Tecnoautoritarismo: quando 1984 se torna um manual de gestão dadocêntrico contra o cidadão

E como mudar isso daí

Juão Rodriguez Kyntyno
87 min readMar 6, 2021

Certa feita, um historiador e filósofo disse que precisamos entender a importância de nossos próprios dados e nos informar sobre os seus usos (HARARI, 2020, p. 12–20).

Não é por menos. infelizmente, hoje "a privacidade deixou de ser uma garantia ou uma coisa de que desfrutamos gratuitamente: agora temos que gastar recursos para dominar as ferramentas" (MOROZOV, 2019, p. 36)

Depois que vimos as informações de Augusto Heleno, entregues de mão beijada pelo mesmo, servindo de combustível para Pay Per View do Big Brother Brasil, parece verdade esse bilete.

O general, por desconhecimento ou simplesmente não ligar, acabou por deixar informações valiosas disponíveis. Talvez, na qualidade de chefe do Gabinete Institucional de Segurança da Presidência da República, ele estivesse muito ocupado. Mas nem essa importância toda eximiu ele das consequências de ter o CPF roubado em nome de uma semana grátis de PPV de reality show.

É uma lição dolorosa: ignorar o problema não faz com que ele suma, às vezes até piora.

É injusto?

É, mas quem disse que a história é justa?

Para não acabarmos como Heleno, precisamos duvidar da inocência no ambiente tecnológico. É sobre entender a importância dos dados, e como nossa privacidade hackeada é uma ameaça além de Pay Per View ou roubo de contas do zap e insta.

Repórter: "Senhora seu nome é Maria Frederick da Silva? Endereço Rua Queiróz Laranjeiras?"; Maria: "Que?"; Repórter: "Cartão de Crédito 766989898833? Me dá um autógrafo"; Maria: "Que autógrafo eu não sou famosa não"; Repórter: "Mas seus dados são! Senhora, volta aqui senhora! Eu tenho o seu número! Sei onde você mora!"

Se nem o presidente da Câmara ou o chefe do GSI estão imunes de golpes do tipo, o que dirá de nós? Estamos ainda mais expostos. Por vezes, deixamos de ter o nosso direito de titularidade sobre nossas informações, e podemos sofrer golpes com dados desprotegidos, como o saque do FGTS. Em época de megavazamentos de dados, várias brechas surgem, como "criação de contas de laranjas, filiar pessoas em partidos políticos e times de futebol e realizar ataques direcionados contra celebridades e pessoas públicas, bem como seus familiares e sócios". Podemos até acabar em um cenário mais distópico — um Big Brother que lucra te espionando, sabendo até a forma como você anda.

Precisamos tomar o controle de volta.

“Quando não temos controle algum sobre nossa tecnologia, os poderosos a usam para seus próprios fins […] Precisamos nos ater à nossa própria infraestrutura, essa e a lição mais importante a ser aprendida aqui — que, se quisermos nos opor ao Estado de vigilância, ao Grande Irmão, precisamos analisar o que ele é, se ele é de fato uma união de Estados centrais que dizem: ‘ei, se nos unirmos, poderemos ganhar mais’. E precisamos saber qual é o nosso papel nisso, que é justamente nos manter descentralizados, ter a nossa própria infraestrutura” (ASSANGE et al., 2013, p. 50–93)

A questão aqui é apontar os riscos da distopia de 1984 pra trabalhar não com o pânico, mas com a perplexidade.

“A coragem de Orwell exige que nos recusemos a ceder o futuro ao poder ilegítimo. Ele nos pede para quebrar o encanto do encantamento, desamparo, resignação e entorpecimento. Respondemos a seu chamado quando nos inclinamos para o atrito, rejeitando os fluxos suaves da confluência coercitiva. A coragem de Orwell nos coloca contra as marés implacáveis de expropriação que rebaixam toda a experiência humana. Atrito, coragem e orientação são os recursos de que necessitamos para iniciar o trabalho compartilhado de declarações sintéticas que reivindicam o futuro digital como um lugar humano, exigem que o capitalismo digital opere como uma força inclusiva ligada às pessoas a que deve servir e defendem a divisão de aprendizagem na sociedade como uma fonte de renovação democrática genuína” (ZUBOFF, 2019, p. 996).

Além da coragem de Orwell há o questionamento como saída para resolver problemas complexos e escapar do entorpecimento, afinal, “se não sabemos algo, não deveríamos ter medo de reconhecer nossa ignorância e de buscar nova evidência” (HARARI, 2018, p. 259).

dscp

Comecemos, então, com os dados. Eles são muito mais do que pacotes de internet. Aqui, falo de nossas informações pessoais, e elas valem muito.

“Imagine que uma rede de farmácias disponha da lista de CPFs relacionados ao nome dos clientes. Se cada compra entrar numa base de dados, com o passar dos anos surgirão padrões de consumo […] O comércio desses dados é um mercado bilionário e gera o debate que se vê no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa. Os termos de uso dos serviços digitais abrem possibilidades assustadoras”.

Os EUA agora são os maiores produtores de petróleo — EUA invade EUA

Você já deve ter ouvido que dados são o petróleo do século XXI. A afirmação é em parte verídica, basta ver que “o fluxo de petróleo decide quem é dominante, quem é invadido e quem é excluído da comunidade global” (ASSANGE et al., 2013, p. 20). Mas essa comparação não é totalmente justa. É útil e barato armazenar dados, diferentemente, por exemplo, do petróleo. Mas uma coisa não muda, o lucro em usá-los. Tanto economicamente como politicamente, eles são valiosos para definir consumidores e eleitores.

Há benefícios inegáveis nos dados, a exemplo do compartilhamento deles para acelerar o desenvolvimento da tecnologia inovadora de pesquisa da vacina contra a Covid-19, ou quando do uso de um aplicativo na Cingapura para acompanhar e coletar dados sobre os cidadão:

“Os dados são de fato o combustível da economia da informação, mas se parecem mais com a energia solar do que com o petróleo — um recurso renovável que pode beneficiar a todos ao mesmo tempo, sem ser diminuído”.

No game ‘Watch Dogs’ (Ubisoft, 2014), Aiden Pierce é um hacker em uma cidade inteligente. O protagonista, especialista em hackerativismo, é capaz de controlar todos os sistemas da cidade em benefício próprio, tudo na palma da mão: Eu não olho mais para trás. Não me arrependo. Olho para frente. Tudo está conectado e eu usarei isso para expor, para proteger… e se necessário… punir.”

Mas o que eu tenho a ver com isso?

O problema reside, principalmente, na falta de garantias e no desconhecimento a respeito do uso das informações dos cidadãos, o que pode transformar um detetive em um espião e, depois, em um stalker macabro. Nessa brincadeira, podemos acabar postando nossas informações de bom grado, feito o exame de Covid-19 de Augusto Heleno, achando que não tem problema em pessoas usarem nossas informações pra criar contas de PPV do BBB ou fazer coisa pior. Também, podemos achar que não há problema nenhum no reconhecimento facial, e acabamos ignorando um dos pontos mais importantes do debate — o como que essa tecnologia será empregada, como esses dados serão utilizados, e para qual motivo.

“É necessário pensar o ambiente digital não como algo novo, mas como continuidade e extensão da realidade que já vivemos no mundo físico”.

um não-’brindi’

O erro que possibilita essa imperícia reside em acreditar que o ambiente digital está separado do ambiente político, que a web é uma massa amorfa e neutra isenta de controle, e que esse espaço só pode ser imaginado de uma forma — seja porque consideramos que a falta de privacidade já é algo garantido num mundo de superexposição online, seja por normalizar o ambiente digital em constante progresso, quando em verdade ele está aparelhado em monopólios e centralizados em nome de uma suposta ‘segurança’ — , passando, por vezes, em cima de direitos fundamentais, em nome do vício em coletar e vender dados como única forma de resolver problemas de gestão, e governo, de forma “dadocêntrica” (MOROZOV, 2019, p. 33).

É paranóia mermão (?), o loko dos dados tá on

Aqui — a falta de fiscalização devida ou o fato da maioria dos cidadão não se importarem com o tema — abrem brechas por não “garantir que tais sistemas sejam transparentes, responsivos às preocupações das comunidades e não imponham encargos desnecessários, por exemplo, violações de privacidade”.

No game ‘Call of Duty: Warzone’ (Activision, 2020), as missões de inteligência “a sala de guerra” terminam com a coleta da vigilância de um satélite de uma emissora, a estação televisiva BCH4, localizada na cidade fictícia de Verdask. A operação visa impedir um bioterrorista de utilizar armas nucleares guardadas por 50 anos: “Eles vieram nos parar, mas não resistiram de lutar uns contra os outros”.

“Significa que há profundas consequências políticas e morais no consumismo informacional, consequências comparáveis às do consumismo energético em alcance e importância. […] As implicações da decisão de negociar dados pessoais não se restringem mais aos âmbitos do mercado e da economia: elas recaem também sobre o domínio da ética. […] É um erro imaginar que todas essas questões digitais possam ser rotuladas e delegadas aos jovens inteligentes que sabem programar. Essas ‘questões digitais’ são de fundamental importância para o futuro da privacidade, da autonomia, da liberdade e da própria democracia. São questões que devem ser importantes para todos os agentes políticos” (MOROZOV, 2019, p. 132–5)

"Já era Privacidade

Já é Achar que reconhecimento facial é a tecnologia mais invasiva à privacidade

Já vem Achar que reconhecimento vocal é a tecnologia mais invasiva à privacidade"

"Winston estava sentado em seu canto habitual, olhos fixos num copo vazio. De vez em quando olhava para um rosto descomunal, que o encarava na parede oposta. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia a legenda" (ORWELL, 2009, p. 335)

1) Problema ou solução: tecnotimismo, gente, o século XXI chegou (?)

Com grandes dados, vêm grandes responsabilidades.

Ah, mas relaxa, a tecnologia tá aí pra facilitar a nossa vida. Por um lado Winston passa informações que customizam e melhoram sua experiência não é?

É assim que Winston pode dar a sua biometria e CPF na farmácia e ganha um descontão. A tecnologia é neutra, apolítica e só traz benefícios! É incrível! Dados são apenas mais uma linha de números no meio dessa gestão toda.

“Mas e se o objetivo for outra coisa?” (MOROZOV, 2019, p. 87–95).

eu amo esse meme

Com a tecnologia em perfeito avanço no piloto automático, Winston faz vários testes de personalidade pra descobrir com qual BBB ou qual personagem do filme iraniano favorito dele Winston se parece mais; Só benefícios: dá pra digitar umas informações do filho de Winston e ganhar um vídeo com o Papai Noel; dá pra baixar um aplicativo que envelhece o rosto dele e tirar uma foto que todo mundo tá tirando, quem sabe baixar aquela nova rede social de voz que todo mundo tá usando. (Sem textão, ufa). Bem em demanda, dá até comprar uma televisão inteligente pra bater um papo, ou o relógio ultra-tech que rastreia o seu sono. É tudo rápido, simples e inteligente — Winston se sente o Tony Stark.

“Com o desenvolvimento da televisão e o avanço técnico que possibilitou a recepção e a transmissão simultâneas por intermédio do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Todos os cidadãos, ou pelo menos todos os cidadãos suficientemente importantes para justificar a vigilância, podiam ser mantidos vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia, ouvindo a propaganda oficial, com todos os canais de comunicação fechados. A possibilidade de obrigar todos os cidadãos a observar estrita obediência às determinações do Estado e completa uniformidade de opinião sobre todos os assuntos existia pela primeira vez” (ORWELL, 2009, p. 243)

Do nada Winston tá na timeline xingando muito no Twitter aquele político que você odeia, aí vai pro outro app se juntar a um linchamento virtual de rotina e, do nada, (óia só) no meio dos 2 Minutos de Ódio, aparece um produto que ele havia comentado em algum momento do dia offline — que conveniente e prático! Bem na hora, Winston compra!

sorria, você está sendo vigiado.
Senhor Stark, deu ruim.

Nesse cenário onde a distopia tecnológica vai cruzando com a realidade, Winston pode descobrir que esqueceu de pedir que as informações coletadas não fossem armazenadas, e aí os dados que soltou na farmácia vazaram e agora tão pra lá e pra cá com empresas que Winston sequer conhece — ou pior, com uma falha aqui e ali em outros sites privados ou públicos de segurança duvidosa, uma galera tá lucrando com informações suas quando Winston poderia controlar esse fluxo. Dizem por aí que algumas informações até podem cair no colo da polícia. Mas confia, é tudo pro bem dele, e não vai dar em nada.

Quem deve não teme, não é?

Catraca Livre: Esta página transformou memes em capas de livros clássicos

Aí as coisas vão ficando cada vez mais orwellianas, e não é por menos, as obras de George Orwell estão em domínio público.

“As únicas características indiscutíveis da vida moderna não eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida — era só olhar em torno para constatar — não tinha nada a ver com as mentiras que manavam das teletelas, tampouco com os ideais que o Partido tentava atingir. Porções consideráveis dela, mesmo na vida de um membro do Partido, eram neutras e apolíticas, simplesmente questão de suar a camisa […] O Partido lhe dizia para rejeitar as provas materiais que seus olhos e ouvidos lhe oferecessem. Essa era a instrução final, a mais essencial de todas” (ORWELL, 2009, p. 93–100)

PLIN! Notificação! Winston perde atenção fácil com o celular apitando toda hora. Chega de ler. De volta pra timeline, uma notícia aqui, outra ali, ele lê que as informações do seu filho caíram nas mãos não do Papai Noel, mas no pé do Homem do Saco e que o aplicativo da moda, que envelhece as fotos, rastreia a localização dele e é livre pra compartilhar a selfie dele por aí sem escrúpulos;

Mas não existe mais privacidade com tanta tecnologia hoje em dia né?

“Não é sobre privacidade, é sobre poder”. Ouça a indicada ao prêmio Pulitzer por suas reportagens no The Guardian sobre o escândalo Facebook-Cambridge Analytica, Carole Cadwalladr dá uma aula sobre privacidade e proteção de dados (infelizmente em inglês e sem legenda :/, mas fica Mc que as reportagens dela dá pra traduzir).

“Muitos têm a visão de que privacidade não existe. Dizem: ‘E daí? Não tenho nada a esconder, então, de boa, pegue minhas fotos’. Mas isso é um engano sobre do que tudo isso se trata. Porque é sobre quem tem essa informação, quem tem esses dados. Porque é com estes que está o poder agora”

A coisa vai ficando locona. Winston percebe que, além da popularização de fatos alternativos (e editados) com flagrantes mentiras na rede social que ele chama de internet, as coisas parecem um Ministério da Verdade, e aquele teste de personalidade que Winston fez coletou os dados dele, e serviu para mapear o perfil psicométrico dele — junto a outras 87 milhões de pessoas — com fins de propaganda política, em uma “pós-verdade On Demand” (QUINTINO, 2019, p. 362);

No meio de tanta desgraça com a privacidade, Winston decide ver umas séries. Surge uns episódios de Black Mirror e ele se assusta em como as coisas tão ficando parecidas no presente. Ele vai bisoiar um documentário (que não seja iraniano, plmdds), e aparece um que te conta sobre dilemas em que as redes sociais ‘gratuitas’ dele mapeiam seu comportamento, vendem seus dados e sua atenção como produto, e lucram quando Winston sente raiva, quando não, ajudam a destruir democracias; Winston lê que a nova mídia que todo mundo tava entrando não tinha tanta segurança assim — e agora o áudio dele vazou pra meio mundo, igual aos dados de contas e gravações de videoconferências. Pensou em chamar aquele @? Esquece, não dá nem pra bater um lero com as cheirosa e os boy em app de relacionamento sem o medo de ter os dados vazados.

desculpa

“Dados são poder na era da tecnologia (esta, em que você também vive e inevitavelmente participa). Dados são poder de quem os detém — seja de quem os é, seja de quem os estuda, seja de quem os manipula”.

parece verídico

Nem os aparelhos high-tech vão escapando da distopia. Vale para vigilância na teletela, ops, televisão ‘smart’, o reloginho da moda ou o sistema de voz superinteligente — alguns espertinhos de mais, tão espiões quanto a Sarah no BBB, ouvindo e anotando literalmente tudo.

Do nada, Winston até vê políticos estimulando espionagem de professores, incentivando trabalho infantil, e até o banimento de palavras como ‘gênero’ na Novilíngua brasileira, mas essa narrativa orwelliana parece ser mentira, (essa de apontar tudo como fascismo é tão 2017!); No meio da cacofonia de informações, nada parece mais verdadeiro. De alguma forma, perdeu-se aquela mensagem em época de Orkut e MSN, quando sua mãe dizia pra você tomar cuidado com a confiança na internet e na tecnologia em geral.

Agora, é ela quem manda aquele ‘bom dia’ no grupo da família, um sticker do ET Bilu, uma reflexão fraudulenta de Churchill, até umas fake news com AI-5 e conspiração sobre fraude nas urnas — algumas já adiantaram o fato alternativo com 1 ano de antecedência, séloko que Smart!

(Ah, se não der certo o conteúdo, dá sempre pra atacar a infraestrutura).

“A história não apenas é alterada, como simplesmente deixa de existir. É a máxima de Orwell: Quem controla o presente controla o passado, e quem controla o passado controla o futuro” (ASSANGE et. al, 2013, p. 126–7)

“Talvez você devesse desabilitar os cookies, Steve”, diz o parsa do Steve quando ambos percebem que as lojas se personalizaram para Steve // charge de Ellis Rosen

A política se tornou a luta pelo controle dos fluxos de dados, e a ditadura agora se define pela concentração de dados nas mãos do governo ou de uma pequena elite. […] Um ditador que centraliza e processa os dados de forma mas eficaz pode não me proporcionar um bom sistema de saúde, mas vai poder fazer com que eu o adore e fazer com que eu odeie a oposição. A democracia vai ter dificuldade de sobreviver a essa evolução, porque, no fim, a democracia não se baseia na racionalidade humana, ela se baseia nas emoções. Durante eleições e referendos, ninguém te pergunta o que você pensa, e sim o que você sente. E, se for possível manipular de forma eficaz as emoções, então a democracia se tornará um espetáculo emotivo de marionetes.

Mas estamos longe de uma realidade como 1984, né?

“Não havia um lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto […] Na fachada, do outro lado da rua, via-se um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. Embaixo, no nível da rua, outro pôster, esse com um dos cantos rasgado, adejava operosamente ao vento, ora encobrindo, ora expondo uma palavra solitária: Socing. Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, bisbilhotando pela janela das pessoas. As patrulhas não eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias. […] Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível, inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo” (ORWELL, 2009, p. 12–3)

Orwell descreve, com um tom premonitório bizarro, a base de um pós-pan-óptico, um sistema cujo dispositivo “opera virtualmente, usando bases de dados em rede para canalizar fluxos de dados, especialmente sobre o que ainda está por acontecer” (BAUMANN, 2013, p. 111)

“Estamos criando homens domesticados que produzem enormes quantidades de dados e funcionam como chips muito eficientes num enorme mecanismo de processamento de dados. […] [Mas] sabemos muito pouco sobre nossa mente e, em vez de investir na sua exploração, nos concentramos em aumentar a velocidade de nossas conexões à internet e a eficiência de nossos algoritmos de Big Data. Se não formos cuidadosos, vamos acabar tendo humanos degradados fazendo mau uso de computadores sofisticados para causar estragos em nós mesmos e no mundo […] Quando algoritmos passarem a nos conhecer tão bem, governos autoritários poderiam obter o controle absoluto de seus cidadãos. […] Ou a democracia se reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão vivendo em ‘ditaduras digitais’” (HARARI, 2018, p. 92–101).

“A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos […] o que deveria ser um espaço civil, se transformou em um espaço militarizado […] Se nada for feito, em poucos anos a civilização global se transformará em uma distopia da vigilância pós-moderna, da qual só os mais habilidosos conseguirão escapar. Na verdade, pode ser que isso já esteja acontecendo” (ASSANGE et al., 2013, p. 25–53)

Cutscene da última missão de Call of Duty Warzone (Activision, 2020).

Dados pra lá e pra cá, parece um War infinito. Aí você encontra um artigo de que a ‘internet Big Tech’ está se tornando um modelo de refeudalização revisitada que aboliu o espaço público — ou, como definiu o delator do escândalo de dados da Cambridge Analytica-Facebook, Cristopher Wylie, um colonialismo moderno — com direito, óia só, até desmatamento em rede, e loteamento com Marketplace (MURDOCK, 2018, p. 13–31).

Você começa a repensar um pouco esse status quo nessa web alimentada com esses dados todos.

“Ver que os monstros que surgem; Tem origem na fuligem do vale; Quem diria, a pobreza de espírito aqui; Fez a de grana se tornar um detalhe; Dizem os jornais: calma, rapaz; Espere e verás, tudo está em paz”

vou te espionei

Guerra é paz?

Ah esquece essa paranóia aí, não existe privacidade hoje em dia mesmo!

Olha lá, chegou aquela ‘brusinha’ que você comprou depois de ver um anúncio na sua ‘rede social gratuita’.

Passa um tempo, e você descobre que nem queria a roupa mesmo, você já tem tantas. Agora vai ser mais um produto impulsivo no fundo do armário. Mas que timing daquele anúncio, te pegou na hora mais vulnerável.

“Um programa de publicidade pode começar com os detalhes demográficos e geográficos usuais. Mas, ao longo de semanas e meses, ele começa a aprender os padrões das pessoas que tem como alvo e a fazer previsões sobre seus próximos movimentos. Ele consegue conhecê-los. E se o programa for predatório, ele mede suas fraquezas e vulnerabilidades e busca o caminho mais eficiente para explorá-las” (O’NEIL, 2016, p. 155)

Chega a hora de ler aquela resenha de 1984 que você tanto adiou:

“Esse perigo existe não apenas nas versões russa e chinesa do comunismo, mas que é inerente ao modo moderno de produção e organização e é relativamente independente das várias ideologias. […] A nova forma de industrialismo gerencial, na qual o homem constrói máquinas que agem como homens e desenvolve homens que agem como máquinas, conduz a uma era de desumanização e completa alienação na qual homens são transformados em coisas e se tornam apêndices do processo de produção e consumo. […] A esperança só pode concretizar-se, nos ensina 1984, se percebemos o perigo que confronta os homens hoje, o perigo de uma sociedade de autômatos” (ORWELL, 2009, p. 378)

“Tudo seria substituído por uma nova sociedade centralizada planejada, modelada no totalitarismo. Uma nova classe “gerencial” composta de executivos, técnicos, burocratas e soldados concentraria todo o poder e privilégio em suas próprias mãos: uma aristocracia de talentos construída em uma sociedade semiescrava (ZUBOFF, 2019, p. 994)”

Parece que o algoritmo é bem mais embaixo e a tecnologia talvez tenha passado um pouco do ponto. Quer dizer, a nossa compreensão a respeito, sepá tenha minguado, tamanha confiança que depositamos no meio de tantas distrações, quem sabe a culpa foi o otimismo excessivo com tutela, progresso e ordem contínua (ele é positivista ele).

“O relator da ONU para Liberdade de Expressão, David Kaye, já destacou em diversas ocasiões a importância do direito à privacidade enquanto meio para a garantia da liberdade de expressão e de associação. Apesar de a ligação entre esses direitos ser algo complexo, em uma sociedade em que não há um controle sobre o fluxo de dados, imperando uma vigilância generalizada, sente-se imediatamente o chamado efeito inibitório. Isto é, ao saberem que estão sendo vigiadas e que suas informações não estão seguras, as pessoas não se expressam de forma livre, como o fariam caso lhes fossem garantidos o controle de seus dados ou até mesmo seu anonimato. Da mesma forma, as pessoas podem se sentir impelidas a não participarem de espaços públicos e da vida social — especialmente aquelas de grupos vulnerabilizados, como mulheres e LGBTQIA+, ou de um posicionamento político de oposição — o que afeta diretamente a sua liberdade de associação. O efeito inibitório também atinge jornalistas e comunicadores, que podem ser desencorajados a conduzir investigações ou a contatar suas fontes”.

“A privacidade, era uma coisa muito valiosa. Todo mundo queria ter um lugar em que pudesse estar a sós de vez em quando” (ORWELL, 2009, p. 166)

Ou você pode decidir que tudo isso é distópico de mais, longe da realidade.

Lidamos diariamente com um piloto automático no ambiente de rede, com a existência desse mito poderoso tecnoutópico de que “existe um espaço virtual separado, onde é possível ter mais privacidade e independência das instituições sociais e políticas” (MOROZOV, 2019, p. 122), como se tudo na net fosse inocente, quando não, verdade. Nessa ilusão,

O quanto da sua vida, dos seus dados, podem estar nas mãos de governos autoritários ou de empresas sem escrúpulos?

Aqui, da união da distopia com a realidade, qualquer desabafo, qualquer refúgio do cansado do dia-dia pode de forma despercebida se tornar um ativo rentável para um modelo de capitalismo dadocêntrico, que lucra politica e economicamente com uma sociedade de autômatos — coletando e coletando mais e mais dados para melhorar a eficiência de governos e a gestão de empresas, sendo eficiência e gestão coisas que eles mesmos nas cadeiras executivas têm poder de definir. E não dá nem pra saber se isso tá sendo de fato implementado ou manipulado, porque o dono da bola escreve as regras.

Mas isso não significa que não haja saídas. Algumas já existem. Claro, é difícil acompanhar esse processo ou até de reclamar em várias dessas brechas de vigilância, porque como todo mundo, pulamos aquele textão sobre uso de dados nos aplicativos e serviços digitais, nos esquecemos de trocar senhas, proteger dados ou nos informar a respeito da segurança deles, de alguma política de proteção de informações pelo governo, ou até pesquisar o que são algoritmos.

Arte: cafepress.com

É por isso que pra trabalhar criticamente com essa realidade precisamos conhece-la. Óbvio, podemos ignorar tudo isso e gastar a média brasileira de 9 horas online, quem sabe, com memes de gatinhos, que vamo combinar, são bem melhores. Infelizmente, nem mesmo os memes podem nos isentar dos efeitos dessa distopia, pelo contrário, se não despertarmos para os riscos de hoje no mundo digitalizado, a coisa pode ficar ainda pior — e não me refiro a twitteiros criando contas em PPV de Big Brother, eu falo de um Grande Irmão sabendo até a forma como você anda — coisa já implementada em muitos lugares do mundo, e deslizando também para o Brasil.

Mas quem tem tempo pra fazer essa chatice toda de se informar? Quem tem tempo pra pesquisar o que são algoritmos?

“Algoritmo é um dos conceitos mais básicos da computação, normalmente associado a uma receita de bolo. É um passo a passo para você resolver algo ou para realizar uma atividade, e a complexidade vai aumentando de acordo com a complexidade da atividade ou do problema que você tem para resolver

“Algoritmos estão observando você. Estão observando aonde você vai, o que compra, com quem se encontra. Logo vão monitorar todos os seus passos, todas as suas respirações, todas as batidas de seu coração. Estão se baseando em Big Data e no aprendizado de máquina para conhecer você cada vez melhor. E, assim que esses algoritmos o conhecerem melhor do que você se conhece, serão capazes de controlar e manipular você, e não haverá muito o que fazer. […] É uma simples questão empírica: se os algoritmos realmente compreendem melhor do que você o que está acontecendo dentro de você, a autoridade passará para eles” (HARARI, 2018, p. 329–30).

“O manual para anunciantes predatórios é semelhante, mas eles o executam em grande escala, visando milhões de pessoas todos os dias. A ignorância dos clientes, claro, é uma peça crucial do quebra-cabeça. […] Uma vez que a ignorância é estabelecida, a chave para o recrutador é localizar as pessoas mais vulneráveis ​​e então usar suas informações privadas contra elas. Isso envolve descobrir onde eles sofrem mais, o que é conhecido como o “ponto de dor”. Pode ser baixa auto-estima, o estresse de criar filhos em um bairro de gangues em conflito ou talvez um vício em drogas. Sua decisão é baseada mais na emoção do que na lógica. A dor é o maior motivador a curto prazo” (O’NEIL, 2016, p. 148–52)

Relaxa, fala meia dúzia de palavrões na sua rede social, e vá às compras pra esfriar a cabeça. Chega na hora de passar no caixa, e o atendente te convence a fazer um cartão de fidelidade, você aceita, espera… e pimba! A tecnologia neutra te barrou, de novo! Segundo ela, sem tempo irmão, cabou seu crédito porque ela somou uns números, cruzou uns dados aqui (que você sequer pode saber quais) e definiu que você é um mal pagador, e se reclamar nas redes sociais, ele está de olho também, vai perder mais brinde!

Aqui, a crítica não é resumida somente ao uso dos dados de forma pouco regulada, mas sim

“A forma unilateral e absoluta o compartilhamento de dados, como se isso fosse um bem em si mesmo, como se isso não fosse algo que — embora muito útil e necessário para a eficiência da máquina pública, para o melhor aproveitamento dos recursos públicos, para otimização dos recursos administrativos simplesmente não vai funcionar, […], se não forem colocadas barreiras, anteparos que procurem proteger o cidadão do abusos e do maus usos de seus dados pessoais”.

“Não há nada que impeça as empresas financeiras de utilizarem informações pessoais ou dados de redes sociais para fazerem análise de crédito. Mas também não há nada que estabeleça limites para o cruzamento dessas informações ou para o stalking financeiro. E nem que garanta ao consumidor informações sobre os critérios utilizados na elaboração de sua nota, ou que lhe forneça maneiras de mudar a sua reputação ou corrigir alguma informação”.

Somos classificados, categorizados e pontuados em centenas de modelos, com base em nossas preferências e padrões revelados. Isso estabelece uma base poderosa para campanhas publicitárias legítimas, mas também alimenta seus primos predadores: anúncios que localizam pessoas em grande necessidade e lhes vendem promessas falsas ou caras. Eles encontram desigualdade e lucram com isso. O resultado é que eles perpetuam nossa estratificação social existente, com todas as suas injustiças. A maior divisão é entre os vencedores em nosso sistema, como nosso capitalista de risco, e as pessoas que seus modelos perseguem. Onde quer que você encontre a combinação de grande necessidade e ignorância, provavelmente verá anúncios predatórios […] eles prometem o que geralmente é um caminho falso para a prosperidade, enquanto também calculam como maximizar os dólares que obtêm de cada cliente em potencial. Suas operações causam ciclos de feedback imensos e nefastos e deixam seus clientes soterrados por dívidas. E os alvos não têm ideia de como foram enganados, porque as campanhas são opacas […] Com esse conhecimento, ele sabe que está a meio caminho de uma venda antes mesmo de limpar a garganta para falar." (O'NEIL, 2016, p. 143–6)

Parsa, quer dizer que as empresas podem assinar o PPV do Big Brother no teu nome! E se você reclamar você toma ban porque tá atrapalhando os negócios!

Vendem-se: seu endereço, CPF e telefone

“Se o único critério para avaliar a nossa política tecnológica está no quanto ela promove os avanços dos interesses corporativos, então há muito a se reprovar na proteção de dados e, na prática, em todas as leis da privacidade. E em breve teremos de nos deter apenas neste critério: o fato de descreverem um mundo só de empresas, desprovido de quaisquer outros agentes políticos […] [onde] a privacidade — um dos principais obstáculos políticos à ‘alta densidade digital ‘ — também é uma das barreiras para a recuperação econômica. […] Os cidadãos não só perdem o direito à privacidade, como as próprias tentativas de esconder algo serão tidas como ofensa ao livre-comércio ou como iniciativa de solapar a segurança nacional”(MOROZOV, 2019, p. 72–5).

Não pera. Nem sempre é assim, vamos tentar olhar menos pro setor privado, afinal, afirmar que “o capitalismo de vigilância foi inventado por um grupo específico de seres humanos em um tempo e lugar específicos” é não só apagar grande parte dessa história anônima, como também eximir alguns responsáveis dentro da esfera executiva de poder.

“Estamos lidando com forças econômicas e políticas incrivelmente poderosas […] as eficiências naturais das tecnologias de vigilância, em comparação com o número de seres humanos, nos levarão aos poucos, a nos transformar em uma sociedade de vigilância totalitarista global — e com o termo totalitarista, quero dizer uma vigilância total” (ASSANGE et al., 2013, p. 81)

Tecnoautoritarismo é a expansão do poder estatal, mediante uso de tecnologia de comunicação e da informação de ponta com o objetivo de incrementar as capacidades de vigilância e controle sobre a população mediante ou a violação de direitos individuais ou sob risco de violação de direitos fundamentais

Pensamos em casos de tecnoautoritarismo em regimes mais fechados, como a regulação de informação russa do Roskomnadzor ou o amplo sistema de câmeras com reconhecimento facial a serviço de Putin; lembramos da pontuação de crédito social da China, ou a implementação, no país oriental, de um aplicativo de combate à disseminação da Covid-19 usando vigilância massiva, “no qual os cidadãos se cadastravam informando nome, número de identificação pessoal e número de celular, para, em seguida terem seus movimentos monitorados.

Nessa linha, há também o “cartão da pátria”, com convênio da ZTE chinesa, na Venezuela; podemos ver até esse tipo de centralização em países mais democráticos como o modelo biométrico Adhaar da Índia ou o aplicativo contra a Covid-19 da Singapura (já citado como exemplo de ‘boa gestão de dados’, mas que acabou sendo utilizado pela polícia local):

“O governo está usando o COVID-19 como desculpa para implementar plataformas e políticas de engenharia social e vigilância pública que normalmente nunca teriam sido consideradas nem palatáveis ​​publicamente”.

Para evitar o aparelhamento de dados e de um sistema de vigilância nas mãos de um tecnoautoritário, com potencial de criar uma ditadura digital, o filósofo Yuval Harari — o mesmo que no começo do texto nos atentou para a necessidade de protegermos nossos dados — trouxe 3 reflexões importantes sobre como evitar, mesmo em crises, a chance de perdermos nosso poder enquanto cidadãos:

não faz sentido. nem tudo faz, nem tudo tem de fazer… (e tá tudo bem, sabe? Você não é definido por uma história única)

“Nas mãos de um governo benigno, algoritmos poderosos de vigilância podem ser a melhor coisa que já aconteceu ao gênero humano. Mas os mesmos algoritmos de Big Data podem também dar poder a um futuro Grande Irmão, e podemos acabar em um regime de vigilância orwelliano, no qual todo mundo é monitorado o tempo todo” (HARARI, 2018, p. 92)

Tá, pera lá, sepa passou do ponto. Você decide se informar um pouco, porque a privacidade como serviço parece ter dado ruim.

Nesse momento, chegou uma informação do seu banco super inteligente, diferentão e chique: ele disse que com um novo modelo de gestão, o algoritmo deles não aprovou seu pedido de crédito e você não pode recorrer, porque, segundo o governo, isso inviabiliza os modelos de negócios de ‘muitas empresas’, além de impactar na ‘análise de risco de crédito e de novos modelos de negócios de instituições financeiras’. Sim, você inadimplente ou não (porque o algoritmo, se ele quiser, tem autonomia pra dizer que você e um Pokemon), está impedindo fintechs, de fazer dinheiro — , algumas inclusive que pelo Pix vazam o seu CPF mesmo você não tendo o cartão chique deles, aliás, principalmente se você não ter conta ali e receber de um titular ‘chique’.

Magina só? Tu recebe por um job e acaba ganhando a conta do PPV do Big Brother fora do teu nome…

Mas você simplesmente engole o algoritmo, porque não tem outra opção… Tem?

espiões russos em toda parte meu

“Se a gente tivesse um czar de cibersegurança, não seria diferente de um czar que participou das forças de segurança nacional de alguma outra nação cinquenta anos atrás. Estamos construindo o mesmo tipo de estruturas de controle autoritário que atrairão pessoas que queiram abusar delas, e tentamos fingir que a situação é diferente no Ocidente” (ASSANGE et al., 2013, p. 132)

“Entendo COMO, mas não entendo POR QUÊ.” (ORWELL, 2009, p. 100)

2) Os dados dos outros

eu vivo na bolha, teu argumento é inválido

“Conceda ao administrador do governo ou de empresas o uso de um arquivo nacional integrado da população […] e você lhes terá proporcionado uma poderosa ferramenta de interferência na vida privada, para manipular, para vender mais, para condicionar, para coagir”

Foi fugindo desse perigo de vigilância, discriminação e controle digital, por parte de empresas e governos à ‘1984’, que a noção de proteção de dados enquanto garantia fundamentais no âmbito dos direitos humanos evoluiu.

Tendo a privacidade como um direito fundamental inviolável, legislações robustas ao redor do mundo foram escritas de forma a segurar a onda dos algoritmos, diferenciar os tratadores de dados e os titulares deles, e frear a compulsão de mercados e governos em consumir e vender dados.

Na Europa, a RGPD (Regulação Geral de Proteção de Dados), proposto em 2012, aprovado em 2016 e em vigor desde 2018, chegaria como uma das maiores garantias de privacidade.

Tanto, que inspirou nosso legislativo, já cansado em debates por 8 anos, na formulação da LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados, com participação de entidades civis, empresas e políticos. O objetivo era claro: proteger a autonomia dos cidadãos. Na época, a partir da redação da lei:

“Possibilita-se que cidadãos e cidadãs tenham maior controle sobre suas informações. Essa garantia é dada ao exigir o consentimento explícito para que uma instituição — tanto privada quanto pública — possa coletar e usar dados de um(a) usuário(a). Ou seja, uma empresa não “escapará” de um processo se apenas colocar essa permissão “escondida” em seus Termos de Uso. Além disso, o PLC 53/2018 possibilita a visualização, alteração e exclusão dos dados concedidos. A lei também define que cabe ao usuário, ou à usuária, permitir que seus dados sejam compartilhados com bancos de dados ou não”.

Mas a LGPD não criou a proteção aos dados no país. Antes dela, já haviam garantias à privacidade dos brasileiros.

"O conceito de dado pessoal já estava presente no Código de Defesa do Consumidor que, em seu capítulo V, seção VI, já tratava de banco de dados e cadastro dos consumidores. O conceito também já estava presente na Lei de Acesso à Informação que, ao disciplinar o acesso à informação no contexto do órgãos da Administração Pública Federal, definiu o termo “informação pessoal” como aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável. O Marco Civil da Internet faz referência a registros de conexão e acesso a aplicações de Internet como exemplos de “dados pessoais” e considera que “dados cadastrais” são compostos de qualificação pessoal, filiação e endereço"

Outra forma de tratar dados foi com o Cadastro Positivo, criado em 2011 como um sistema optativo aos cidadãos, em que bancos e instituições poderiam criar pontuações de crédito dos usuários com base em dados coletados, mas estabelecendo “direitos aos cidadãos a respeito do tipo de informação que pode ser coletada e transparência e poder de retificá-las. A lei proíbe expressamente a coleta de ‘dados excessivos’ e de ‘informações sensíveis’”.

tem que manter isso aí, viu?

Nada a temer aqui, né? Aí o presidente que assumiu em 2016 decidiu que o ideal era tornar o compartilhamento de base de dados sem necessidade de celebração de acordos e convênios entre órgãos e entidades. Ainda, seria compulsório o sistema de Cadastro Positivo (agora, impostivo), que apesar de facilitar as notas de crédito, abriu uma brecha na possibilidade de concentração de dados massivos por um sistema financeiro dominado por poucos bancos, cuja centralização de dados ainda criou pontos de vulnerabilidade.

“Em suma, o decreto reduziu barreiras e favoreceu a ‘construção de pontes entre bancos de dados’, enquanto calou sobre as salvaguardas à privacidade, segurança e proteção (limitando-se a excepcionar de sua incidência dados protegidos por sigilo bancário e fiscal). Estabelecendo condições normativas para que uma variedade de bases de dados fossem compartilhadas e cruzadas e ensejando, assim, usos de Big Data no âmbito da administração pública, o decreto falhou em prever limites a tais usos, endereçar os riscos à segurança associados e dispor sobre a proteção de dados”.

Crédito: Lula Marques

Mas aí veio a LGPD para acabar com a zorra (será?). A lei, ratificada em 2018, passou a garantir ‘direitos fundamentais de liberdade e de privacidade’, bem como outros fundamentos, como o da ‘autodeterminação informativa’ (que dá direito ao acesso, correlação e exclusão de informações pessoais presentes em bancos de dados) e a ‘inviolabilidade da intimidade’, estabelecendo para os cidadãos a titularidade de seus dados pessoais”.

A LGPD também prevê uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, responsável por centralizar as discussões de políticas públicas sobre gestão e utilização de dados pessoais. Ela só teria seus nome indicados no final de 2020.

Também com a LGPD, a diferenciação dos tipos de dados e de seus tratamentos visava assegurar a descentralização do processamento e uso de informações dos brasileiros, onde a boa governança se estabelece por “salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade.

qndo vc descobre os petróleo do século XXI — dados

A LGPD, no entanto, não conseguiu alterar a Constituição Federal no âmbito de “incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais”. Um projeto do tipo, a PEC 17/2019, ainda tramita na Comissão de Constituição e Justiça.

“Na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, determinou, em seu artigo V, o seguinte: Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar. No mesmo ano, a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que também visa à garantia desses direitos: Artigo 12. Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

Apesar disso, com a autodeterminação informativa, a LGPD busca garantir o cumprimento no âmbito digital do inciso X do artigo 5º da Constituição da garantia fundamental da privacidadesão invioláveis a intimidade (relações mais próximas de um indivíduo), a vida privada (relação do indivíduo com a sociedade), a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação

“Esse inciso busca impedir a intromissão de estranhos na vida privada e familiar de cada um, limitando o compartilhamento de informações pessoais e íntimas dos indivíduos sem seu consentimento”.

Você não violará minha privacidade!

“[a LGPD] também criou uma categoria especial para os chamados “dados sensíveis”. Aqui estão incluídos informações como raça, crenças, gênero e opiniões políticas. Esse cuidado especial, que faz com que o acesso a esses dados seja mais restrito, deve-se ao risco de uma pessoa ser discriminada a partir deles.

Também, havia a meta de evitar até mesmo que desigualdades fossem amplificadas pela tecnologia. Um desses exemplos era “a obrigatoriedade de uma avaliação humana em caso de um indivíduo recorrer de uma decisão da máquina”. A garantia de proteção contra decisões puras das máquinas era também sobre reconhecer o viés discriminatório presente em algoritmos, que “trabalham com probabilidades, não com certezas”.

“É importante reforçar sempre que tecnologia não é neutra, que reproduz comportamentos, visões de mundo, cultura de quem as cria”

A discriminação algorítmica é uma violação de direitos humanos porque ataca o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão e à livre circulação. Sim, algoritmos, os tais filtros invisíveis, possuem ideologias, afinal, são programados por humanos que não têm como deletar suas crenças e por vezes a transmitem para a máquina, principalmente se a programação for dominada por grupos hegemônicos (brancos, homens, héteros, do hemisfério norte).

Isso foi visto no uso de monitoramento facial e com algoritmos pra amplificar vieses racistas em sistemas de reconhecimento de fotos e monitoramento que explicitaram discriminações no policiamento (reportagens especiais da Agência Publica, do Fantástico e do Intercept a respeito). Isso rolou até em redes sociais, como quando um professor negro teve a cabeça ‘cortada’ durante uma aula online em que o educador tentou fazer uso de um fundo virtual, imagina, então com o crédito relacionado ao IA?

Mas esquece isso aí, esse país da democracia racial não possui discriminação.

Foi assim que, mesmo sabendo do risco do enviesamento algorítmico, a possibilidade de recorrer da decisão mecanizada foi vetada em 2019, porque ia prejudicar os modelos de negócios, mesmo que elas tivessem um sistema capaz de reproduzir discriminações.

amor de main gente, leva na boa

Falso consenso, imposto por algoritmos baseados em dados falhos, é tão ruim quanto notícias falsas […] A questão crucial para a nossa investigação é a de saber se a nossa dependência crescente em relação às grandes empresas de tecnologia reforça a nossa autonomia — não apenas como consumidores, mas também como cidadãos.[…] Enquanto a narrativa cultural dominante considerar a tecnologia como a arma dos fracos e dos pobres, e não como a arma apontada aos fracos e pobres, há pouca esperança de que fenômenos como o extrativismo de dados sejam realmente levados em conta. Aqui, claro, não se trata tanto da tecnologia em si, mas da tecnologia tal como é manipulada hoje pelo setor extrativista de dados […] É a privacidade como direito” (MOROZOV, 2019, p. 172–9).

As bizarrices na terra do poder moderador não acabam aí. No veto, caso houvesse algum desrespeito ao tratamento dos dados por parte de empresas ou de órgãos públicos, na linha do governo, era melhor não ter punição como interrupção parcial da operação de banco de dados e a proibição parcial e total de atividades ligadas ao tratamento de dados”, porque poderia prejudicar a estabilidade do sistema financeiro nacional.

Coitados, iam prejudicar também o mecanismo que alimenta as fintechs com informações provenientes dos data brokers, ou birôs de crédito, que stalkeiam seus dados e faturam com isso R$3 bilhões ao ano no país. Foi nessa linha de proteção absurda ao mercado, também, que a LGPD “acabou aprovada e sancionada com a ‘proteção ao crédito’ entre as finalidades previstas para uso de dados pessoais — algo único no mundo. Assim, os dados poderiam ser recolhidos sem o consentimento do usuário.

Mas o governo atual deve estar fazendo algo melhor com a tecnologia para garantir a privacidade como direito. Lê-se, a segurança de nossos dados. A julgar pelo Pay Per View do Big Brother de Augusto Heleno, a primeira vista, parece que não.

Mas relaxa. Não tem como um governo conseguir reunir tantas informações assim e processá-las entre seus órgãos executivos, muito menos de usá-las de forma a garantir sua manutenção de poder, né?

Tá suave, clã, principalmente aqui no Brasil, afinal, tivemos a LGPD, e apesar dos pesares, garante a proteção de nossos dados.

"Já era Achar que a LGPD não ia pegar no Brasil

Já é Explosão de reclamações no site Reclame Aqui com relação a uso de indevido de dados

Já vem Explosão de reclamações de eleitores com relação ao uso indevido de dados"

3) Quando alguns dados são mais cidadãos que outros

Manifestantes protestam em frente ao Congresso Nacional contra gastos na Copa, corrupção e por melhorias no transporte, na saúde e educação. Jose Cruz/ABr — Agência Brasil

“Se olharmos para a internet do ponto de vista das pessoas no poder, os últimos vinte anos foram aterrorizantes. […] Eles veem a internet como uma doença e perguntam a seus conselheiros: vocês têm algum remédio contra essa coisa? […] E a resposta é a vigilância em massa: ‘precisamos controlar isso completamente, precisamos filtrar, precisamos saber tudo o que eles estão fazendo’” (ASSANGE et al., 2013, p. 44)

Ih, essa simulação deu ruim, tcho voltar no tempo…

Do nada, você tá no feed e vem uma notícia do uso de fotos pra reconhecimento facial para segurança (uau, tecnologia a serviço do cidadão de bem).

É claro, tudo pelo progresso! É por isso que temos câmeras instaladas para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 permaneceram no local mesmo após o término desses eventos; também explica o vigilantismo do Sistema Córtex nas câmeras de segurança de trânsito, o reconhecimento facial em aeroportos, e até a base de dados com informações criminais e DNA que chega a informações de 200 milhões de brasileiros — tudo, tudo é pra sua segurança, ok?

“Dizer que você não se importa com privacidade porque não tem nada para esconder não é diferente de dizer que você não se importa com liberdade de expressão porque não tem nada a dizer”

Mas que olhos tão grandes são esses vóvózinha?

É pra te enxergar melhor!

Foi com essa brecha, que foi autorizada um Big Brother policial, a Diretriz Olho de Águia — uma norma secreta editada pelo comando da corporação em 2011 em que os policiais militares do Estado de São Paulo estão autorizados a gravar imagens e áudios em manifestações “e armazená-los todos num banco de dados secreto ao qual você nunca terá acesso”.

1984, QAnon, and the “Goldstein” Effect: quando usam Orwell de forma flagrantemente errada

Nessa linha, também, temos a proposta de reconhecimento facial nas câmeras do metro de São Paulo — sem qualquer precaução a vazamento de dados e violação de privacidade.

Na guerra, tá permitido tudo, inclusive usar o reconhecimento facial à revelia, porque não há necessidade de resguardar os direitos do cidadão — com transparência das autoridades na utilização de reconhecimento facial — tampouco a constante revisão humana dos algoritmos para evitar decisões estruturais, nem a realização de testes periódicos, ou criar comitês multissetoriais possibilitando a fiscalização. Quem liga pra privacidade se estamos lutando contra a bandidagem né não? Estamos em guerra, e aqui cabe tudo (até mesmo dizer que o conflito é a sua paz). O Big Brother não erra. Você aí que discorda deve ser apoiador de Emmanuel Goldstein, criminoso do pensamento.

E tá tudo bem sabe? Continuamos nos informando pela timeline (como 70% da população) e, ignora-se, aqui que pode ser perigoso por causa da parcialidade do algoritmo. Tá tudo neutro, menos você.

“Estamos buscando um jeito de usar as políticas públicas, o ativismo e a pressão popular para delinear um ambiente tecnológico que seja mais justo e que possa conduzir a uma vida democrática e política, e não apenas para o consumo e a vigilância, que é o que o sistema atual nos oferece”

pelos poderes supremos do centrã1, eu tenho a forçaaaa

É quando aparece a informação do governo de que agora vão tornar compulsória a adesão a uma mega base de dados.

Assim chegou ao Brasil o Cadastro Base do Cidadão, a continuação de um “Frankstein sem convênio”, legado de Michel Temer, o responsável pelo Cadastro Positivo se tornar impositivo.

O decreto publicado por Bolsonaro no final de 2019 revoga o decreto de Temer e amplia o compartilhamento de dados com dispensa de convênio, fazendo-o valer não apenas para a administração pública federal, mas também para os ‘demais Poderes da União’.

pra entender pq deu ruim…

Esse cadastro foi criado por um decreto obrigando todos os órgãos federais a compartilhar a maioria dos dados que possuem sobre os cidadãos brasileiros, de registros de saúde a informações biométricas, e consolidá-los em um vasto banco de dados, [porque], espera-se aumentar a qualidade e a consistência dos dados. Assim, o governo poderia — de acordo com a linha oficial — melhorar os serviços públicos, reduzir a fraude eleitoral e reduzir a burocracia.

Tudo com finalidades extremamente abrangentes, e com potencial de legitimar quase qualquer uso dos dados pessoais pelos órgãos federais…

foto de perfil // vida real

Mas esquece isso aí.. voltemos à utopia, estamos no mundo tech onde tudo é perfeito e tudo vale pela segurança! O monopólio de dados não quer dizer mais burocracia, muito menos descaracterização de direitos!

Você dá pulos de alegria ao ver o Big Data que deu certo — a serviço das garantias do cidadão como escrito no decreto, pra melhorar a nossa vida, desburocratizar esse Estado gigantesco — agora teremos uma central de dados com todas nossas informações, um sistema que com certeza será superprotegido!

Melhor, essa centralização toda deve ser algo feito o Cadastro Positivo — “dados fornecidos e centralizados nas mãos de entidades conhecidas como data brokers, como os birôs de crédito”, (aqueles mesmos que se enfiaram no meio da redação da LGPD pra garantir os direitos de usar nossos dados sem nenhum consentimento).

Mas relaxa.

Quem diria, agora no Brasil, onde “um punhado de poucas empresas serão detentoras de megabancos de dados centralizados”, tudo será mais fácil, e para nós é claro. Com certeza essa concentração é segura! Daqui a pouco estaremos na Estônia, uma democracia digital! Terão até nossos dados bioquímicos, oiá só a ciência! Os comentários dos perfis da notícia dizem isso (na verdade, todos dizem isso, e que estranho, com a mesma mensagem, parece até meio robótico)

Se tá na internet é verdade!

Bate um espírito empreendedor em você: “Agora vai!!! Segurança centralizada! Não tem como dar errado!”

Aí passa um tempinho…

Não é possível! Quem poderia previr isso? Agora, “um megabanco de dados está disponível na deep web, acessível a qualquer pessoa, incluindo criminosos e países estrangeiros”?

#Canetou

Você acha mesmo que é abuso passar por cima de uma lei discutida durante 8 anos para poder criar do dia pra noite o cadastro em nome do cidadão, que na prática é uma ferramenta compulsória de “vigilância estatal imensa, que vai bem além de informações pessoais básicas como CPF, filiação, data de nascimento[…] todas as informações laborais e biométricas?”

“O plano é usar genoma, rostos e impressões digitais como uma forma de identificar as pessoas facilmente, sem que elas saibam exatamente como, o que é bastante assustador”.

Não tem nem como reclamar que o governo não sabia dos riscos, ele “deixou claro que pretende reunir ‘características biológicas e comportamentais mensuráveis’ que ‘podem ser coletadas para reconhecimento automatizado’ — palma das mãos, digitais, retina, íris, rosto, voz e maneira de andar

“E não é só isso. No decreto 10.047, o governo detalha as bases de dados que serão replicadas no Cadastro Nacional de Informações Sociais, o CNIS, — são mais de 50. Elas também incluem registros de veículos, informações educacionais (dados do ProUni, Fies e Sisu), frequência escolar e até informações de saúde, como cadastro de gestantes e os sistemas de informação de câncer de colo do útero e de mama. Tudo atrelado ao seu CPF e a suas informações biométricas”.

O Decreto foi apresentado como forma de desburocratizar os serviços públicos e trazer facilidades ao cidadão. Contudo, sob a justificativa de melhorar a prestação de serviços públicos, o decreto acaba por prejudicar cidadãos em seu direito à privacidade e proteção de dados. Pela redação do Decreto, o governo se coloca como dono das informações dos cidadãos, e não como um controlador destas para determinadas atividades e serviços, amplificando inclusive a realização de práticas de vigilância sobre os brasileiros”.

The Intercept: Apesar da pandemia ter atrasado tramitação de PLs, implementação da megabase continuou a todo vapor. Infográfico: Coding Rights (Cadastro Base do Cidadão — A Megabase de Dados)

Liberal? Não, monopolista. Parabéns aos envolvidos, Orwell ficaria orgulhoso.

Com uma canetada temos uma mega-base de dados centralizada, compartilhada entre 28 órgãos do executivo, “sem que o cidadão esteja ciente dos usos”, ainda, criada sem qualquer tipo de consulta pública, e sem explicitar sua finalidade além do ‘é pra melhorar a gestão’. Nem porque por exemplo, para tal, a Abin e o Exército teriam acesso ao MegaPack de dados que possibilitam uma ferramenta que pode ser instrumentalizada para práticas de vigilância em massa, censura e segregação.

Aqui, repete-se o erro do decreto de Temer, ignorando que “um programa de compartilhamento de dados não pode só ser justificada em termos de eficiência de gestão do Estado, como o governo até agora o fez. Ele precisa instituir garantias aos indivíduos afetados”.

Como se não bastasse, há ainda uma outra finalidade apontada, “‘o aumento da qualidade e eficiência das operações internas da administração pública federal’ — o que parece ampliar significativamente as hipóteses de justificação para compartilhamento de dados.

“As definições de dados, ampliando suas formas de compartilhamento, e crescimento desta base de dados integradora, sem levar em conta os princípios da finalidade, necessidade, transparência, entre outros, estão não apenas em desacordo com a LGPD, como também, pelo alto potencial de violar nossa intimidade e vida privada, nos leva a questionar a constitucionalidade do decreto, nos termos do artigo 5, inciso X, da Constituição Federal.”.

Além das várias inconsistências na garantia de privacidade, falta rigor e precisão às definições do conjunto de informações disponíveis no Cadastro Base — ele sequer incorpora princípios centrais e diretrizes já consolidados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ignora o termo “dados pessoais”, a exemplo de seu antecessor, e opta pelo uso de expressões estranhas aos regimes de proteção de dados, como ‘atributos biográficos’ e ‘atributos biométricos’”, se referindo de forma genérica e abrangente com terminologias como ‘fatos da vida’.

recebi aqui no zap nem chequei

O decreto [que criou o Cadastro Base do Cidadão] ignora não apenas a definição de dado pessoal da LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados], mas também a especificidade dos dados pessoais sensíveis, isto é, aqueles relacionados à origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou à organização de caráter religioso, filosófico ou político, à saúde ou à vida sexual, bem como dados genéticos ou biométricos. Os dados sensíveis possuem requisitos de tratamento específicos garantidos pela LGPD exatamente pelo potencial discriminatório que seu uso pode gerar sobre a vida de um usuário”.

É importante dizer que o decreto não desconsidera a LGPD (pelo menos, não totalmente). O compartilhamento mais amplo possível, de acordo com a medida, deve seguir os princípios da LGPD, e em muitos casos realmente ele regulamenta e procedimentaliza o compartilhamento já previsto pela lei. No entanto, o duplipensamento infralegal se torna flagrante quando determina todos esses procedimentos, mediante uma coleta “à revelia das diretrizes e dos princípios que estruturam o regime de proteção de dados, aos quais a LGPD condiciona o tratamento de dados pelo poder público.

"Notamos que poucos princípios da LGPD foram devidamente explorados. Identificamos apenas uma breve menção à transparência como um objetivo do programa de governo digital, mas sem que se trouxesse informações sobre como essa transparência seria garantida; e da segurança, razoavelmente explorada nas páginas 8 a 11. Contudo, princípios fundamentais para garantir o atendimento da LGPD como finalidade, necessidade e adequação, foram deixados de lado".

Com a relativização de conceitos, além de basicamente ignorar a legislação de proteção de dados, “o governo ainda está agindo como se ele não fosse uma preocupação, o que a falta de expertise coloca em risco a própria proposta de compartilhamento de dados, tanto como a confiança da sociedade civil.

“Se você constrói um sistema que registra tudo sobre uma pessoa e sabe que está em um país que possui leis que o forçarão a revelar essas informações ao governo, então talvez você não devesse construir esse tipo de sistema” (ASSANGE et. al, 2013, p. 76)

Uma medida capaz de tornar unilateral essa coleta e compartilhamento, se não tiver salvaguardas, limites de compartilhamento, e proteções adequadas previstas na LGPD — aqui, por exemplo, a restrição a dados necessários somente para a execução de políticas públicas — , vão gerar uma cadeia de desconfiança a médio e longo prazo que vão desestruturar a capacidade do Estado de gerir políticas públicas e até incutir respeito à população”.

“A leitura do Decreto não permite determinar como será feito o compartilhamento de dados para fins diversos dos quais o titular deu seu consentimento no momento da coleta de suas informações, nem como ele será informado dessa operação. Ou seja, o governo federal pode ter obtido a foto de um cidadão para uma carteira de motorista e utilizar essa imagem para medidas de reconhecimento facial, atividades totalmente distintas”.

Coletei os dados, o que fazer agora? Nada. O algoritmo marca.

“Essa discussão de centralização de base de dados e interoperabilidade é preocupante quando a gente tem um cenário brasileiro onde essa centralização é desenvolvida sem ter em mente salvaguardas que a própria Lei de Proteção de Dados impõe […] [ainda] sem uma conversa com o poder público, sem uma conversa com a sociedade civil — e logo depois de meses de discussão onde a gente ficou debatendo se os agentes públicos são ou não agentes de tratamento — é muito preocupante, porque a gente ainda tava num processo de consolidação da administração pública […] e a gente tem o governo na surdina regulando sua própria atividade de forma autônoma e nada harmonizada com a LGPD”

puts, simula de novo aí

Em outras palavras, tivemos um “tô fazendo nada, deixa eu coletar uns dados e criar umas conta no PPV do BBB, sem qualquer compromisso com a legislação, a menos que ela me favoreça politicamente”.

É nesse pensamento seletivo que a mesma desprezada LGPD pelo governo é convocada por ele mesmo evitar que a Lei de Acesso a Informação forneça nomes de visitantes do Alvorada como lobistas da indústria de armas no país ou de visitas de advogados como Frederick Wassef (aquele advogado competente de Atibaia, que também indicou a empresa da esposa pra cuidar de um sistema do STJ que acabou sendo vítima de um ataque hacker):o motivo da falta de transparência é porque quem entra e quem sai do local pode pôr em risco a segurança de Bolsonaro e família. Fazer o que? Algumas seguranças são mais iguais que outras. Talvez assim Augusto Heleno abriu mão do CPF, deve ter sido algum tipo de peso na consciência.

“Liberdade é poder dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for admitido, tudo o mais é decorrência” (ORWELL, 2009, p. 101)

Mas no governo do duplipensamento, não basta a vigilância desregulada e a flexibilidade constante no tratamento dos fatos, rola sobretudo, a falta de transparência quando convém. Afinal, onde os dados atrapalham, devem ser eles os culpados, quando não perseguidos pela insegurança jurídica” (basta ver os dados escondidos da escritura pública novo apartamento do 01, os vetos sobre a LAI, o apagão de dados do INPE; a do Ministério da Saúde em meio a disparada de infecções por Covid-19; e, óia só, as tentativas de flexibilizações — porque foi mais de uma — da Lei de Acesso à Informação). Enquanto isso, aquelas informações que garantem poder, precisam ser centralizadas — nem que pra isso seja necessário passar por cima da letra da lei, afinal, quem liga pra isso né? Não existe mais privacidade hoje em dia.

“Em teoria, os regulamentos que estão sendo criados hoje são reversíveis. Mas uma vez que a tecnologia de vigilância e grandes quantidades de dados estão nas mãos das autoridades, é difícil retirá-los. ‘Se a polícia comprar o kit, eles vão usá-lo até que pare de funcionar’”

OK, mas aí você pode me dizer que no meio de tanta informação, vai ter pelo menos um grupo técnico pra avaliar e tratar tantos dados. Afinal, é um governo de peritos. Pois digo que vai ter sim, e toda segurança vai ser definida por um Comitê Central de Segurança de Dados, integrado por sete representantes do governo.

“sem qualquer tipo de participação popular”

é rir p ñ chora

Já viu? Cidadão sem cidadão…

Será que essa centralização toda por decreto, em outubro de 2019, tem relação com o aumento da rejeição ao governo no segundo semestre daquele ano? Não sei..

Esperar o que de um governo que promete um poder técnico mas adora militarizá-lo sempre que se sente ameaçado?

Talvez por isso a promessa de autonomia da Agência Nacional de Proteção de Dados — ANPD, o órgão fiscalizador da LGPD estabelecida de forma lenta e morosa, ainda tenha se afundado com 3 militares em seu conselho (apenas China e Rússia possuem um conselho do tipo a cargo de militares).

"Algo que, somado à existência do novo Comitê Central de Governança de Dados, traz ainda mais preocupações. Um dos pontos críticos é que o texto do decreto de estruturação da ANPD incluiu detalhes novos sobre o funcionamento do órgão que não foram objeto de debate com os setores interessados e que trazem questionamentos sobre sua autonomia. Como, por exemplo, (a) a possibilidade de submissão de questões administrativas referentes à LGPD à Advocacia-Geral da União, presente no inciso XX do art. da Estrutura Regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados; e a (b) possibilidade de requisição de militares das Forças Armadas e cessão de membros das Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares para a ANPD poderem ser feitos pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República".

Aqui, há a confusão entre as atividades de proteção de dados e proteção de informações estratégicas, pautada pela uma “dicotomia entre tratamento de informações pessoais e atividades de segurança cibernética, um desafio fundamental para garantir a imparcialidade e autonomia do órgão”.

“Pertencer aos quadros das Forças Armadas não torna ninguém um proscrito em outras áreas serviço público, mas algumas características levantam o temor de um aparelhamento do órgão de proteção de dados. Entre elas, está uma possível confusão entre as atividades de vigilância e de segurança nacional típicas dos militares, de um lado, e a missão da agência de defender a privacidade dos cidadãos, de outro […] O governo também usa a categoria para dar peso a suas ações de monitoramento, o que ficou explícito com o aumento da presença de militares na Abin (Agência Brasileira de Inteligência).”.

Além de centralizar a segurança digital nas mãos de militares, esse tipo de posicionamento contra pesquisadores e técnicos civis acelera a diáspora de cérebros. Ignora-se nesse decreto ‘cidadão’, (além de tantas outras ignorâncias enquanto força), também, a necessidade haver separação de informacional de poderes — termo cunhado pelo Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht)

“o Estado não deveria ser considerado uma entidade única no que diz respeito à coleta e utilização de dados pessoais. Apenas os dados absolutamente necessários para a consecução da finalidade informada no momento da coleta e correspondentes à competência específica da respectiva autoridade ou órgão público poderiam ser coletados e tratados […] o Estado não deveria ser visto como um, mas uma pluralidade de entes que processam individualmente os dados de que necessitam para desempenhar suas funções. Nesse contexto, a transferência, compartilhamento e integração de dados interna ao Estado consiste num ato de processamento, também carente de previsão legal”

Do contrário, é como se tivéssemos na República Velha, com um governo em que ele mesmo conta os votos que elegem ele.

Mas quem liga né?

o botão que o governo aperta todo dia

Assim, do nada, absolutamente do nada (óia só), o governo a favor da liberdade do cidadão, da privacidade e dos direitos individuais — tendo a única bala de prata para tal o fato de se mostrar oposição à centralização de poder ditatorial em governos como a China e a Venezuela — , copia o sistema de vigilância total desses mesmos países autoritários. Mas relaxa, só colocar ‘cidadão’ no nome ai no meio que já fica tudo bem.

Agora imagina se um governo de esquerda vem com essa ideia de criar cadastro compulsório ultra-centralizado em prol de políticas sociais? Socorro! Imagina se então fica a cargo de militares? Meu Deus! É a Venezuela!

É assim que temos governos que aproveitam momentos de crise, e a brecha da falta de informação de muitos brasileiros sobre a política de poder dos dados para centralizar o controle desse fluxo a seu favor com cadastros orwellianos do tipo, inclusive colocando no seu conselho as raposas para tomar conta do galinheiro. É o que acontece quando “você não tem cidadãos, não tem comunidade técnica, não tem sociedade civil — nem mesmo pretende ser uma comissão independente”.

Esse cadastro do Big Brother com seu conselho de bem, tem tudo pra dar errado, principalmente pela política atual ostentar uma tradição ímpar em proteção de dados. Ou você confiaria seus dados para um governo que coleciona fracassos — quando não, más intenções — na segurança de dados dos brasileiros?

Um sistema de saúde fornecido pela Apple — caro, mas com dados seguros — seria melhor do que um sistema de saúde fornecido pelo Google — gratuito, mas com vazamento de dados? Possivelmente. Mas devemos realmente escolher entre os dois? Ou nossa imaginação institucional pode mapear outras alternativas?

TecnoBlog: DataSUS é invadido (de novo) e hacker reclama: “continua uma b****”

“O único jeito de avançar ciente dos riscos é fazer uma discussão que inclua quem pode apontar os maiores riscos e problemas, que é quem está avaliando a política pública, e não [quem está] fazendo. São pessoas da sociedade civil, da academia e até o setor privado”.

4) Tecnoautoritarismo

Talvez, por todo esse histórico dê pra entender porque o MIT Technology Review apontou que o Brasil está deslizando para o tecnoautoritarismo.

“Práticas tecnoautoritárias ajudam a corroer por dentro os pilares de sustentação da democracia, criando estruturas aptas a aumentar a vigilância, repressão e supressão de exercícios de direitos”.

[Quanto ao Cadastro Base do Cidadão] Não faz sentido ter todo esse controle de todos os cidadão [pelo Cadassem regulamentação e não estamos falando de uma distopia como 1984, é uma realidade concreta que acontece em alguns países e até com a gente aqui com o sistema Córtex

Pra confirmar esse viés todo de que o Brasil tá adotando 1984 como um manual de gestão, te aparece a notícia de que a esfera de poder continua patrimonial, a ver pelo relatório da agência de inteligência do governo para proteger o filho investigado do presidente (não, não é o mais novo, acusado pela PF de chefiar uma rede de fake news. Não, também não é aquele que foi apontado como um dos líderes do Gabinete do Ódio. É o mais velho, o outro lá, das laranjas em Atibaia).

Curioso como a política do governo com dados, tanto da centralização e falta de transparência no CBC, até a execução de uma máquina de propaganda digital (aka. Abin Paralela aka. Gabinete do Ódio), ignora flagrantemente esses 3 princípios. Basta ver, também, o que disse o presidente quando da reunião do dia 22 de abril de 2020:

"O presidente Jair Bolsonaro diz que vai intervir nos ministérios e que não pode ser surpreendido por notícias divulgadas pela imprensa porque não recebe informações da PF, Inteligência das Forças Armadas e Abin

Bolsonaro afirma ‘Eu não vou esperar foder a minha família toda’ para trocar segurança, chefia da segurança ou ministro

Bolsonaro diz ainda que tem ‘sistema particular’ de informações que funciona e que o sistema oficial desinforma"

Você não tem o dever de proteção estatal enquanto dimensão objetiva se você banir a verdade objetiva

“O direito fundamental à proteção de dados enseja tanto um direito subjetivo de defesa do indivíduo (dimensão subjetiva), como um dever de proteção estatal (dimensão objetiva)

Ignoramos aqui, também, a decisão do STJ sobre a exposição de dados de servidores sem quebra de sigilo “no intercâmbio de dados no âmbito da Administração Pública” (LAUT, 2020, p. 15); vamo esquecer também a desculpa da pandemia para a flexibilização do compartilhamento de informações sigilosas entre órgãos sem autorização do cidadão; o vazamento de dados do DataSUS (de novo); a expansão da vigilância no trânsito além da ampliação do sistema Córtex , com o intercâmbio e levantamento de dados da CNH de 76 milhões de brasileiros.

É PEEENALTI MARCADO

“Criminterrupção significa a capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Socing, e de sentir-se entendiado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo herético” (ORWELL, 2009, p. 249).

Agora sim! Vamos esquecer esse passado e olhar pra frente! Podemos dizer que esse governo segue um rumo diferente! Ele defende não apenas a liberdade de seus filhos, mas também a do cidadão! A Abin está a serviço dos cidadãos brasileiros!

… né?

Depende do que entendemos como brasileiro, e cidadão…

Sergio Moro que o diga. Segundo ele — Alexandre Ramagem, delegado e diretor da Abin em 2019 — foi um dos motivos pelo qual ele teria pulado fora do Ministério da Justiça. O ‘ex-ministro anti crime’ saiu da pasta acusando Bolsonaro de aparelhamento dos órgãos policiais e de espionagem a seu favor.

“Segundo Moro, Bolsonaro queria trocar o diretor-geral da PF por Ramagem para ter acesso a informações e relatórios de inteligência confidenciais. Após a acusação de Moro e a ordem do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro desistiu da nomeação”.

Mas esquece isso! Moro é traidor! Comunista!

Você acha que esse Judas freou o aparelhamento da Abin? Segura aí, os cara ganham crachá em conferência de clima pra vigiar ONGs também, vai tirando. Esse é o meme do país do governo por decreto que foi eleito criticando a Venezuela, e agora tá parecendo ela:

“O decreto 10.445, [de 30 de junho de 2020] remanejou cargos comissionados da Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia para a Abin e vice-versa. A Secretaria de Governo Digital (SGD) é justamente a responsável dentro do Ministério pelo Cadastro Base do Cidadão. É curioso, portanto, que Bolsonaro não apenas tenha aumentado a quantidade de cargos para funcionários não concursados na Abin, mas também que haja troca especificamente com a SDG, que atua sobre o compartilhamento de dados entre a administração pública, posto que há crescente interesse da Abin em obter dados de outros entes públicos. O decreto também criou o Centro de Inteligência Nacional, nova unidade do órgão responsável por planejar e executar atividades destinadas ‘ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade’, ‘à produção integrada de conhecimentos de inteligência entre unidades da Abin e destas com parceiros’, e à ‘produção de inteligência corrente e a coleta estruturada de dados’”.

“Já que governar causas é difícil e caro, é mais seguro e útil tentar governar os efeitos” (MOROZOV, 2019, p. 89–92)

Mas tudo isso é pra ter mais segurança no país não é?

É aquela né, temos que abrir mão de algumas coisas pra ganhar segurança em tempos de guerra. É um jogo de 8 ou 80.

Depende do que é segurança pra você… (principalmente qual for sua ideologia também)

É quando sua timeline te mostra notícias de histórico de monitoramento do governo sob políticos e jornalistas, sem justificar qualquer tipo de finalidade ou motivo para tal. (Talvez queriam só saber quem tinha mais like né?). Esse histórico vai desde o primeiro ano de governo, ainda quando do temor dos protestos “para monitorar possíveis protestos no Brasil, semelhantes aos que ocorriam no Chile. O presidente disse ainda que, se preciso, poderia acionar as Forças Armadas”. Na ocasião, o país já debatia também a ampliação do excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, com temor de que as manifestações no Chile chegassem ao Brasil, trouxe de volta o fantasma da ditadura já mencionado pelos filhos do presidente: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática.

Defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo o que fosse preciso esquecer, depois reinstalar o esquecido na memória no momento em que ele se mostrasse necessário, depois esquecer tudo de novo sem o menor problema: e, acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si” (ORWELL, 2009, p. 48)

Os monitoramentos com vieses autoritários também foram compilados em dados pelo governo e fichados em dossiês, incluindo jornalistas, professores, alunos e policiais — quando da ação sigilosa sobre 579 pessoas identificadas como antifascistas, aberta pelo Ministério da Justiça: “um dossiê com fotografias e endereços de redes sociais e teria se baseado em manifesto antifascista assinado por servidores da área de segurança pública. A Polícia Federal, a Abin e centros de inteligência do Ministério da Justiça estão entre órgãos que teriam recebido o dossiê.

“Em primeiro lugar, é preciso construir uma arquitetura técnica para executar a censura. É preciso construir uma máquina de censura de abrangência nacional para que o sistema seja eficaz. E, em segundo lugar, é preciso ter um comitê e uma burocracia para a censura. E esse comitê precisa ser secreto, porque seria completamente inútil se não o fosse — logo, é preciso ter uma justiça secreta” (ASSANGE et al., 2013, p. 130)

O ataque e monitoramento da imprensa é algo recorrente, desde o uso de comediantes para escárnio público até dossiês de detratores. Há também, o linchamento digital de jornalistas — em especial mulheres — para o assassinato de reputações enquanto nova forma de censura, principalmente pela estratégia de atacar o mensageiro ao invés de se concentrar no episódio denunciado. Atos do tipo foram vistos nas perseguições a Shirlei Alves por parte do judiciário da 3ª vara cível em Florianópolis.

“Na verdade não é só uma questão de impedir os bandidos, porque na prática eu acabo fazendo parte do grupo dos bandidos quando o que eu digo desagrada os poderosos” (ASSANGE et al., 2013, p. 87)

Por parte do governo, a perseguição a profissionais da mídia sequer busca disfarçar seu Q de misoginia, como visto nos casos envolvendo Bianca Santana, Constança Rezende, Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães, quando da publicação por parte das jornalistas de informações contra o interesse do executivo, respondidas sempre com conteúdo difamatório e machista, quando não, acompanhados de mentiras em CPIs. “Parte dos apoiadores de líderes populistas gosta de poder se libertar do politicamente correto e se deleita com essa ‘licença’ para dar vazão a um machismo incrustado” (MELLO, 2020, p. 92–101).

Mas tudo bem, “que ousadia daqueles antifascistas né? Onde já se viu lutar contra pensamento autoritário? Falando nisso… você já perseguiu o seu jornalista malvado favorito hoje?”.

“tu é fascista?”, pergunta o ricky cansado de cair em simulações fascistas

Na eleição de 2018 rolou um negócio assim, quando fiscais do TRE colaram com policiais armados para tirar uma bandeira ‘antifascista’ da fachada de uma faculdade de direito no Rio sem mandato expedido. Talvez aqui a linha seja a mesma — ser antifascista é fazer propaganda política, como se do outro lado não houvesse o fascismo, só uma neutralidade, ‘o novo normal’, a modinha do cidadão de bem. Quem discordar? Tá ofendendo meu direito de liberdade de expressão — porque “o pensamento-crime não acarreta morte: o pensamento-crime é a morte” (ORWELL, 2009, p. 40).

Também, pode acabar tomando um processo do próprio governo — principalmente se for professor universitário. O motivo? Manifestação política é imoralidade administrativa e deve ser punida. Você esperava algo diferente de um governo que apontou ministros na pasta da educação pedindo ora vídeos dos aluno menores cantando hino nacional (esse o Grande Irmão ficaria orgulhoso) ora espalhando fake news da balbúrdia nas universidades — as supostas ‘produtoras de drogas’?

“Podemos pensar na censura como uma pirâmide. É só a ponta dela que aparece na areia, e isso é proposital. A ponta é pública — calúnias, assassinato de jornalistas, câmeras sendo apreendidas pelos militares e assim por diante — , é uma censura publicamente declarada. Mas esse é o menor componente. Abaixo da ponta, na camada seguinte, estão todas as pessoas que não querem estar na ponta, que se envolvem na autocensura para não acabar lá. Na camada subsequente estão todas as formas de aliciamento econômico ou clientelista que são direcionadas às pessoas para que elas escrevam sobre isso ou aquilo” (ASSANGE et al., 2013, p. 128)

“O problema é educacional. Trata-se de moldar incessantemente a consciência tanto do grupo dirigente como do grupo executivo situado logo abaixo dele. Quanto à consciência das massas, só é necessário influenciá-los de modo negativo […] Não importa quem exerça o poder, contanto que a estrutura hierárquica permaneça imutável […] A desigualdade era o preço da civilização” (ORWELL, 2009, p. 240–7)

Tem até outro documento do tipo vinculado ao Ministério da Economia, com os influencers chamados detratores “com classificação individualizada a partir de opiniões políticas” (ou devo dizer, criminosos do pensamento?).

“A catalogação de cidadãos com base em suas preferências políticas constrange os cidadãos e viola o direito à liberdade de expressão. ‘Não é permitido a nenhum órgão bisbilhotar, fichar ou estabelecer classificação de qualquer cidadão e enviá-los para outros órgãos’, afirmou o ministro Alexandre de Moraes”.

A ideia dessas iniciativas todas — além de seu claro viés persecutório e contra a liberdade de expressão — afronta o princípio de cidadania da LGPD, “o uso dos dados gera uma situação policialesca que inibe esse exercício — e ainda o faz com uso de recursos públicos”. Mas no governo do duplipensamento infralegal, só vale defender a ‘liberdade de expressão’ de apólogos ao AI-5, né não?

“Então vem a camada em que está o preconceito dos leitores, que têm um nível de instrução limitado e que, por um lado, são fáceis de manipular com informações falsas e, por outro, não têm condições de entender verdades sofisticadas” (ASSANGE et al., 2013, p. 128)

“Houvera um tempo em que se considerava sinal de loucura acreditar que a Terra girava em torno do Sol. Hoje, o sinal de loucura era acreditar que o passado era inalterável” (ORWELL, 2009, p. 100).

31.mai.2020 — Apoiador do presidente Jair Bolsonaro exibe faixa em que diz que notícia falsa não seria crime em manifestação em Brasília

Tá, vamo reformular…

O aparelhamento está a serviço do que o governo considera brasileiro, não é? É contra os criminosos do pensamento, só, não é?

Nunca contra o cidadão de bem!

“Em abril de 2020, quando o governador de São Paulo lançou um projeto usando dados de telefone para rastrear o quão bem as pessoas estavam aderindo às medidas de isolamento, Eduardo, filho de Bolsonaro, chamou isso de ‘invasão de direitos’, e o presidente rapidamente pôs fim a um plano semelhante do Ministério da Ciência. No entanto, ele aparentemente não teve tais escrúpulos uma semana depois, quando assinou um decreto determinando que as telecomunicações entregassem dados de 226 milhões de brasileiros ao IBGE, a agência de estatística do governo, aparentemente para pesquisar domicílios durante a pandemia. Os críticos disseram que a captura de dados era inconstitucional e desproporcional, e acabou sendo derrubada pela Suprema Corte”.

“O Partido diz que a Terra é plana” (ORWELL, 2009, p. 325)

tweets que envelheceram mal

Normal, inteligência boa é aquela que favorece a minha ideologia, independente dela estar contra minha própria liberdade (seria liberdade, aqui, escravidão?).

"A vigilância do Big Brother não se restringe aos grandes continentes de exércitos e governantes ou aos fluxos observáveis ​​de corpos e multidões. O Big Brother é uma consciência abrangente que infecta e possui cada alma individual, deslocando todos os apegos uma vez formados no amor romântico e boa comunhão. A essência de sua operação não é simplesmente que ele conhece cada pensamento e sentimento, mas sim a tenacidade implacável com a qual visa aniquilar e substituir a experiência interior inaceitável.” (ZUBOFF, 2019, 709)

óia a Sarah ai de novo

É assim que muitos cientistas acabam vigiados por militares, também, que alguns ‘militantes’ são presos em partida de futebol pela Polícia das Ideias. O crime? Se manifestar politicamente (ou devo dizer crimepensamento?). Foi assim quando hackearam movimentos de oposição durante a eleição também.

Mas vamo falar que ‘era pra proteger o cidadão’ ou que tudo é orgânico e neutro (talvez, porque ignorância é força?). No fim, a Abin paralela é ilusão, um devaneio de amadores, né, general do Pay-Per-View?

“Nunca deixe de berrar com a multidão. Só assim você está em segurança” (ORWELL, 2009, p. 148)

À esquerda, militar filma a palestra do cientista Sidarta Ribeiro, neurocientista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e integrante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que fez fala contundente contra cortes do governo federal.

Imagina se é um governo de esquerda fazendo tudo isso?

Além dos constantes atentados à privacidade dos brasileiros e o uso aparelhado de órgãos de inteligência, parece, cada vez mais, que 1984 não serviu de aviso para o governo, e sim um manual de gestão. É um guia perfeito para combinar o tecnoautoritarismo com uma linguagem de violência explícita.

“São muitos os signos de 1984 que são visíveis do Brasil de hoje: a polarização como mecanismo de poder pelo poder; o horror à inteligência; os ministérios da educação que deseduca, ou da verdade encarregados da propagação da mentira, sempre com a retórica da violência; o espírito da perseguição e a estupidez como valor; a volúpia da ignorância e a guerra permanente. A ficção de Orwell permanece poderosa”

“Se você conseguir sentir que vale a pena continuar humano, mesmo que isso não tenha a menor utilidade, você os venceu. Winstou pensou na teletela, com seu ouvido que nunca dorme. Podiam espionar sua vida noite e dia, mas se você não perdesse a cabeça conseguiria ser mais esperto do que eles” (ORWELL, 2009, p. 199)

Deixa isso pra lá, já foi! Circulando, circulando, foi assim também na invasão da PM em evento político privado sem mandato judicial, ou com o general do exército intimidando o STF pelo Twitter (com direito a vácuo de 3 anos #chateado).

“Os defensores dos dividendos da vigilância [quanto mais coleta e processamento de dados, melhor] apresentam seus benefícios como evidentes e apolíticos. […] Na realidade eles só veem o que lhes interessa e só sabem o que querem saber. O que em geral não sabem e não querem ver é sua própria política” (MOROZOV, 2019, p. 33–119)

Ninguém viu nada, quem viu mentiu…

“Tudo se esmaecia na névoa. O passado fora anulado, o ato de anulação fora esquecido, a mentira se tornara verdade” (ORWELL, 2009, p. 94)

5) Vigiar, Manipular, Odiar e Punir

Vamo fazer um pause (mais um), e levantar uns livro. A pergunta fundamental é: existe estrago quando dependemos dele pra ter equilíbrio mental? Até mesmo no romance de Orwell, o que inspirou o Big Brother, vemos alguns bajuladores do Grande Irmão abrindo mão de sua consciência pelo conforto mental, como fez Syme, o fã de “incursões de helicóptero contra povoados inimigos, julgamento e confissões de criminosos do pensamento” (ORWELL, 2009, p. 65–6).

“George Orwell certa vez observou que eufemismos são usados na política, na guerra e nos negócios como instrumentos que 'fazem as mentiras parecerem verdadeiras e o assassinato respeitável'” (ZUBOFF, 2019, p. 176).

Para evangélico, tiros da Polícia Civil em tenda de oração em Angra dos Reis não deixarem feridos foi ‘livramento’. Lona foi perfurada por balas disparadas de helicóptero, com o governador Wilson Witzel abordo, gravando live. Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

No fim do romance, mesmo Syme sendo um grande seguidor do Grande Irmão, ele é preso e se torna uma não-pessoa. E mesmo cancelado, ele não deixa de lado a sua ideologia. Ele admite que era um criminoso do pensamento apenas porque o Big Brother não tem como errar quando acusa alguém.

“Ele não está fingindo, pensou Winston, não é um hipócrita; acredita em cada palavra do que diz […] Se ele atingir a submissão total e completa, se conseguir abandonar sua própria identidade, se conseguir fundir-se com o Partido a ponto de ser o Partido, então será todo-poderoso e imortal. […] Poder é poder sobre os seres humanos. Sobre os corpos — mas, acima de tudo, sobre as mentes” (ORWELL, 2009, p. 299–308).

Aqui, rola da distopia residir no excesso de conforto — sem precisar (necessariamente) de desinformação, perseguição à oposição e à imprensa com violência explícita. Isso, porque suas táticas se fundem com a vigilância e a identidade de propaganda totalitária. A identidade do cidadão é literalmente a do Líder e sua verdade móvel. O domínio autoritário é exercido pelo fervor ideológico totalitário, onde a ilusão que dá certo é a que aliena a própria subjetividade explorando-a. Surgem cidadãos dependentes da existência da infalibilidade retroalimentada que o Big Brother proporciona. Pior, pode surgir o efeito ‘Admirável Mundo Novo’, de Aldous Huxleyonde ocorre pelo excesso de prazer, num “‘solipsismo voyerístico’, envolvido em si e observando a si” visto nas bolhas das redes sociais (KARNAL, 2018, p. 23).

“O pressuposto que subjaz no livro é que os humanos são algoritmos bioquímicos, que a ciência é capaz de hackear o algoritmo humano e que a tecnologia pode ser usada para manipulá-lo. Nesse admirável mundo novo, o Governo Mundial utiliza biotecnologia avançada e engenharia social para garantir que todos estejam sempre contentes e que ninguém tenha nenhum motivo para se rebelar. É como se Alegria, Tristeza e outros personagens no cérebro de Riley [de Divertidamente] tivessem se tornado agentes leais do governo. Não há portanto, necessidade de uma polícia secreta, ou de campos de concentração, ou de um ministério do amora à la 1984, de Orwell. Na verdade, o genial em Huxley consiste em demonstrar que é possível controlar pessoas com muito mais segurança mediante amor e prazer do que por medo e violência” (HARARI, 2018, p. 312)

E se eu te disser que isso pode ocorrer com o uso de Big Data? Basta ver as coletas de informações sigilosas e disparos a eleitores durante campanhas (do PT, passando pelo MDB e indo até o PSL) — com números de telefones vazados e chips clonados

PEDRO CADE MEU CHIP?!

“O Intercept fez matérias sobre o uso de dados de brasileiros, sem autorização, e microdirecionamento de mensagens para eleitores. Com a venda de cadastro que reuniam nomes, CPFs, idade, localização geográfica, faixa de renda e outras informações, era possível identificar temas relevantes para cada grupo e enviar mensagens que tivessem maior impacto entre essas pessoas” (MELLO, 2020, p. 31)

Aqui, em um contexto onde algoritmos e dados indentificam melhor as pessoas do que elas mesmas, a manipulação pode ocorrer pelo Big Brother do Bem, um conceito de psicopolítica:

Mais cinco minutos, juro

Somente em sua forma negativa, o poder se manifesta como negação da violência que quebra a vontade e nega a liberdade. Hoje o poder assume cada vez mais uma forma permissiva. Na sua permissividade, até na sua bondade, ela depõe a sua negatividade e se oferece como liberdade […] Em vez de tornar os homens submissos, [a psicopolítica] tenta torná-los dependentes. O poder inteligente e bondoso não opera de frente contra a vontade dos sujeitos em questão, mas direciona essa vontade a seu favor. É mais afirmativo do que negação, mais sedutor do que repressivo. Ele se esforça para gerar emoções positivas e explorá-las” (HAN, 2014, p. 28–59).

Essas emoções positivas a serem exploradas se transcrevem na nostalgia do passado, também conhecida entre os cientistas cognitivos como ‘retrospectiva idílica’ — é o efeito do ‘antigamente era que é bom’ — onde a nostalgia recriada do passado, de forma ufanista, se torna um componente de identidade e estabilidade para momentos de crise e luto — chamado de tradicionalismo, “a completa rejeição política, ideológica e espiritual do status quo”.

Onde Deus fala a apenas um pequeno número de pessoas; onde o idealismo está morto; onde a guerra civil e a violência estão se aproximando; onde políticos eleitos democraticamente não são melhores do que ditadores estrangeiros e assassinos em massa; onde a “elite” está chafurdando em decadência, desordem, morte.[…] é um lugar onde as universidades ensinam as pessoas a odiar seu país, onde as vítimas são mais celebradas do que os heróis, onde os valores mais antigos foram descartados. Qualquer preço deve ser pago, qualquer crime deve ser perdoado, qualquer ultraje deve ser ignorado se isso é o que é necessário para obter a verdadeira América, a velha América, de volta” (APPLEBAUM, 2020, p. 141–2).

Tal retrospectiva não escolhe ideologias, ela tem sua expressão pura no radicalismo extremista, que não se resume somente a arcebispos militares negando campanhas da fraternidade por inclusão e diálogo, ou de presidentes atacando papas progressistas. Ela foi vista, por exemplo, também na Rússia de Vladimir Putin, onde muitos jovens que sequer nasceram em períodos soviéticos idealizam o passado comunista no país.

“Desinformação significa uma informação falsa ou enganosa que é disseminada deliberadamente para enganar. Curiosamente, a origem da palavra é russa, ‘dezinformatsiya’, derivando de um título de um departamento de propaganda da KGB (órgão responsável pela segurança de Estado da extinta União Soviética). O termo foi cunhado, inclusive, por Josef Stálin”

KYLE — iSpy feat. Lil Yachty

Há um paralelo, aqui, com a rede de propaganda dita jornalística de Vladimir Putin, a Channel 4, responsável por padronizar um modelo de desinformação que seria exportado ao mundo todo: o firehose of falsehood:

Uma rede de superexposição de fake news de forma a confundir tanto a população local via mídias sociais, como ocorria no jornalismo russo ‘de propaganda’, amplamente utilizada em 2013 na ocupação russa na Crimeia, na Ucrânia. Esse mecanismo se especializou nas fazenda de trolls, capaz de tornar pela repetição, uma mentira em verdade.

“Um mundo de vitória após vitória, triunfo após triunfo […] Todos os dias, todos os momentos, eles serão derrotados, desacreditados, ridicularizados. Cuspirão neles — e mesmo assim eles sempre sobreviverão” (ORWELL, 2009, p. 313)

O primeiro-ministro francês, Emannuel Macron, acusou essa propaganda russa em posse de oligarcas russos de se aliar a componentes da extrema-direita na Europa na elaboração de campanhas de microdirecionamento de mensagens utilizando coleta de dados para desestabilizar regimes democráticos na União Europeia.

Macron citou o projeto The Movement’, liderado por Steve Bannon, ex-chefe de campanha de Donald Trump e um dos pivôs do escândalo Facebook-Cambridge Analytica, também responsável por tornar Eduardo Bolsonaro o representante do movimento conservador na América Latina.

“Para essa fabricação de uma realidade mentirosa, ninguém estava preparado. A característica essencial da propaganda fascista não esteve jamais em suas mentiras, pois essa prática é mais ou menos comum na propaganda de todo lugar em todos os momentos. A parte essencial foi que eles exploraram o preconceito ocidental que permite confundir a realidade com a verdade” (SCHWARTZ, 2019, p. 230)

Podemos negar, podemos falar que a tecnologia é neutra e caiu do céu como um meteoro aleatório, que não está nas mãos de um governo mergulhado em ideologia — e que se recusa a admitir suas crenças, porque são muito 'neutras', enquanto toda crítica é ideológica.

Mas isso não faz a realidade deixar de existir. Essas intervenções acompanham noções de poder, e precisamos dar visibilidade em questões de desigualdades, principalmente quando amplificadas por vieses tecnológicos que sustentam a estrutura neoliberal tecnoautoritária.

“O tecnoautoritarismo brasileiro tem na economia a sua pedra fundamental, passando ainda pelo esvaziamento da política. Se orienta pela ideia neoliberal de que nada se pode fazer além de se submeter à vontade dos mercados internacionais e abdicar cada vez mais de intervenções e planejamentos praticados por governos, para que — como que por encanto — as forças do mercado façam emergir o crescimento e uma justiça social com sabor de necropolítica”.

“Outros valores estão impregnados na produção tecnocientífica: as desigualdades sociais, as discriminações baseadas em gênero, raça e etnia, geração, orientação sexual, e capacidades físicas e mentais acabam por não apenas limitar o acesso a essa produção a um grupo bastante limitado e específico de pessoas como também definem por quem, para quem e com que finalidade a ciência e a tecnologia são produzidas e consumidas. A consciência da presença desses valores e dos abismos que eles geram tem levado ao questionamento da ideia de que a tecnociência é neutra e que seu desenvolvimento sempre conduz ao progresso

Dessa mesma corrente ideológica ortodoxa, que ignora discriminações enquanto se diz neutra, há a banalização e naturalização das formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte, onde “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’”, numa política de massacre e da burocracia, reconfigurando o poder do terror para controlar e definir as vidas de “quem importa e quem não importa. quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2011, p. 41–71).

Pai de um jovem que morreu de Covid-19 recoloca cruz na areia retirada por homem contrário ao protesto organizado pela ONG Rio de Paz — Foto: Reprodução

“Espera-se que mesmo o militante mais humilde seja um fanático crédulo e ignorante e que nele predominem sentimentos como o medo, o ódio, a adulação e um triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que ele tenha a mentalidade adequada a um estado de guerra. Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo […] A única coisa que é necessária é que exista um estado de guerra. […] Há dois problemas que o Partido se ocupa em resolver. Um é como descobrir o que um ser humano está pensando, à revelia dele; outro é como matar várias centenas de milhões de pessoas sem aviso prévio. Na medida que a pesquisa científica continua existindo, esse é seu principal tema […] Nos vastos laboratórios do Ministério da Paz e nas estações experimentais ocultas nas florestas do Brasil, ou no deserto australiano, ou em ilhas perdidas da Antártica, equipes de especialistas trabalham, incansáveis. Alguns se preocupam unicamente com o planejamento da logística de guerras futuras” (ORWELL, 2009, p. 229–30)

ONU: Eduardo Bolsonaro posa fazendo arminha diante de escultura contra violência

São também, os discursos contra a verdade dos fatos da pandemia que direcionam ataques com conteúdo fraudulento quando da ocupação de poder de maiorias sub-representadas, sustentados em bravatas utópicas de militarização contra a consciência negra, sem contar as ligações com níveis mais profundos da internet ou em sua expressão superficial desregulada, principalmente se ela for ocupada como um ambiente para alguns e não para todos.

Com a banalização dessa violência, normaliza-se um dos países mais agressivos no ambiente digital, incentivando ataques e atentados por meio de uma cultura patriarcal adolescente cooptada entre incels e trolls a favor da hegemonia de uma identidade branca e patriarcal, que acaba por amplificar perseguições a mulheres negras em posições de poder.

Não por menos, essa política dita neutra surfa na desinformação e é apoiada por vezes às esferas de poder como desembargadoras, líderes de bancadas no Congresso e redes conspiratórias tendo na desconexão da realidade advinda da invizibilização de causas sociais e ocupações de poder em nome do discurso anti-comunista— usando uma justificativa florianista de República da Espada para o vilipendio da identidade de luta de representantes do povo covardemente assassinadas. Não são 2 minutos de medo do escuro, é gente grande 3 anos depois, com o ódio que ainda é dado de graça e como uma parte desse Gabinete

"No final de fevereiro deste ano um homem foi agredido por apoiadores do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) por estar carregando uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL) em frente à sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro, onde o parlamentar apoiador de Jair Bolsonaro (sem partido) estava preso após ameaçar ministros do Superior Tribunal Federal (STF). O homem agredido, que tinha a perna imobilizada e estava de muletas, foi enforcado com um “mata-leão” e insultado por apoiadores do deputado federal, que teve sua prisão domiciliar decretada neste domingo (14/3). Em janeiro, em um curto período de apenas uma semana, três parlamentares do PSOL representantes do movimento negro e LGBTQI+ sofreram ataques, ameaças e até atentados com disparos de arma de fogo".

“Pac disse que Thug Life, “vida bandida”, queria dizer The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody, ou “o ódio que você passa pras criancinhas fode com todo mundo” […] “Esse é o problema. Nós deixamos as pessoas dizerem coisas, e elas dizem tanto que se torna uma coisa natural para elas e normal para nós. Qual é o sentido de ter voz se você vai ficar em silêncio nos momentos que não deveria?”

Os ‘heróis da trollagem’, como bons Big Brothers, se tornam mitos infalíveis, bandidos idealizados pelo politicamente incorreto que, embriagados de poder de vigilância e punição, acreditam serem capazes de tudo na terra de ninguém e desregulação, até atacar com fake news sobre a covid-19, fazer apologia ao AI-5, hostilizar o uso de máscaras com prerrogativa de ser ‘deputado-policial’ e até ameaçar outras esferas de poder, como o Judiciário, a imprensa e os direitos fundamentais de todo um povo.

Nessa perspectiva, como explica a pedagoga bell hooks, precisamos acordar para uma realidade multicultural para mudar circunstâncias de injustiça, começando pela autocrítica:

“No livro ‘Where Do We Go From Here? Chaos or Community’, Martin Luther King, com intuição profética, disse aos cidadãos que não conseguiríamos avançar se não sofrêssemos uma verdadeira ‘revolução dos valores’. Garantiu-nos que ‘a estabilidade do mundo, desta grande casa onde habitamos, terá de envolver uma revolução de valores que acompanhe as revoluções científicas e libertárias que engolem a Terra. Temos de deixar de ser uma sociedade orientada para as coisas e passar rapidamente a ser uma sociedade orientada para pessoas. Quando as máquinas e os computadores, a ambição de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes que as pessoas, torna-se impossível vencer os gigantes trigêmeos do racismo, do materialismo e do militarismo. É tão fácil a civilização naufragar diante da falência moral e espiritual quanto diante da falência financeira’” (hooks, 2017, p. 42)

Como dizia o ET Bilu, a saída está no conhecimento, pois é só tendo condições de interpretar a realidade como ela é que conseguiremos transformá-la.

“Quando falamos de contornar a censura ou combater as narrativas políticas para criar um sistema democrático e uma sociedade melhor, estamos falando de compartilhar conhecimento” (ASSANGE et al., 2013, p. 95)

E esse “conhecimento deve ir além das demarcações fixadas por linhas imaginárias do horizonte e, finalmente, valer-se de raça, classe, território e gênero, mas eslanguescendo-se. Acompanho Kimberlé Crenshaw, pois uma vez protegidos do racismo, podemos nos proteger de toda e qualquer violência e lutar por mais tempo contra as necropolíticas” (AKOTIRENE, 2019, p. 113).

6) Os perigos do Exódia da Censura e do Cancelamento

No jogo de cartas Yu-Gi-Oh!, o personagem Exódia é um dos mais fortes. Sua limitação apenas reside em ele estar fragmentado. Mas quando é possível juntar suas partes, ele é invencível.

Imagina se juntarmos todas as cartinhas até aqui: temos a centralização à Big Brother pós-pan-óptico de dados pela lógica de poder por poder camuflada em desculpas de melhoria de gestão; uma lei de proteção de informações que apesar de ter salvaguardas importantes, possui benesses ao mercado em nome do crédito, tendo ainda sua letra ignorada sumariamente por canetadas infralegais que não dão garantias e proteção à privacidade dos cidadãos; o aumento da militarização e do aparato de vigilância não transparente na coleta e processamento dos movimentos cidadãos nas mãos do executivo; o uso do aparelho de segurança e inteligência na perseguição de opositores, mídia e judiciário; uma Máquina de Ódio que vai desde uso para fake news, disparos de WhatsApp, mapeamento e vigilância psicopolítica e endossamento da necropolítica;

“Numa sociedade marcada por profundas desigualdades, refletida nos dados coletados sobre seus componentes, o manejo da informação e seu emprego para tomada de decisões deve estar sobre intenso escrutínio, crítica e controle”.

toma aí teus dado

Tudo isso em posse de um presidente abertamente discriminador com ideologias e fenótipos divergentes da cultura conservadora hetero-cis-branca e cristã ‘de bem’ para nunca perder o seu vaidoso holofote — que ainda persegue detratores e antifascistas, faz apologia a tortura e morte de opositores em campanha, exibe falas flagrantemente racistas e xenófobas, tem também a misoginia, a masculinidade tóxica, a falta de responsabilidade e sensibilidade na forma de tratar política pública — por vezes, confundindo aparelhamento da inteligência e da justiça entre seus meandros militarizados, mandonistas e patrimonialistas do baixo clero para livrar filhos de esquemas de corrupção — , sem falar no discurso miliciano de violência e de revisão da história.

Tudo, tudo isso em posse de um supersistema de interoperabilidade centralizado em nome da segurança e eficiência de gestão — autodeterminada pelo próprio operador — , igualmente vulnerável a ciberataques, mas que reconhece cada ‘fato da sua vida’ e sabe até a forma como você anda. Será que há um perigo do Exódia da Censura, aqui?

Quem será que mais sai vulnerável nesse sistema? Quais extratos da população, hoje já mais expostos a esse sistema estrutural de discriminação— como mulheres negras e pobres, populações indígenas e quilombolas — , correm risco de sofrer uma perseguição ainda mais desmedida nas mãos desse Frankstein de vigilância orwelliano?

ah, mas eu vo

Porque, imagina, só, esse aumento de vigilância sem qualquer regulação (uma vez que a LGPD não definiu parâmetros para segurança pública), com a desculpa da segurança, usando o super-processamento de algoritmos 'neutros', no país com mais da metade da população negra e indígena, mas com um governo de política institucional racista e contra povos originários, eleito por fake news de democracia racial e anti-negritude? (SILVA; LARKINS, 2019) (ABRANCHES et al., 2019, p. 98-112), ainda, sem um protocolo e presença antirracista na prática de policiamento (quando não, execrada em palestra pública online hackeada)?

“Um anteprojeto de lei foi elaborado por uma comissão de juristas, mas deixou de fora temas importantes, como mecanismos de avaliação de impacto e monitoramento do uso dessas tecnologias, e outros dispositivos que seriam importantes para a garantia de que o direito à privacidade dos cidadãos não seja violado

Será que não teríamos aqui não apenas um pan-óptico, mas um ban-óptico, capaz de ‘cancelar’ populações vulneráveis politicamente e indesejáveis fenopticamente?

Nesse sentido, além das críticas sobre centralização urge a necessidade de observar as aplicações sobre o poder em asfixias do processo de democratização que alienam espaços públicos, e que, durante crises,

"ampliam várias desigualdades, principalmente as determinadas pelas retiradas de direitos e as que são produto da discriminação e da criminalização de jovens pobres e das mulheres, sobretudo as negras e pobres […] protagonizado pelo endurecimento do lastro estadocêntrico e da presença central de um homem branco, autoritário e conservador […] [sem ações em contrapartida, que só amplificam] a hegemonia dominante do medo, do não envolvimento com decisões políticas — que faz ampliar o ambiente autoritário e rebaixa o nível de participação" (BUENO; BURIGO; PINHEIRO-MACHADO; SOLANO, 2017, p. 89–93)

É por essa assimetria flagrante, sopesando sobre populações escasseadas historicamente do poder executivo, que entra a crítica necessária ao uso desregulado do policiamento preditivo e do acesso desigual à “saúde inteligente” contra a população negra e indígena estar urgentemente acompanhada de uma ocupação antirracista nos cargos executivos responsáveis por tratar esses dados, porque

O problema não é um algoritmo ou outro tomado de forma isolada, mas “como sociedades racistas constroem consequentemente tecnologias com potenciais ou aplicações discriminatórias”.

“É muito importante pensar no porque e pra que desses dados numa maneira geral. A gente tá pensando em uma política que vai viabilizar o provimento de serviços ou uma política que viabiliza o acesso a dados de maneira discricionária e sem limites?”

“Os fatos básicos do capitalismo de vigilância necessariamente despertam minha indignação porque rebaixam a dignidade humana. O futuro desta narrativa dependerá dos indignados cidadãos, jornalistas e acadêmicos atraídos para este projeto de fronteira; funcionários eleitos indignados e formuladores de políticas que entendem que sua autoridade se origina dos valores fundamentais das comunidades democráticas; e, especialmente, jovens indignados que agem sabendo que a eficácia sem autonomia não é eficaz, a obediência induzida pela dependência não é um contrato social, uma colmeia sem saída nunca pode ser um lar, a experiência sem santuário é apenas uma sombra, uma vida que requer esconder não é vida, tocar sem sentir não revela nenhuma verdade, e estar livre da incerteza não é liberdade” (ZUBOFF, 2019, p. 994).

7) Acordando

quando o Miranha cai na real

Vivemos a era do governismo irrefutável dos algoritmos e dados, onde uma linha de programação define, literalmente, todo o seu destino de forma automatizada — uma tutela que ignora estar a serviço de um político, uma empresa, ou simplesmente desregulada amplificando vieses discriminatórios.

A ideologia dos que controlam o fluxo de dados e/ou o seu processamento não existe. Ela é tão neutra que apenas quem questiona esse uso aparelhado deve ser execrado: os críticos são os anti-tecnologia, contra a ordem, contra o progresso!

Por falta de informação ou por falta de querer absorvê-la, preferimos deixar a segurança de nossos dados no piloto automático, enquanto Big Techs, o governo e sabe-se lá quem assina um pay per view de Big Brother monstruoso com nosso CPF. Preferimos ignorar o perigo da centralização de dados e da sua vulnerabilidade de canetadas maduristas e cleptocráticas. Preferimos esquecer que o poder econômico e político está estritamente associado ao regime de proteção de dados. Esquecemos que a democracia no país foi conquistada com muita guerra, sangue suor e lágrimas. É como se não fosse infinitamente mais fácil destruí-la corroendo as instituições por dentro com o aparelhamento e a centralização, porque ela não é uma garantia eterna, principalmente quando o povo esquece sua própria história ou não liga para assuntos 'complexos', 'politizados' enquanto ostentamos um discurso neutro que em verdade só beneficia o status quo. Assim, esquecemos a tradição de espionagem do passado de ditadura, da militarização de conselhos e superministérios, e tantos outros perigos porque o melhor é entrar nos 2 minutos de ódio, direcionar essa energia pra atacar Goldstein, a esquerda, o 'bolsopetismo' e outras bizarrices argumentativas que tragam algum expurgo que possa aliviar o peso na consciência de querer 'mudar o tudo o que está aí' em nome do 'tem que manter isso daí, viu?'

Nessa brincadeira, confundimos privacidade com segurança — como se não pudesse existir um sem o outro — e esquecemos quem se beneficia desse conto de fadas todo.

Preferimos esquecer que esse processo de vigilância tem avançado de forma cada vez mais sutil e infralegal, ignoramos os novos perigos com o tecnoautoritarismo, e nos enganamos achando que somos cidadãos de bem infinitamente beneficiados por cidades, aparelhos, governos, empresas e mídias ultra-inteligentes do bem, sempre a nosso serviço — como uma espécie de Jetsons que deram certo — sem que precisemos intervir, fiscalizar ou garantir nossos direitos, basta que o meu político favorito faça um tweet com capslock ou uma live gritando meia dúzia de palavrões que tá tudo certo — a política do conto de fadas, porque ignorância é força.

“Muitas vezes dispunha-se a aceitar a mitologia oficial simplesmente porque a diferença entre verdade e mentira não lhe parecia importante […] Se era sabido que tudo aquilo não passava de besteira, porque se preocupar com o assunto? A visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção entre as pessoas incapazes de entendê-la. Essas pessoas podiam ser levadas a acreditar nas violações mais flagrantes da realidade porque nunca entendiam por inteiro a enormidade do que se solicitava delas, e não estavam suficientemente interessadas nos acontecimento públicos para perceber o que se passava.” (ORWELL, 2009, p. 184–7)

Quando temos um Estado regido unicamente pelas leis de um mercado dadocêntrico e em busca de sua manutenção incontestável e militarizada no poder, temos não apenas um problema de privacidade e transparência flagrante, temos uma cidadania resumida à tutela das necessidades do Estado — e seus fisiologismos econômicos e políticos. Aqui, as cobaias desavisadas não são profissionais de saúde que testam imunizantes contra a Covid-19, são todos do Brasil, presos no aparato lucrativo de vigilância do governo.

Tecnologias e ambientes digitais devem ser regulados pela sociedade, por meio de representantes em instituições civis, casas legislativas e órgãos governamentais. “Sociedades saudáveis e democráticas olham para a inovação e tecnologia de forma responsável, buscando o bem comum.”

“Nada a temer do lado dos proletários. Abandonados a si mesmos, continuarão trabalhando, reproduzindo-se e morrendo de geração em geração, século após século, não apenas sem o menos impulso no sentido de rebelar-se, como incapazes de perceber que o mundo poderia ser diferente do que é” (ORWELL, 2009, p. 247).

“A política democrática, tem tradicionalmente se caracterizado pela identificação das causas: o propósito da deliberação democrática não é apenas discutir o melhor curso de ação diante de um problema, mas também chegar a uma concepção desse problema capaz de reconciliá-lo com certos ideias, como o da justiça […] A política baseada na IA e no resto do pacote — sensores, Big Data, algoritmos e assim por diante — é essencialmente uma política de gerenciamento de efeitos. […] Ela aplaina a imensa complexidade das relações humanas, simplificando narrativas complexas em regras algorítmicas concisas e monocausais. Enquanto a nossa experiência fenomenológica do mundo não se conformar com modelos simplistas por trás da maioria dos sistemas de IA, não deveríamos nos surpreender ao ver mais e mais pessoas caindo nas narrativas conspiratórias e extremamente complexas das fake news […] Uma política preocupada em saber as causas antes de corrigir os efeitos pode eventualmente ser uma política de exageros emotivos, levando ao nacionalismo, ou a coisas piores” (MOROZOV, 2019, p. 142–3).

“Um mundo de traição e tormento, um mundo em que um pisoteia o outro, um mundo que se torna mais não menos cruel à medida que evolui. O progresso, no nosso mundo, será o progresso da dor […] Tudo o que você tem sofrido desde que caiu em nossas mãos — tudo isso continuará e ficará pior. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimento nunca cessarão. Será um mundo de terror, tanto quanto um mundo de triunfo. Quanto mais poderoso for o Partido, menos tolerante ele será” (ORWELL, 2009, p. 311–3)

“Meu Deus eu imploro; Se isso for o futuro então nos jogue logo um meteoro; Pra acabar com este sofrimento; Pois eu tenho um mau pressentimento; Que isso não foi um sonho, mas uma viagem pelo tempo; Quanto tempo mais até perceber?; E se alguém pudesse me ouvir; Se eles pudessem ver o que eu vi; Será que assim eles iriam entender?"

Coisas piores, seria, literalmente, apoiar o fascismo orwelliano. Aqui, os brasileiros viram um grupo de pequenos acionistas em uma empresa gigantesca, onde o cidadão não deve ter seus direitos garantidos, mas sua expressão melhor vigiada, quando não, regulada. Assim, não se sabe se as próximas Jornadas de Junho vão conseguir ocupar algum espaço público verdadeiramente inteligente — “ muito provavelmente seus ativistas acabariam censurados ou eliminados” (MOROZOV, 2019, p. 33–119).

É por isso que o autoengano é protetivo, pode durar por um tempo, mas a vida real continua batendo, e sem dó. Precisamos despertar para o perigo do tecnoautoritarismo antes que comecemos a ficar viciados na sua piscopolítica.

E ainda há tempo.

É por isso que Yuval Harari — ainda no começo desse texto — nos atentou para a necessidade de proteger nossos dados.

Se exigirmos isso, podemos ter mais consciência sobre os riscos do mal uso da tecnologia contra a cidadania e o direito de consumidor, melhor, nos posicionamos por sua melhoria além do viés do mercado e sua gestão pós-política, que lucra com esse ambiente de informações terra-de-ninguém do tecnoautoritarismo, tanto quanto o governo ganha politicamente.

“Eu acho que, permitindo que o livro seja uma paródia, algo como 1984 pode realmente vir a acontecer. É nesta direção que o mundo está indo atualmente. Não haverão quaisquer emoções, exceto o medo, a raiva, o triunfo e o auto-rebaixamento […] sempre haverá intoxicação com o poder e a sensação de pisar num inimigo indefeso […]

A moral a ser retirada desta perigosa sensação de pesadelo é simples: não deixe acontecer, depende de você”

É por isso que, conforme nos conta o criador da World Wide Web, Sir. Tim Berners-Lee, precisamos olhar para nossa responsabilidade diante dessa distopia:

Os cidadãos devem responsabilizar as empresas e os governos pelos compromissos que assumem e exigir que ambos respeitem a web como uma comunidade global com os cidadãos em seu coração. Se não elegermos políticos que defendem uma web livre e aberta, se não fizermos nossa parte para promover conversas saudáveis e construtivas online, se continuarmos a clicar em consentimento sem exigir que nossos direitos de dados sejam respeitados, fugimos de nossa responsabilidade colocar esses temas na agenda prioritária de nossos governos”.

8) A distopia que deu certo

Ratos na ópera. É assim que a cultura cypherpunk propôs a liberdade na web. Foi quando Julian Assange observou um rato invadir a Ópera de Sydney, sorrateiramente, e subindo nas mesas cobertas com refinadas toalhas de mesa, passou a comer a comida da Ópera, pulando no balcão e se divertindo à beça no meio dos ingressos. Na hora Assange pensou que aquele era o cenário mais provável para o futuro:

“Uma estrutura totalitarista transnacional pós-moderna extremamente restritiva e homogeneizada imbuída de uma incrível complexidade, incongruência e degradação e, dentro dessa incrível complexidade, um espaço onde só os ratos espertos podem chegar. Essa é uma visão positiva da trajetória negativa, sendo que a trajetória negativa é um Estado de vigilância transnacional, repleto de drones, o neofeudalismo em rede rede da elite transnacional” (ASSANGE et al., 2013, p. 155–7).

Os ratos na ópera seriam aqueles que conhecem o sistema, que são capazes de serem livres por elas mesmas com conhecimento, e aplicando ele para ser o incômodo necessário para o mundo ocupando espaços de poder e construindo narrativas novas.

“Gostaria de ver uma sociedade digital onde os cidadãos podem fazer o seu melhor, o que pressupõe que existem outras formas de fazer uso das tecnologias que sejam diferentes de ‘criar uma startup e pegar dinheiro com investidores’. Hoje, se você quiser ser um cidadão digital eficiente e bem sucedido, se você quer lidar com tecnologia de ponta, se você quer mudar o mundo e fazer dele um lugar melhor por meio da tecnologia, existe apenas uma saída: criar uma startup e conseguir investimento com fundos de capital de risco. Eu acho que isso é uma proposta muito simplista”

No Brasil, onde temos 230 milhões de smartphones circulando, 45.9 milhões de brasileiros não tem acesso à internet. "a falta de digitalização dos serviços públicos e de um sistema de identidades e assinaturas digitais acessível a todos pune os mais pobres. Fato que é exemplificado pelos 30 milhões de pessoas que tiveram dificuldade de receber o auxílio emergencial no Brasil".

Infelizmente, essa assimetria não exime os excluídos desse alcance de poder de ter seus dados coletados e vazados pela ampliação do aparato de vigilância. É por isso que precisamos articular maneiras de incluir e realizar por todos uma capacidade de emancipação coletiva que se adeque às injustiças sociais vigentes. Nas palavras da socióloga Marielle Franco, em 2017:

Com condições favoráveis para ambientes bonapartistas e crescimento em progressão máxima do autoritarismo e das várias dimensões do conservadorismo, questões fundamentais se colocam para a esquerda construir uma visão contemporânea no século XXI: a) avançar em ações contundentes imediatas, ampliando forças para bandeiras que emergem nesse momento, como as ‘diretas já’ e 'nem um direito a menos'; b) defender a vida com momentos contra a violência letal e pela ampliação da dignidade humana; c) construir proposições de políticas públicas, para enfraquecer as estratégias do capital no Brasil; d) fortalecer a narrativa pela convivência plena na cidade, com as múltiplas diferenças para conquistar no imaginário predominante o desafio fundamental de superar as desigualdades como eixo fundamental da luta; e) ampliar a centralidade dos corpos da periferia como atores centrais das ações sociais, entre os quais destacam-se as mulheres negras e mais pobres, com enfâse as faveladas em todo o território nacional” (BUENO; BURIGO; PINHEIRO-MACHADO; SOLANO, 2017, p. 95)

Para Yuval Harari, a pandemia pode ser um marco da vigilância por meio da tecnologia, algo que faria o escândalo Cambridge Analytica-Facebook ser visto como coisa da Idade da Pedra. Com a coleta de dados biométricos, aumenta-se ainda mais a capacidade de Estados e empresas privadas conseguirem conhecer os cidadãos muito melhor do que eles mesmos com uma previsibilidade alarmante.

Segundo Harari, sempre que olharmos pra capacidade exponencial de um governo de vigiar a sua população de forma tecnoautoritária, precisamos lembrar de que é possível reverter esse processo, e usar a tecnologia a favor da cidadania.

É sobre inverter a questão de um Estado controlador para um mecanismo de fiscalização dos cidadãos sobre o seu governo.

A vacina reside no reconhecimento de falsos dilemas como ‘saúde ou privacidade’, quando a bem da verdade poderiam andar de mãos dadas com um cidadão empoderado pelos seus próprios dados, sendo capaz de regular e entender o processo, mais do que ser apenas uma cobaia. É assim que, como Goldstein em 1984 nos aconselha, podemos enfatizar para regimes tecnoautoritários que sim, as massas tem poder de decisão, pois todo poder emana do povo.

“Há sistemas, por exemplo, que prevêem o registro automático de todos os acessos, eventos e atividades de interesse e permitem, como o estoniano, ao cidadão consultar quem acessou seus registos e, identificando um acesso ilegítimo ou desnecessário, denunciar a invasão de privacidade, para a devida responsabilização. Tal dispositivo habilita um certo controle da privacidade e dos dados por parte do seu titular e, no país, já levou, de fato, à responsabilização de funcionários que acessaram dados privados de cidadãos sem autorização ou justa causa”

Temos exemplos na Estônia, por exemplo. Lá, numa democracia digital, os cidadãos que autorizam o uso de dados do governo, não o contrário como tem sido feito por aqui.

“Valeu, cidadão aleatório”

“Com acesso a milhões de dados e com ferramentas capazes de cruzar milhões de informações, governos têm a chance de inovar em políticas públicas, alocar melhor os recursos e reduzir as despesas. Já tem quem faça isso. A Estônia, no Leste Europeu, apostou alto na tecnologia para reduzir a burocracia. Lá, praticamente todos os serviços públicos estão online”

Mas não se resume a apenas digitalizar tudo. A questão é como é usado, e principalmente, se a decisão está de fato na mão dos cidadãos. Na Estônia, nenhum sistema está autorizado a armazenar a mesma informação em mais de um lugar. As informações de cada pessoa — como nome, data de nascimento, gênero, endereços, cidadania ou suas relações jurídicas — estão no banco de dados da população onde cada um pode determinar quais estão disponíveis e a quem será fornecido o acesso.

“Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. E isso só acontecerá quando os movimentos crescerem, como o movimento para o direito ao esquecimento. Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo”.

Referência Bibliográfica

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.

APPLEBAUM, Anne. Twilight of democracy: the seductive lure of authoritarianism. New York: Doubleday, 2020.

ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MAGUHN, Andy; ZIMMERMANN, Jérémie; VIANA, Natalia. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. São Paulo: Boitempo, 2013.

BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. São Paulo: Zahar, 2013.

BUENO, Winnie; BURIGO, Joanna; PINHEIRO-MACHADO, Rosana; SOLANO, Esther. Tem Saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre: Editora Zouk, 2017.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. 1ª edição. Barcelona: Herder Editorial, 2014.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a pandemia. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF, 2017.

KARNAL, Leandro. O dilema do porco espinho: como encarar a solidão. São Paulo: Planeta, 2018.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2011.

MELLO, Patrícia Campos. A Máquina do Ódio: notas de uma repórter sobre violência digital e fake news. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, primeira reimpressão, 2019.

MURDOCK, Graham. Refeudalização revisitada: a destruição da democracia deliberativa. São Paulo: Matrizes. v.12 nº2 mai/ago, 2018. p. 13–31.

O'NEIL, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy. New York: Crown, 2016.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

QUINTINO, João Augusto Rodriguez. “Pós-verdade, fake news e as eleições presidenciais de 2018 no Brasil”. In: FONSECA, Rafael; TRIGO, José Alves; HARRIS, Hugo; PAIERO, Denise (Org.). TCCs selecionados em 2019. 2ª ed. São Paulo: Centro de Comunicação e Letras Mackenzie.

SCHWARTZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SILVA, Antonio José Bacelar da; LARKINS, Erika Robb. The Bolsonaro Election, Antiblackness and Changing Race Relations in Brazil. The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology. Vol. 00, Nº 0, 2019, pp. 1–21

ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The fight for a Human Future and The New Frontier of Power. New York: Public Affairs, 2019.

--

--