia do Foro de São Paulo, confira a matéria completa sobre como funciona o conselho aqui.

A sigla URSAL foi a invenção de uma jornalista, uma brincadeira no começo dos anos 2000 com o Foro de SP. Longe de julgar a validade do argumento, esses governos acreditavam que o socialismo era o refúgio para a democracia nas Américas e o afastamento da soberania imperialista estadunidense, numa corrente própria de desenvolvimento latino. Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio e um dos símbolos da democracia contemporânea, chegou a citar o exemplo importante do Brasil para continuidade da tradição democrática na América Latina:

E Bolsonaro?

Não serei desonesto a ponto de citar exclusivamente a entrevista de Bolsonaro para o Estadão em 99. Na época o deputado elogiou Chávez (e não é fake), não há como ter a informação se ele mudou de opinião ou não, porém o registro é importante para mostrar que o candidato um dia já se viu como um chavista e tentou usar a imagem do militarismo como um repelente do comunismo. Liberal ou não, Bolsonaro se assemelha mais à Chavez pelo apoio ao autoritarismo e o populismo.

A história mostra que não se dá golpe sem apoio das Forças Armadas. Bolsonaro também ficou famoso pela sua exaltação da ditadura militar, época de pouca liberdade de expressão, controle midiático e do judiciário.

O candidato do PSL é reprovado em todos os quatro quesitos usados para a identificação de um autoritário: tem pouco comprometimento com as regras da democracia, nega a legitimidade de oponentes, encoraja a violência ou é tolerante com ela, assim como demonstra disposição para restringir liberdades. Na avaliação de Levitsky, é um erro achar que Bolsonaro não fará o que diz. A sobrevivência política de populistas como Bolsonaro, na visão dele, depende de cumprir as promessas de atacar o sistema e sepultar a elite política. Em situações de polarização, como a do Brasil, o cidadão despreza tanto seus rivais ideológicos que passa a aceitar ações autoritárias.

Steven Levitsky, professor de Harvard, em entrevista para o Nexo

O The Guardian comparou a eleição do candidato como o começo de uma nova Venezuela. Já o New York Times e o The Economist, respeitadíssimos veículos internacionais e liberais— mostram uma leitura cética e até triste com a possibilidade de vitória do PSL no pleito deste ano, diversos intelectuais e artistas também partilham da mesma opinião.

Aos fatos

Tudo piora quando se leva em conta que essa chapa tem feito pouco caso na hora de se pronunciar sobre boatos que colocam em risco o ambiente democrático do país, como a de que o Brasil vendeu os códigos da urna pra Venezuela ou que ainda há fraude nas urnas em uma eleição aprovada internacionalmente. Essa seletividade de jogar o jogo do sistema democrático quando convém é imatura e perigosa porque dá espaço para que os eleitores façam o mesmo.

Símbolo democrata, FHC não poupou Bolsonaro

“O receio que eu tenho é de que Bolsonaro atue de forma a lentamente erodir as instituições democráticas como Chávez fez de forma muito eficiente na Venezuela. Eu comparo frequentemente a Venezuela e a administração de Chávez à metáfora de ferver um sapo. O sapo não foge da panela e não percebe que vai morrer quando você vai ajustando a temperatura lentamente”

Cientista Político e Professor da American University, Matthew Taylor lembra que os chavismo promoveu uma ‘erosão gradual’ das instituições democráticas em entrevista à BBC Brasil.

Os poderes e os Bolsonaros

O autogolpe de Mourão explained

O mesmo discurso autoritário que se vê em Bolsonaro se repete em seu vice (e também ex-militar) General Hamilton Mourão, que já falou em auto-golpe em caso de ingovernabilidade.

“Os poderes vão ter que buscar solução, se não conseguirem chegará a hora que nós teremos que impor solução” — General Mourão, quando ainda não havia entrado para a reserva, em 2017.

Coronel da reserva bolsonarista ataca magistrados

Depois do vazamento da repostagem da Folha que trouxe a denúncia sobre caixa dois de WhatsApp na campanha de Bolsonaro, o STF e o MP aceitaram abrir investigação, e o que se viu não foi uma defesa e sim intimidações, ataques foram feitos a mais alta corte do país nessas últimas semanas por bolsonaristas militares.

E não é uma excessão, no meio do ano até mesmo o filho do presidenciável sugeriu derrubar a corte “só” com um cabo e um soldado em caso de divergência. Como o decano Celso de Mello, o mais experiente ministro do STF comentou, a fala foi golpista.

O respeito à dignidade humana

Quebrar a homenagem de uma execução fria de uma ativista do direitos humanos pra ganhar voto diz muito sobre a tolerância de quem anda com Bolsonaro

O apoio da chapa do PSL a violadores de direitos humanos como o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (o primeiro militar a ser reconhecido como torturador pela justiça) é outro traço de oposição à Constituição de 89. É a pura apologia ao discurso sectário da ditadura, em que os opositores e inimigos da pátria eram banidos do Brasil ou desapareciam.

Não é a toa que pouco depois dessas falas sairem do bueiro estamos assistindo a uma onda de atentados a opositores políticos, quem prega “fim de ativismos” não se compromete com Estado Democrático porque não respeita o direito do outro ter uma opinião divergente.

“Lamento mas não tenho controle”

foi o que Bolsonaro falou a respeito dos ataques de sua militância a jornalistas e opositores.

Imprensa

Estamos a poucos anos de ter a primeira geração na história brasileira a ter nascido em um ambiente de voto para todos e liberdade de expressão garantida, completar isso seria fundamental para continuar o fortalecimento da pátria e suas instituições.

Sumir com opositores: a facada em Bolsonaro foi uma tentado horrível a democracia, fruto da intolerância que o próprio candidato prega.

Quem dera o problema do Brasil fosse o comunismo, aqui o problema já era alienação e desigualdade muito antes de Marx nascer. Alimentar esse discurso de medo comunista só serve para achar alguém para odiar e colocar a culpa quando algo dá errado

Ainda que o PSL nunca tenha governado o país, é possível imaginar o surgimento da mesma alternativa aos fatos que acontece nos EUA do Trump. Lá o jornalismo tem sido tratado pelo presidente como assessoria: opiniões sim e fatos não; existe uma emissora favorita (Fox News) e todas as outras que não são alinhadas com o governo ou ousam criticá-lo são tratadas por ele com escárnio. Fake news como meio e fim para controlar opinião pública.

Como jornalista, não tenho como não me posicionar, mais de 100 colegas meus já sofreram linchamento virtual por fazerem o seu trabalho e ir além da assessoria de imprensa que esse candidato montou em volta de si. Quando se leva em conta o desejo do fim de um jornal que promoveu um dos maiores movimentos democráticos do país (Diretas Já) como a Folha de S. Paulo é preocupante.

Como o marqueteiro de Trump bolou a campanha de Bolsonaro

É clara a tentativa do candidato de jogar o eleitor contra o jornalismo, quando na verdade é prestação de serviço público, é interesse do leitor saber o que o seu representante faz, não perseguição política. Essa rinha tem que acabar na corte, com cada um apresentando provas e defesa e não com video de ameaça ao STF no WhatsApp.

E ai?

De forma melancólica vejo os dois governos como símbolos do atraso e fruto da nossa péssima noção da própria realidade, ainda assim, há um lado mais extremista no qual não vejo futuro.

De qualquer forma não me rebaixarei ao mesmo ponto de desacreditar no poder do voto, espero estar errado e ver quem quer que seja eleito fazendo o melhor governo possível, democrático e para todos.

“Eu lamento, mas eu não tenho controle.”

O Brasil é bem melhor do que isso.

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