Voz do Leitor #163

Das dores que fracassamos em esquecer, em Manchester à Beira-Mar, de Kenneth Lonergan

Quando não nos é permitido ser feliz por um débito do passado

Jordy Tamura

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Manchester à Beira-Mar, terceiro longa de Kenneth Lonergan, tem como protagonista Lee Chandler, que trabalha no apartamento onde vive como uma espécie de “faz-tudo”,(consertando encanamentos, desentupindo privadas e etc.) no subúrbios de Boston. A morte de seu irmão obriga-o a viajar a Manchester, onde ele morava anteriormente, e o longa se centra nas lembranças que consequentemente evocam motivadas pelo retorno e pela sua reação diante delas.

O filme inicia-se tratando desses dois tempos ao apresentar o protagonista. O Lee Chandler de anos atrás aparece na primeira cena brincando no navio com o sobrinho, Patrick. Já o Lee de hoje, porém, tal como surge nas cenas seguintes, é um sujeito que trata mal os moradores onde realiza seus serviços, gerando reclamações no prédio; não relaciona-se com outras mulheres, não aproveitando as oportunidades que lhe surgem (na casa da mulher em que ele desentope a privada, ele ouve ela dizendo ao celular que tem desejos sexuais por ele; já no bar, outra moça procura puxar assunto com Lee após derrubar cerveja nele); e arruma brigas sem motivo. É nítido o contraste entre um sujeito que se diverte com o sobrinho e outro nitidamente apático: a única coisa que separa os dois é o intervalo de alguns anos.

A morte do irmão obriga-o, porém, a trazer esse Lee do passado para o agora, mesmo que involuntariamente. O filme intercala a todo momentos cenas do passado com a do presente, a medida que vai construindo o sentido que motiva toda a trama, tornando claro ao público o porquê das coisas estarem como estão. A medida que essas cenas surgem, compreendemos pouco a pouco o porquê de Lee ter mudado tanto.

Ao ler o testamento e descobrir que seu irmão torna-o tutor de Patrick, evocam neles pensamentos do acidente de anos atrás que é o sustentáculo de toda a trama. Lee, após uma noite de bebedeira com os amigos em casa, coloca lenha na fogueira para aquecer as crianças e esquece de colocar a rede. Ele sai para comprar mais cerveja, e quando volta sua casa está em chamas: assim que ele perde seus três filhos. A culpa de ter perdido seus três filhos que justifica todas as suas ações hoje.

A decisão de morar em Boston, por exemplo, foi uma maneira que ele encontrou de se afastar dessa lembrança dolorosa, que tanto atormenta-o; afastar-se da cidade em que tudo aconteceu é uma maneira encontrada de se afastar de todo esse sofrimento. Porém, tal mecanismo de defesa não é a maneira mais adequada de lidar com isso, sua dor e sua culpa não desaparecerá simplesmente se afastando de Manchester, virando as costas para o problema. Sua apatia com pessoas do sexo oposto e suas desnecessárias e tão frequentes brigas são efeitos desse trauma que ele carrega junto a si e com a qual não encontrou uma maneira adequada de lidar.

A já aguardada morte do irmão e o retorno a cidade natal evoca em seus pensamentos o evento traumático de que tanto foge. Evoca também, por outro lado, pensamentos do Lee da época anterior ao trauma: seja as brincadeiras que tinham com o sobrinho no navio, seja seus momentos felizes com a esposa e com os filhos. Era um sujeito completamente diferente do de hoje, era um sujeito desacorrentado ao débito moral que tanto o atormenta.

Portanto, o tema tratado no filme não é sobre a morte daqueles que nos deixam: o tema do filme é a morte daqueles que ficam. Após prestar depoimento, Lee arranca a arma do policial e tenta se matar; mesmo fracassando, porém, a partir de então ele não se permite viver. Essa passagem de Nietzsche ilustra bem isso:

“Em verdade, ficamos cansados demais para morrer; ainda estamos acordados e prosseguimos vivendo — em sepulcros”

O retorno de Lee, portanto, obriga-o a encarar todas as suas questões referentes a Manchester. Isso explica sua reação diante do testamento do irmão: a tutoria do Patrick obrigaria-o a retornar a Manchester. Ou seja, além de novamente se colocar no papel de pai, ele moraria no lugar que tanto foge.

Após sair do escritório do advogado com o sobrinho, o protagonista informa-o de que venderá o barco; ele afirma também, em cenas posteriores, que retornará a Boston com Patrick, gerando reclamações no adolescente. Patrick argumenta que toda a sua vida está construída em Manchester, onde tem amigos, namoradas, faz parte de uma banda e etc., mas nada disso convence o seu tio. Não importa para ele acabar com o que Patrick construiu e o sofrimento que causará ao sobrinho, nada o manterá em Manchester.

É no reencontro com a ex-esposa e o contato com Patrick, além de sua estadia na cidade, que se concretizará o enfrentamento de questões que tanto negligenciara — ou de que tanto se defendia.

Seu relacionamento com o sobrinho, embora conflituoso em alguns momentos, vai se transformando ao longo do filme. Não são cenas com forte apelo emocional que demarcam o contato que se desenvolve entre eles, mas cenas simples, num ritmo calmo, em que simplesmente estão presentes um ao outro. A simples presença do sobrinho é bastante significativa, pois pouco a pouco ele vai conhecendo melhor o adolescente: desde sua sexualidade, até seu sofrimento por saber que o corpo do pai ficará guardado em um freezer. Ele passa a compreender o significado que Manchester tem para o sobrinho, totalmente diferente de sua experiência traumática com a cidade.

A presença de Patrick permite-o entrar em contato com o seu lado mais humano, com aquele Lee que brincava com o sobrinho em viagens de navio. Da mesma forma que a viagem evocou pensamentos os quais se esforçava em evitar, evocou também momentos bons de sua vida.

Além da morte dos filhos, outra coisa que o aflige é a rejeição da mulher com quem era casado. Em diversos momentos do filme ele tem oportunidade de se relacionar com outras mulheres, inclusive em Manchester, quando a mãe de uma das namoradas de Patrick convida-o a entrar e tenta puxar assunto com ele. A não superação da separação da esposa pode ser o motivo; quando comparece ao hospital em que o irmão faleceu, em um ato falho ele pede que liguem para sua esposa; depois ele se corrige, referindo-se a sua ex-esposa.

A morte do irmão impele-o a também encarar essa questão. Randi reaparece na sua vida quando resolve ir ao velório de Joe, grávida, com o atual companheiro. Em outra cena, já no final do filme, ele reencontra-a com seu filho; emocionada, ela pede desculpas por todas as coisas que disse a ele por conta da morte dos filhos e diz que ainda o ama.

Ao final, o protagonista resolve realmente retornar a Boston. Em conversa com o sobrinho, ele confessa que é incapaz de superar seu sofrimento (“I can’t beat it”). Desenrolada toda a trama, Lee não foi capaz de se redimir.

Porém, o protagonista consegue recuperar um pouco daquilo que tinha perdido. Após o perdão da mulher, ele toma a decisão de deixar a guarda de Patrick a George, não havendo necessidade, portanto, do adolescente se mudar a Boston; ele resolve não interromper a experiência do sobrinho construída em Manchester ao qual teve acesso nos dias em que esteve lá. Surge nele um grau de empatia para perceber o quanto a cidade é importante para o garoto. Além disso, na última cena, ele sugere ao sobrinho que visite-o ocasionalmente em Boston; eis o único laço afetivo de Lee Chandler busca então manter.

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Jordy Tamura

Psicólogo e apaixonado por cinema. Unindo o útil ao agradável.