Cura na Memória II: O movimento anti-vacina expõe a Republiqueta

Como a Revolta da Vacina mostra o descompasso da República, que nasce velha, e o povo 'bestializado' por ela

Juão Rodriguez Kyntyno
15 min readApr 4, 2020
"Charge: A Lei da Vacinação Obrigatória acende o pavio da revolução enquanto os políticos e Oswaldo Cruz (vestido de médico) ficam apavorados"

Do presidente, dizia-se ser um ‘soneca’ entre os populares. Mas, entre os donos do poder político e econômico, conservava-se certo prestígio por ter sido o presidente da província de São Paulo (atual governador), quando reurbanizou a capital, abriu avenidas, instalou luz elétrica e até ampliou a rede de esgoto. Era um gestor exemplar. Para o povo, mais um fazendeiro que não lhe representava. Rodrigues Alves não ligava, chegava agora a hora da capital ouvir o “hino jubiloso das picaretas regeneradoras” (DEL PRIORE, 2017, p. 39).

Quinto presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola, mas passaria para a história como um dos líderes da Revolta da Vacina, ocorrida em 1904. Alves queria, junto ao prefeito do Rio, repaginar a capital, vista como um vasto chiqueiro e um foco de epidemias. O projeto era se inspirar nos Boulevares de Paris. Alves queria governar abrindo caminhos e limpando a cidade de doenças, algumas até medievais, como a peste bubônica. Os alvos estabelecidos pelo médico e sanitarista Oswaldo Cruz, chamado por Alves, também incluíam a varíola e febre amarela, esta última, inclusive, matou um dos filhos do presidente.

Agentes de saúde passaram a entrar nas casas dos cariocas “limpando, desinfetando, exigindo reformas, interditando casas, removendo doentes” , só no segundo semestre foram feitas 110 mil visitas. (CARVALHO, 2017, p.82). O governo também "anunciou que pagaria a população por cada rato que fosse entregue às autoridades. O resultado foi o surgimento de criadores desses roedores a fim de conseguirem uma renda extra".

"Charge do Jornal do Brasil. 11 de agosto de 1904, criticando aqueles que se aproveitaram para criar ratos apenas para receber indenizações"
Oswaldo Cruz, fundador do primeiro instituto para o desenvolvimento de remédios e vacinas, na luta contra a febre amarela, a varíola e a medieval peste bubônica. (Revista da Semana, s/d, charge de Bambino)

“A medida sanitária mais polêmica foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola, o que descontentou grande parte da população”. A obrigatoriedade era garantida por meio de um comprovante burocrático que excluía os não-vacinados de não ingressar em escolas, encontrar empregos e até mesmo se casar. Para uma população urbana em ascensão na capital da República, a imprensa vazou a proposta para a população, que se revoltou. A mídia ainda seria fundamental para informar ou desinformar sobre a campanha, e algumas charges não deixavam mentir.

Caricatura de Oswaldo Cruz limpando o Morro da Favela (O Malho, nº 247, 08/06/1907).
Gravura de Angelo Agostini mostra a capital do Brasil na virada pro século XX. “Enquanto as vizinhas Buenos Aires e Montevidéu são retratadas enquanto mulheres galantes, Rio de Janeiro está suja e em um chiqueiro”. Políticos representam porcos e a Morte simbolizava as epidemias. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/10/Angelo_Agostini-Pires.jpg
Prioridades e propriedades.

Diante da resistência popular a invasão de domicílios e à imunização obrigatória, a política de vacinação ficou mais violenta e acompanhou a cartilha da repressão, multiplicando-se ocupações domiciliares. Os ataques foram mais fortes em famílias mais pobres, quando da demolição de dezenas de casarões e sobrados no centro das cidades. Foi a política do ‘bota baixo que obrigou a população mais carente a se mudar para os morros. A política higienista inaugurava, assim, as favelas: só na Avenida Central, no Rio, demoliram-se mais de 600 casas para criar a Avenida Rio Branco e abrir espaço para modernizar ruas e o porto da cidade. As medidas ditas sanitárias também tinham viés higienista que pretendia ‘europeizar’ a capital da República e afastar a pobreza dos centros, para um lugar escondido e segregado dos espaços públicos limpos, como se a pobreza não existisse no país, ou se existisse, que não fosse onde se podia ver.

“Tudo isso foi feito de forma arbitrária. Já que o então prefeito do distrito federal [Ferreira Passos] exigiu plenos poderes e amparo contra processos judiciais. Ao ponto das pessoas irem trabalhar à luz do dia e ao retornar descobrirem que haviam sido despejadas por uma nota afixada no local”.

Oswaldo Cruz, em “o Napoleão de seringa e lanceta”
(O Malho, 24/10/1904; charge de Leonidas)
, retratava a revolta da população carioca que apedrejou e depredou delegacias, bondes e prédios governamentais por uma semana.

Além dos desapontamentos da população sobre a forma como os sanitaristas impuseram sobre a cidade o seu poder, “pais de famílias foram obrigados a deixar as suas casas, em uma época conservadora, para que sanitaristas vacinassem as suas esposas e crianças, sem o consentimento das mesmas, cujo ápice seria despir-se a alguém totalmente desconhecido”.

Houve uma resposta popular por autonomia e propriedade. Já se ouviam os primeiros gritos de ‘morra a polícia’ e ‘abaixo a vacina’ nas manifestações contra as medidas do governo no dia 10 de novembro e que envolviam todas a classes sociais. O quebra-quebra continuou nos dias seguintes contra o exército. No dia 15, aniversário da República, não houve desfile e a revolta popular não se acanhou.

O tumulto apresentava características ambíguas, “sendo ao mesmo tempo uma manifestação contra a pobreza urbana — o movimento ocorreu após alguns anos de crise econômica no Rio de Janeiro — , como também uma resistência aos projetos autoritários liderados por higienistas que subestimavam os temores populares diante do possível contágio de outras doenças, como a sífilis. Era reação de gente que acreditava até que a vacina fosse um meio de propagação, e não de cura, da varíola. E tudo regado a pobreza e a preconceito. Mas, também, a intolerância quanto aos avanços da ciência” (DEL PRIORE, 2017, p. 43).

“Havia uma incompreensão generalizada acerca da importância da vacinação, mesmo por parte da elite: não se sabia ao certo o que era vacinação, quais os benefícios etc.; muitos acreditavam que era a própria vacina quem molestava e matavam as pessoas, como mencionado no trecho pelo ministro da Fazenda, Rui Barbosa”. O jurista falava em despostismo sanitário e estigmatizou a vacina como sendo o túmulo da liberdade.

A política do bota-baixo era tida como unânime para controlar a ordem da sociedade e garantir seu progresso, para isso, jornais do governo diziam que a revolta popular “tinha sido obra de mazorqueiros, arruaceiros, desocupados. O chefe de polícia, Cardoso de Castro, referiu-se ao ‘rebotalho’, às ‘fezes sociais’. A elite intelectual concordava com Olavo Bilac e atribuía os acontecimentos à ‘matula desenfreada’, à ‘turbamulta irresponsável de analfabetos’”, narra José Murilo de Carvalho. A mesma mazorca atacada por Bilac, fora defendida pelo jornalista Lima Barreto:

"O governo diz que os oposicionistas à vacina, com armas na mão, são vagabundos, gatunos, assassinos, entretanto ele se esquece que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que mantém a opinião dele, é da mesma gente. Essa mazorca teve grandes vantagens: 1) demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendê-la com armas na mão; 2) diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3) desmoralizar a Escola Militar. Pela vez primeira, eu vi entre nós não se ter medo de homem fardado. O povo, como os astecas ao tempo de Cortez, se convenceu de que eles também eram mortais" (DEL PRIORE, 2017, p. 42–3).

Ordem "Basta de cabresto!", Progresso "Teje preso!"

O contexto que opôs civis aos políticos e militares é explicado pelo jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889, sobre a proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil e o seu lema:

Charge retratando o cientista Oswaldo Cruz como “esfolador” do Zé Povo

“Orientado pela ciência, consciente de seu elevado papel na sociedade positiva, esse grupo [de elite científica e cultural] seria capaz de estabelecer e executar planos rumo a um futuro de paz e prosperidade gerais. A enorme massa da população, pobre, analfabeta e ignorante, teria de ser conduzida e controlada por uma elite republicana, por ainda não estar pronta para participar ativamente do processo de transformação. A República, portanto, deveria ser implantada de cima para baixo, de maneira a prevenir insurreições e desordens populares que pudessem ameaçar a boa marcha dos acontecimentos” (GOMES, 2013, p.170).

Era verdade que grande parte daquela população analfabeta não compreendia as invasões domiciliares que lhes roubavam a privacidade de seus corpos e patrimônios patriarcais, além de tampouco entenderem importância da vacinação para sua saúde e dos seus ao redor. O governo também não sabia falar outra língua que não fosse a da porrada e coerção. Precisou convocar tropas do exército e da marinha, e o estado de sítio foi decretado suspendendo direitos e garantias da população.

“As atenções se voltaram para o reduto da Saúde, onde várias barricadas tinham sido erguidas. Na principal delas, ao final da rua Harmonia, […] o repórter do Jornal do Commercio entrou no reduto e descreveu: ‘aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro, uns, de garruchas e navalha à mostra’ […] O reduto foi atacado pelo mar pela Marinha e, por terra, pelo Exército. Os revoltosos não deram combate e desapareceram. A polícia deu, então, início à varredura das áreas atingidas pela revolta, prendendo quem lhe parecesse suspeito. A caçada prolongou-se pelos dias seguintes. Seu ato final foi uma batida no morro da Favela, realizada no dia 23. O nome desse morro fora dado por soldados retornados da Guerra de Canudos e foi depois generalizado para todos os bairros pobres do Rio. Todos os moradores tinham fugido. Mas na Ilha das Cobras acumulavam-se mais de 700 presos” (CARVALHO, 2017, p. 84).

Aula sobre a Revolta da Vacina, com o historiador Felipe Figueiredo.

O saldo da Revolta foi a prisão de mais de 900 pessoas. 30 mortos. 110 feridos e 461 deportações pro Acre. O governo federal suspendeu temporariamente a vacinação obrigatória para que as determinações da lei fossem revistas e consideradas menos evasivas. Buscou-se reverter o cenário da ignorância das pessoas sobre a vacina, vista como uma novidade pela população. A ciência provaria sua eficácia na vacinação quando erradicou a varíola em 1977, responsável por matar 6 mil pessoas no Brasil alguns anos depois da Revolta da Vacina, em 1908.

“Questão social é caso de polícia

Durante a revolta, até alguns militares chegaram a se organizar para derrubar o governo e reivindicar a volta das forças armadas à Presidência, estimulando a nostalgia da República da Espada de Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca e também sob revolta com "a carestia, a inflação, o achatamento salarial, o aumento abusivo dos aluguéis, os projetos elitistas de remodelação da cidade [que] incomodavam mais do que as doenças" (DEL PRIORE, 2017, p. 43).

Assim, 300 cadetes, sobre o comando do general Travassos, puseram-se em marcha para o palácio do Catete, perdendo a batalha contra o exército do governo. "Duramente atingida por bombardeios, a Escola Militar foi desativada e, posteriormente, demolida. A história parecia gostar de sangue" (DEL PRIORE, 2017, p. 43–4). No fim, os cadetes perderam na prática, mas sua ideologia positivista permaneceria como um legado ao governo por muito tempo. Para aquela República, o brasileiro era ‘muito burro’ para se policiar e se governar, o Estado deveria instruí-lo, mesmo que fosse na base do soco:

"Charge publicada na capa da revista O Malho de 14 de julho de 1906, aludindo ao bota-abaixo de Pereira Passos (5° da direita p/ esquerda), à vacina obrigatória de Oswaldo Cruz (1° da direita p/ esquerda), e à anuência tácita do presidente da República, Rodrigues Alves (3° da direita p/ esquerda). Com o título de “ O nosso 14 de julho “ , O Malho -sugestivamente lembrando as personificações da liberdade associadas à Revolução Francesa -incita o Zé Povo: “ O MALHO (solemne, para Zé Povo) -Zé! Apontando-te a Bastilha da Rotina celebro da melhor forma possivel a grande data da Revolução Franceza e a data do meu 2° [sic] centenario! Aquelles cinco cavouqueiros já demoliram muito, mas ainda ha muita cousa por fazer… Abaixo o resto do carrancismo!"

[Por meio do] lema republicano [e positivista] “Ordem e Progresso”, calcado nos ideais militares de que a ordem social é o caminho ao progresso; a política higienista, baseado em métodos científicos, [era a] lógica elitista de poder, uma vez que separava, segregava, aqueles que têm o direito ao saneamento básico e a condições dignas de higiene daqueles que são a escória da sociedade, a população mais pobre; justificava-se assim os males sociais como sendo um entrave à civilização e à modernidade;

A base do republicanismo brasileiro foi a necessidade de incorporação à sociedade sempre por meio da ‘tutela benéfica do Estado’. Para Augusto Comte — pai da doutrina positivista e inspirador do lema ‘ordem e progresso’ hoje em nossa bandeira: “o operariado era considerado uma classe ‘desprotegida’ e ‘inculta’, incapaz de gerir a si própria” (NETO, 2012, p. 87). Por isso, o legado do Império centralizador e que derrubava levantes populares era tão marcante, pedia-se “um governo forte, um ‘Executivo hipertrofiado’, que se autoinventasse da ‘tarefa suprema’ de modernizar a sociedade, regenerar o Estado e educar os cidadãos para a vida em comum” (NETO, 2012, p. 37–8). Esse pensamento teve resposta nas rebeliões do povo e dos militares, com efeitos opostos entre si.

Charge de Newton Silva para O Jangadeiro Online

“A Revolta da Vacina foi um trágico desencontro de boas intenções, as de Osvaldo Cruz e as populações. Mas não se pode acusar a população de obscurantismo. A elite também via na ação dos sanitarista uma violação de direitos, um arbítrio do Estado. Para o povo, além disso, foi a ameaça de violação de valores ainda mais profundos, relacionados com a própria dignidade pessoal. Esse povo não se interessava por política e não votava. Mas tinha noção clara dos limites da ação do Estado. Seu lar e sua honra não eram negociáveis. A revolta paralisou a ação do governo, posto que não mudou a política da República. Deixou, no entanto, entre os participantes, um forte sentimento de autoestima, indispensável para formar um cidadão. O repórter de A Tribuna ouviu de um negro acapoeirado frases que atestam a presença desse sentimento. Chamando sintomaticamente o repórter de cidadão, o negro afirmou que a Revolta se fizera para ‘não andarem dizendo que o povo é carneiro’. O importante era ‘mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo’” (CARVALHO, 2017, p. 88).

Na crise de representação, a nostalgia das armas

É evidente que muitos líderes políticos — incluindo os dois primeiros presidentes da República, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, se utilizaram de tal doutrina como mera fachada ideológica para legitimar o autoritarismo que os caracterizava, dissolvendo o congresso, determinando a censura da imprensa e prendendo ou deportando quem se manifestasse contra suas medidas. A República nascia Velha como a monarquia anterior, tão déspota quanto. Não atoa, logo passou às mãos do civis, que sob a gestão oligárquica, não deixaram de aplicar mais do mesmo.

A natureza excludente da República brasileira.

Apesar de em ambas gestões na República da Espada demonstrarem inépcia política, o clientelismo, o analfabetismo e a opressão tinham sido seu legado militar, sobre a base do puritanismo das armas, para um povo analfabeto que via tudo de forma bestializada. O mito dos militares que salvavam as instituições ganha força dentro da oposição da República Velha, desiludida com a representação política durante a revolta da vacina, a ponto de militares e políticos de oposição “tentarem derrubar o governo e restaurar-lhe a pureza que viam em Floriano Peixoto e Benjamim Constant” (CARVALHO, 2017, p. 84), afirma José Murilo de Carvalho. O idealismo dessas figuras sugere como o Brasil em momentos de crise costuma olhar para o passado com uma nostalgia folclórica, principalmente no que tange o intervencionismo militar:

https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/proclamacao-da-republica-22047212

Constant fora professor e ideólogo do movimento de proclamação da República gestado na Escola Militar da Praia Vermelha no Rio. Referência intelectual do Exército, foi o ministro do primeiro governo republicano de Deodoro da Fonseca, antes de se demitir após um desentendimento entre os dois por causa de uma nomeação na tesouraria dos Correios no Rio Grande do Norte — referendada por Deodoro sob sugestão do governador Xavier da Silveira.

Charge de Latuff representando Deodoro da Fonseca

Deodoro chamou Constant de traidor, os dois bateram boca e se xingaram até que Constant disparou: “Não seja tolo! Não sou mais seu ministro, o senhor é um marechal de papelão. Eu nunca tive medo de monarcas de carne e osso quanto mais de papelão” (GOMES, 2013, p. 342). Constant morreu amargurado com os rumos da República que ajudou a fundar, idealizada em seu discurso em 1888:

“Os exércitos têm hoje um alto destino a desempenhar: concorrer de concerto com as outras classes para o advento do regime industrial e pacífico, para o fraternal congraçamento dos povos — servindo às instituições em nome dos altos interesses da pátria e da humanidade, e enquanto elas satisfazem a esse nobre objetivo. […] Daí resulta que mais ainda do que as outras classes precisa aliar à sua conveniente instrução teórica uma sã instrução geral e cívica. Porque há uma ciência que ela deve conhecer muito mais do que a ciência da guerra, é a ciência da paz. Um exército ignorante e sem a conveniente educação moral e cívica, embora perito nas operações de guerra, poderá ser uma boa espada sempre vencedora nas lutas materiais, mas será também uma espada de dois gumes que tanto poderá ferir a pátria, como aos inimigos dela” (GOMES, 2013, p. 208).

Peixoto, segundo presidente da República e sucessor de Deodoro, passou a história com o apelido de 'Marechal de Ferro' num governo de orientação nacionalista e centralizadora. Demitiu todos os governadores que apoiaram o vaidoso Deodoro da Fonseca — que pediu renúncia após dissolver o Congresso e brigar com mais de seus ministros sobre nomeações e o legado do falecido Constant.

O presidente Floriano Peixoto foi retratado como uma esfinge por Angelo Agostini (1843–1810) por sua tentativa de controlar os gastos públicos

Deodoro encarnava “um mito recorrente na história brasileira — o de salvador da pátria. Apresentava-se como o guerreiro forte, austero e solitário, que, imbuído de bons propósitos, conseguia resgatar a pátria de suas mais profundas atribulações. Isso talvez explique a surpreendente popularidade que alcançou ao final da vida, apesar do notório desprezo pela opinião pública. […] Tinha enorme desprezo pelos rituais do cargo” (GOMES, 2013, p. 354). Isso não salvou seu governo do desastre econômico, provocado pela crise do encilhamento.

Em abril de 1892 decretou estado de sítio, após manifestações de opositores e divulgação de manifestos na Capital Federal contra sua posse (que segundo a Constituição, referendava a necessidade de novas eleições). Não demorou para censurar a imprensa sem pensar duas vezes. Prendeu os manifestantes e desterrou outros para a Amazônia. Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal em favor dos detidos, Floriano Peixoto ameaçou os ministros da Suprema Corte:

“Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão”.

Representação da política e do cotidiano brasileiro

O STF negou o habeas corpus por dez votos a um. Deodoro ficou conhecido pela repressão à Revolução Federalista no Sul do país, ‘a revolta da degola’ — em referência à forma de executar opositores da mesma forma que se matava animais, deixando-os sangrar pelo pescoço. No fim da revolta que mudou o nome da capital de Santa Catarina para Florianópolis, vitimou-se entre 10 mil e 12 mil pessoas. Esse era o Marechal de Ferro salvador da pátria. Mas a polarização seguiria dividindo os que apoiavam o governo central e os que defendiam autonomia dos estados, até a posse de Campos Salles, segundo presidente civil e o que articulou a coalizão oligárquica da República do Café com Leite para conciliar as elites em torno da alienação popular.

Depois da divisão ideológica do povo, as ‘velhas-novas’ chagas da escravidão, censura, preconceito e exclusão de grande parte dos cidadãos da possibilidade de cidadania e voto mostravam a face do Brasil Republicano — idealizado por uma elite que conduziria à força a manipulação do pensamento político dos brasileiros, sempre com anuência militar.

Na prática, a Republiqueta nascia velha, o brasileiro mantinha-se o mesmo bestializado de sempre. De novo, só as elites do poder político e econômico, algumas nem tanto, afinal continuavam a lucrar acima da alienação. Mas não silenciavam a todos. O atraso republicano deixaria os políticos extremamente vulneráveis ao teste das crises que passaram a politizar o país (como a gripe espanhola, os conflitos dos 18 do forte, a Revolta da Chibata, a Revolta da Vacina, e a Guerra de Canudos).

Esse efeito de pátria às avessas seria nomeado pelo historiador José Murilo de Carvalho como ‘o pecado original da República’:

“O grosso do povo excluído era mantido sobre controle pela própria organização social do mundo rural, baseada na grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptação e manipulação. O povo da rua era quase sempre tratado à bala, nas cidades ou no campo. […] A Primeira República, em seus 41 anos de existência, não fez jus às promessas da propaganda de promover a ampliação da participação política, o autogoverno do povo. Não unificou os três povos, não os incorporou. Não transformou em cidadãos o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o áspero sertanejo de Euclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista do movimento operário. A ausência do povo, eis o pecado original da República. Esse pecado deixou marcas profundas na vida política do país. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da incapacidade que demonstra, até hoje, a República de produzir um governo representativo de seus cidadãos?” (CARVALHO, 2017, p. 17-8)

Referência bibliográfica

CARVALHO, José Murilo de. O pecado original da República: debates, personagens e eventos para compreender o Brasil, 2017.

DEL PRIORE, Mary. Histórias da Gente brasileira: Volume 3. República (1889–1950), 2017.

GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil, 2013

NETO, Lira. Getúlio (1882–1930): Dos anos de formação à conquista do poder, 2012.

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